Em continuação ao texto publicado nesta coluna no último dia 21 de setembro1, no qual buscamos elencar os principais argumentos hábeis a justificar a designação dos tabeliães de protestos como agentes de execução, nesta segunda parte buscaremos demonstrar, a partir da interpretação do direito estrangeiro, as razões pelas quais a escolha dos advogados como agentes de execução não parece adequada para o Brasil, sugestão que consta do parecer emitido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que contrapõe o PL 6.204/19 quanto à eleição do agente de execução.
No parecer, que foi assinado pelos processualistas Luciano Vianna Araújo e Rogéria Dotti, constam os seguintes argumentos relacionados ao tema: “A atribuição dessa função de agentes privados, no caso brasileiro, aos advogados regularmente inscritos na OAB, permitirá uma maior eficiência, considerando-se não apenas o grande volume de profissionais com possibilidade de atuação, mas também a experiência específica que já possuem (por atuarem em execuções judiciais e cumprimentos de sentença) e a possibilidade de controle disciplinar pelo próprio órgão de classe. A fiscalização exercida pela OAB em relação ao exercício já conta com uma estrutura própria e eficiente. (...) Os advogados, ao receberem a função de agentes de execução, estariam naturalmente impedidos para exercer a profissão em relação às partes do processo executivo, durante um período de tempo. No presente parecer está sendo sugerido o período de impedimento de 02 anos e restritos às partes da execução”.
Para fundamentar essa indicação de advogados como agentes de execução, o parecer aponta como paradigmas os agentes de execução português e o huissier de justice francês, já que seriam profissionais liberais fiscalizados pela própria associação de classe, citando o processualista português José Lebre de Freitas.
Inicialmente, deve-se esclarecer que os agentes de execução franceses e portugueses não são agentes privados fiscalizados por suas próprias entidades de classe, mas sim por órgãos independentes e imparciais, justamente por exercerem função pública de modo privado, por delegação.
Na França, a execução forçada dos títulos executivos judiciais e extrajudiciais é uma atividade realizada exclusivamente pelos huissiers de justice, em caráter de monopólio2. Quando as medidas executivas forçadas recaem sobre bens móveis e quantias em dinheiro, a execução é realizada exclusivamente pelo huissier, desde a notificação inicial até a satisfação do crédito. O tribunal ficará inteiramente fora desses procedimentos, exceto se houver oposição de embargos pelo executado. Já no caso de a penhora recair sobre bens imóveis, os atos executivos serão realizados através de um procedimento especial, no qual o huissier atuará conjuntamente com o Tribunal de Grande Instância.
O huissier é um profissional liberal independente, que atua na execução forçada sem qualquer tipo de autorização ou decisão judicial3. Dentro da sua autonomia, ele pode I) propor acordo ou plano de pagamento; II) escolher o método executivo que considera mais adequado ao caso específico; III) requerer reforço policial, caso necessário, entre outros.
No entanto, como sua atividade tem caráter público, a sua área de atuação está delimitada conforme a competência territorial do Tribunal de Grande Instância no qual está alocado4. Além disso, o agente de execução francês tem sua atividade altamente regulamentada: há legislação detalhada sobre treinamento, função e constituição de escritórios. O huissier está sujeito ao rígido código de ética da Câmara Departamental da classe, mas também está sujeito ao controle do Ministério da Justiça.
Para ingresso na profissão, um candidato a huissier de justice deve ser graduado em direito e, além disso, deve passar por um período de treinamento de 2 anos, compreendendo 1 ano de estágio em um escritório de um huissier e outro ano no exercício efetivo ou estágio comprovado de qualquer profissão jurídica. Ao final desse tempo, o aspirante a huissier deve submeter-se a um exame profissional realizado na câmara local de huissiers5. A atuação do profissional é condicionada à concessão de uma licença pelo Ministro da Justiça, de forma que, além das qualificações necessárias, o candidato deve contar com certa condição financeira para adquirir essa licença – que é limitada e concedida tão somente conforme a efetiva necessidade do sistema judiciário.
Quanto aos aspectos práticos de organização e gestão dos seus negócios, o huissier de justice pode trabalhar em um escritório próprio e individual ou associar-se a outros, operando então por meio de alguma estrutura societária. Contudo, como princípio basilar, os agentes de execução franceses são plenamente responsáveis pelos danos causados por seus atos, de forma que é inaplicável o instituto da “responsabilidade limitada” às empresas por eles criadas6.
Os honorários cobrados pelos huissierstambém são estritamente regulados: honorários fixos (taxas) e comissões pela recuperação do crédito, mas eles podem conceder descontos e parcelamentos.
Huissiers de justice também atuam em outras áreas jurídicas, como prestação de consultoria e representação de clientes perante o Tribunal de Commerce e o Tribunal Paritaire Cle Baux Ruraux. Outras atividades profissionais não relacionadas com o processo civil, como a administração de propriedades, de fundos – de poupança ou de investimento – e agenciamento de seguros, também podem ser realizadas por huissiers, desde que obtida autorização do Ministério da Justiça7. No entanto, exercício da atividade contenciosa é absolutamente proibida ao huissier de justice.
Em Portugal, a reforma estabelecida pelo decreto-lei 38/03 transferiu a competência da prática dos atos executivos dos juízes aos agentes de execução – cargo assumido pelos solicitadores. Os agentes passaram a realizar todas as diligências do processo de execução, incluindo citações, notificações, publicações, penhoras, vendas e pagamentos8.
