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A excepcionalidade (e a necessidade) da tutela de urgência no incidente de resolução de demandas repetitivas

Para além das hipóteses em que a suspensão não é considerada adequada, pode haver situações em que apenas a suspensão das ações não seja suficiente para elidir a profusão de entendimentos contraditórios.

16/10/2020

A admissão do incidente de resolução de demandas repetitivas (“IRDR”) gera, pelo texto legal, a suspensão das múltiplas ações que versem sobre a mesma questão de direito afetada para resolução “concentrada” (art. 982, I, do CPC). A suspensão consiste em uma tutela provisória de urgência, de natureza cautelar, cuja ratio é evitar que continuem a ser prolatadas decisões dissonantes nos casos em que a questão se repete – tanto nos juízos de primeira instância quando no âmbito do próprio tribunal em que instaurado o IRDR –, até que se fixe a interpretação definitiva a seu respeito, no julgamento do incidente.

No entanto, para além das hipóteses em que a suspensão não é considerada adequada,1 pode haver situações em que apenas a suspensão das ações não seja suficiente para elidir a profusão de entendimentos contraditórios. Afinal, a controvérsia jurídica objeto do IRDR pode ser verificada em decisões liminares, concedidas em sede de tutela de urgência pelos juízos em que tramitam os processos repetitivos e pelos próprios órgãos fracionários do tribunal, notadamente porque a lei reserva, àqueles que são partes nos processos suspensos, a obtenção de tutelas de urgência para resguardar direito que se encontre sob risco iminente (art. 982, § 2º). Assim, ainda que se paralise o transcurso dos processos em que se discute a mesma questão, é possível que continuem a ser requeridas e concedidas liminares, com interpretações indesejavelmente conflitantes sobre a questão que será futuramente decidida em caráter vinculante.

Um exemplo eloquente de tal situação é o das demandas revisionais de contratos de prestação de ensino, trazidas em massivo fluxo ao Judiciário, e ainda em espiral de crescimento, por força da distribuição de perdas generalizada decorrente da pandemia da covid-19.

Existem hoje centenas de ações judiciais em que se pugna por descontos nas mensalidades, e às quais os juízos de primeira instância e os órgãos fracionários dos tribunais têm dado soluções divergentes. Há, de um lado, múltiplas decisões que negam o pleito e, de outro, decisões liminares que reveem o valor das mensalidades, atribuindo-lhes percentuais de descontos aleatórios e discricionários, sem análise técnica e suficiente fundamentação jurídica. As decisões, muitas já em grau recursal, controvertem basicamente acerca da seguinte questão: se a pandemia da covid-19, fato notório, poderia ser invocada como razão suficiente, por si só, para presumir a existência de onerosidade excessiva ou desproporção das prestações em detrimento do aluno, nos contratos de prestação de ensino.

Para tais casos, parece insuficiente a instauração de um IRDR para pacificar a matéria, mediante a adoção de uma interpretação coerente, ponderada e asseguradora das posições das partes, caso não seja liminarmente fixada uma tese provisória para ser aplicada enquanto o incidente está em tramitação. Isso porque, a se manter a possibilidade de decisão liminar acerca dos valores das mensalidades, sem qualquer tratamento isonômico ou previsível, é possível que se agrave o sério problema enfrentado pelos alunos e igualmente pelas escolas e universidades, cuja situação econômico-financeira atual é também periclitante, ameaçando a própria manutenção da prestação do serviço educacional.

Nessas situações, é indispensável que se firme, no âmbito do incidente, uma interpretação provisória sobre a questão de direito controvertida, até que se estabeleça a tese definitiva, quando do julgamento final do IRDR, na linha do posicionamento que já vem sendo defendido em estudos sobre o tema.2 Trata-se, como na suspensão dos processos determinada por lei, de uma tutela provisória de urgência; neste caso, antecipatória dos efeitos da tutela definitiva, passível de concessão desde que presentes os requisitos exigidos pelo art. 300 do Código de Processo Civil. O fumus boni iuris advém da probabilidade da interpretação defendida quanto à questão de direito afetada; e o periculum in mora repousa no risco de prejuízo decorrente da demora na definição da tese, diante da prolação de decisões destoantes, lesivas à isonomia e à segurança jurídica.

Tal solução vem sendo, pouco a pouco, adotada pelos tribunais. A Seção Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao admitir o IRDR 0417620-30.2017.8.13.0000,3 por exemplo, concedeu a tutela de urgência para fixar provisoriamente uma interpretação sobre a questão de direito controvertida, aplicando-a incontinenti às demandas repetitivas que tratassem do tema, até o julgamento final do incidente:

“Tema 33 IRDR – TJ/MG

Questão submetida a julgamento: Cabimento ou não de agravo de instrumento contra decisão interlocutória proferida em processo de recuperação judicial ou falência.

Anotações Nugep: Não foi determinada 'a suspensão dos processos que versam sobre o tema deste incidente (art. 368-F, I do RITJMG), sob pena de dano inverso, e porque de acordo com o art. 982, I do CPC/2015, tal suspensão deve ocorrer “conforme o caso'”.

Foi acolhido o pedido de tutela de urgência nos seguintes termos: “Fica obstado, no âmbito deste Tribunal, o não conhecimento de agravo de instrumento interposto em face de decisões proferidas no processo de recuperação judicial ou falimentar quando fundado no cabimento do referido recurso em face da possível taxatividade do art. 1.015, CPC até que o Tribunal aprecie o mérito do incidente”.

Embora somente se tenha notícia, na jurisprudência, da adoção de interpretação provisória de forma alternativa à suspensão dos processos, defendemos que ambas as medidas de urgência podem ser determinadas cumulativamente, quando a suspensão dos processos não bastar para evitar o risco de dano à isonomia e à segurança jurídica.

E mais: havendo situação de excepcional urgência – caracterizada pelo risco de prejuízos irreversíveis, caso se aguarde a inclusão em pauta do IRDR perante o órgão competente para realizar a análise da admissibilidade do incidente –, pensamos ser possível admitir a concessão da tutela provisória pelo próprio relator, ad referendum do colegiado competente.

Afinal, embora não haja dúvida acerca da importância da colegialidade para o processamento e julgamento do incidente (o que atestam os arts. 978, 981 e 984 do CPC), a lei processual também atribui ao relator, de modo geral, e observados os requisitos legais, o poder-dever de apreciar monocraticamente o pedido de tutela provisória, em quaisquer recursos e processos de competência originária do tribunal (art. 932, II, do CPC).

Nesse sentido, para a própria efetividade do sistema instituído pelo CPC para gestão dos casos repetitivos, é possível afirmar que as suas normas estruturantes, em casos de excepcional urgência, conferem ao relator o poder-dever de apreciar tutela provisória ad referendum do colegiado competente. A título de exemplo, veja-se que os Regimentos Internos do STF e do STJ preveem expressamente essa possibilidade.4 5

A propósito, em processos de controle de constitucionalidade,6 cuja natureza objetiva em muito se aproxima do IRDR,7 é usual a concessão de tutela provisória pelo relator, ad referendum do Colegiado, afastando-se o argumento de que haveria reserva de plenário para processar e julgar o pedido de tutela provisória. Entende-se que a decisão monocrática “não ofende aprioristicamente a competência do Tribunal Pleno, consistindo apenas em um diferimento da análise colegiada”, diante da urgência no caso, já que que “retirar os efeitos prospectivos da concessão da medida cautelar tornaria praticamente inócua a jurisdição constitucional”, além de repercutir seriamente na utilidade processual da ação.8

A mesma lógica é empregada em outros tribunais. Veja-se, por exemplo, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que prevê, no caso da representação de inconstitucionalidade, cujo julgamento compete ao Órgão Especial, por maioria absoluta de seus membros, que o relator pode deferir a cautelar inaudita altera parte, ad referendum do colegiado, em caso de excepcional urgência.9

Do mesmo modo que ocorre com tais processos, a tutela de urgência em IRDR, nos casos em que há extraordinária urgência, não precisa necessariamente se submeter à competência do colegiado, podendo ser analisada inicialmente pelo relator, sob pena de tornar inócuo o próprio julgamento do IRDR, quando grande parte dos danos evitáveis já estarão consumados.

A posição ora defendida alinha-se, ademais, com o reconhecimento da relevância dos poderes do relator e de seu papel gerencial para organização e tratamento da litigância,10 especialmente repetitiva. A tendência está em expansão,11 como se vê das disposições contidas na recente recomendação 76 do CNJ, que trata da gestão de processos coletivos, e, mais, no projeto de lei 4.441/20, que disciplina o procedimento da nova Lei de Ação Civil Pública.

_________

1 Apesar do texto legal, há posicionamentos no sentido de que a suspensão não é automática. Nesse sentido: “A suspensão de processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região prevista no art. 982, I, do CPC não é decorrência automática e necessária da admissão do IRDR, competindo ao relator ou ao colegiado decidir acerca da sua conveniência.” (Enunciado 140 das II Jornada de Direito Processual Civil do CJF). Na mesma linha, o STJ já decidiu pela não suspensão automática dos processos que versem sobre questões objeto de resolução pelo rito dos Recursos Repetitivos (art. 1.036 a 1.041 do CPC), por exemplo: temas 996 (REsp 1.729.593), 988 (REsp 1.696.396), 1.022 (REsp 1.717.213) e 1.027 (REsp 1.825.622). Por outro lado, o Observatório Brasileiro de IRDRs constatou que, dos IRDRs admitidos entre 2016 e 2018, 93% (noventa e três por cento) tiveram decretação de suspensão dos processos que versassem sobre a mesma controvérsia (ZUFELATO, Camilo (Coord). Relatórios de pesquisa do Observatório Brasileiro de IRDRs da FDRP/USP, disponível clicando aqui)

2 A doutrina que se debruçou sobre o tema da tutela de urgência em IRDR, embora não seja vasta, manifestou-se de forma favorável à possibilidade de sua concessão pelo órgão colegiado, como medida alternativa à suspensão dos processos que envolvem a mesma controvérsia, inclusive uma das autoras deste artigo: “Parece possível, ainda, desenvolver uma alternativa, consistente na possibilidade de concessão pelo órgão colegiado, após a admissibilidade, de uma espécie de tutela provisória, conferindo uma “interpretação provisória da questão de direito processual”, que valerá enquanto não resolvido definitivamente o incidente. Caso essa intepretação venha a confirmar-se ao final, não haverá nenhum problema – com a vantagem de os processos não haverem sido sobrestados; caso a interpretação não se confirme ao final, o órgão julgador, na decisão do incidente, fará a modulação dos efeitos da decisão, para preservar os atos praticados com base na “interpretação provisória” ou, caso se demonstre necessário, ocorrerá a repetição dos atos praticados, agora em conformidade com a nova tese. A lógica é semelhante à da tutela de urgência nos processos de controle concentrado de constitucionalidade, que também são espécies de processo objetivo.” (DIDIER JR., Fredie; TEMER, Sofia. A decisão de organização do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: importância, conteúdo e o papel do regimento interno do Tribunal. In Revista de Processo, v. 258. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 257-278). A posição foi também adotada em outros estudos: “Não se pode ignorar, contudo, uma possibilidade velada: a concessão de tutela provisória de urgência no incidente, de natureza antecipada, com a fixação de tese provisória, a vincular, nos moldes da decisão final, os órgãos julgadores subordinados ao tribunal. Note-se que, no regramento codificado, há previsão de decisão cautelar, consistente na suspensão dos processos em trâmite. O que ora se advoga é coisa outra. Com efeito, parece inexistir impedimento para a definição provisória de uma tese jurídica, se as circunstâncias assim recomendarem. Cabe ao colegiado inferir se os princípios fundamentadores da técnica são mais prestigiados com a mera suspensão de ações ou se uma tese provisória melhor os homenageará. A relevância desse passo é desautorizar, pela via reflexa, decisões dos juízos naturais dos processos sobrestados contrárias ao entendimento estatuído, brevemente e em cognição sumária.” (MELLO PORTO, José Roberto Sotero. Teoria Geral dos Caos Repetitivos. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2018, p.180).

3 TJ/MG, IRDR nº 0417620.30.2017.8.13.0000, rel. Des. Albergaria Costa, Seção Cível, DJe 6/12/17.

4 RISTF: “Art. 21. São atribuições do Relator: (...) iv – submeter ao Plenário ou à Turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa; (...) v – determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, ad referendum do Plenário ou da Turma. (grifou-se).

5 RISTJ: “Art. 34. São atribuições do relator: (...) v - submeter à Corte Especial, à Seção, à Turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares ou tutelas provisórias necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação ou ainda destinadas a garantir a efi cácia da ulterior decisão da causa; vi - determinar, em caso de urgência, as medidas ou tutelas do inciso anterior, ad referendum da Corte Especial, da Seção ou da Turma (...). Art. 288. Admitir-se-ão tutela de urgência ou tutela da evidência requeridas em caráter antecedente ou incidental na forma da lei processua; § 1º A petição inicial da ação que visa à prestação de tutela de urgência em caráter antecedente será apensada oportunamente ao processo a que se refere; § 2º O relator poderá apreciar a liminar e a própria tutela de urgência, ou submetê-las ao Órgão Julgador competente. (grifou-se).

6 Nesse sentido, por exemplo, na ADI 5.365/PB (DJe 5/10/15), o Min. Luis Roberto Barroso concedeu medida cautelar ad referendum do Plenário para suspender os efeitos da lei impugnada e das decisões judiciais já proferidas, até o julgamento final da ação constitucional.

7 TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

8 STF, ADI 5409/BA, rel. min. Edson Fachin, Plenário, DJe 25/11/15. No mesmo sentido: AgReg na Rcl 11.768/SP, rel. min. Ellen Gracie, 1ª Turma, DJe 2/2/16.

9 “Art. 105- A medida cautelar na representação de inconstitucionalidade será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Órgão Especial, após audiência (...) §2º- Em caso de excepcional urgência, a medida cautelar poderá ser deferida sem a audiência prévia dos órgãos e das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado. §3º- Também em caso de excepcional urgência, durante o recesso e nos dias em que não houver expediente forense normal, a medida cautelar poderá ser deferida por órgão diretivo e, nos demais dias, também pelo respectivo relator, ambos ad referendum, apresentado o processo em mesa na primeira sessão subsequente do Órgão Especial.” (grifou-se).

10 Em linha com o defendido em: DIDIER JR., Fredie; TEMER, Sofia. A decisão de organização do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Importância, conteúdo, e o papel do regimento interno do Tribunal. In Revista de Processo, v. 258. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 257-278.

11 Defendendo os poderes de organização do Relator: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. Vol. 3. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 787-796; TAVARES, João Paulo Lordelo Guimarães. A certificação coletiva: organizando as ações coletivas e o julgamento de casos repetitivos. Salvador: Juspodivm, 2020.

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*Fernanda Medina Pantoja é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professora da PUC/RJ. Sócia de Tavares Advogados. Membro da Processualistas.







*Sofia Temer é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Sócia de Gustavo Tepedino Advogados. Membro da Processualistas.

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