O solicitador é um profissional liberal que pratica atos jurídicos para outros, mediante remuneração. Ele pode desempenhar atividade extrajudicial, judicial ou de consultoria. No exercício da primeira delas, I) ele representa, aconselha e acompanha os cidadãos junto aos órgãos da administração, tribunais e cartórios, entre outros, obtém documentos e certidões e elabora contratos e minutas de escritura; na segunda atividade, II) ele intervém em causas nas quais não é obrigatória a constituição de advogados – em geral, causas de baixo valor econômico ou jurisdição voluntária; na terceira, III) ele presta aconselhamento jurídico em toda e qualquer área do direito9.
Apesar de o solicitador estar habilitado a exercer quase todo o tipo de atividade jurídica, não lhe era exigido nenhum tipo de formação acadêmica até a entrada em vigor do Estatuto dos Solicitadores - decreto-lei 8/99. O artigo 71º do referido decreto passou a exigir bacharelado em direito ou solicitadoria para a inscrição do solicitador no estágio obrigatório para o exercício da atividade.
Assim, na primeira reforma da execução (2003), ocorrida após 4 anos de tal exigência, poucos solicitadores possuíam algum tipo de formação acadêmica. Nesse passo, muitos dos agentes de execução que passaram a desempenhar atividades executivas naquela ocasião não tinham qualquer formação técnica, experiência ou maturidade profissional para tanto. O despreparo dos novos solicitadores de execução, aliado à falta de infraestrutura para a implementação do novo projeto, foi alvo de crítica por vários estudiosos.
Para compensar os problemas surgidos pela falta de formação dos agentes de execução na primeira reforma – bem como aumentar o número de agentes de execução –, a reforma de 2008 estabeleceu que advogados pudessem candidatar-se, e se admitidos e aprovados no respectivo estágio, exercessem a atividade de agentes. Assim, podem ser agentes de execução solicitadores e advogados que obtenham êxito no estágio legalmente previsto.
Desde então, para que um novo solicitador ou advogado torne-se agente de execução, além de contar com a exigida formação acadêmica, deve ele cursar um estágio com o prazo de duração de 18 meses, cujo exame de admissão e avaliação é realizado por uma entidade independente, antes a Comissão para a Eficácia das Execuções – CPEE, e após o novo Código de Processo Civil de 2013, a Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça – CAAJ. Essas comissões também se tornaram responsáveis pela fiscalização da atividade dos agentes.
Os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efetuadas são suportadas pelo exequente e cobradas ao final do executado – do produto dos bens penhorados –, conforme tabela estabelecida pela portaria 282/13.
O intuito deste artigo é demonstrar a importância da eleição do agente de execução em uma proposta de desjudicialização da execução, devendo-se escolher um profissional com formação, experiência, maturidade e fiscalização para a realização do novo mister. Portugal pecou na sua escolha inicial, razão pela qual teve que corrigir o curso cinco anos após a primeira reforma e estender ao advogado o exercício da função de agente de execução, o que causou percalços, como, por exemplo, o rígido regramento de impedimentos e suspeições para proibir o mandato judicial simultâneo10.
Frisa-se, contrariamente ao quanto consignado no parecer da OAB Nacional, que o agente de execução advogado só pode exercer, basicamente, a advocacia consultiva e não a contenciosa, para o fim de evitar conflitos de interesses, nos termos do atual Estatuto profissional da classe – lei 154/15, art. 3º, 1311.
Nessa toada, se o direito comparado e as premissas básicas do parecer da OAB Nacional estão relacionadas aos agentes de execução francês e português, é importante frisar que eles não são advogados no sentido lato – não podem exercer a advocacia contenciosa, mas somente a consultiva –, de modo que a quarentena sugerida de 2 anos está em total desconformidade com os paradigmas apontados. Portugal proibiu, há quase 5 anos, o mandato judicial e determinou o substabelecimento sem reservas de iguais. Além disso, esses agentes são fiscalizados por órgãos externos e independentes.
A atribuição da função de agentes de execução a advogados exigiria uma construção legislativa relativa à forma de fiscalização da atuação desses profissionais e à sua responsabilização que, em face de suas prerrogativas legais, estão submetidos tão somente aos estatutos da Ordem dos Advogados do Brasil, não podendo sofrer qualquer tipo de sanção disciplinar proveniente do Poder Judiciário ou de outros órgãos. Note-se que sequer sanções processuais pecuniárias podem ser aplicadas diretamente pelo Judiciário aos advogados.
A delegação estatal pressupõe o controle e a fiscalização da função pelo ente delegante e não por outros órgãos, tais como os de classe. No caso dos advogados, caso fossem designados agentes de execução, não seria possível o exercício das atividades de fiscalização e controle pelo Poder Judiciário e, em consequência, pelo ente delegante, que é o Estado, motivo pelo qual se afigura inadequada tal atribuição12.
No tocante à responsabilidade civil do advogado, prevê o art. 32 do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (lei 8.906/94) que “o advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa”. Essa norma se aplica evidentemente à relação entre advogado e cliente, motivo pelo qual a responsabilidade civil de tal profissional liberal é, em regra, contratual e, segundo o STJ, é de meio e subjetiva13.
Como ficaria então a questão da responsabilidade dos advogados pelos danos provocados aos usuários dos serviços por eles prestados como agentes de execução? Seria aplicável o art. 32 do Estatuto da Advocacia? Seria necessária uma reforma legislativa para adequar a responsabilização do advogado face à atribuição de uma nova função, que passa a estabelecer uma relação entre advogado e usuário de um serviço de natureza pública?
Note-se que também não há previsão expressa de responsabilidade dos advogados pelos atos de seus prepostos, tampouco há que se falar em responsabilidade do Estado pelos atos praticados pelos advogados, regras que já existem, como visto no primeiro texto publicado pelas autoras nesta coluna, no que tange aos tabeliães de protestos, que, ademais, são fiscalizados pelo Poder Judiciário.
Em conclusão, o huissiers de justice e o agente de execução português estão muito mais para delegatários do Estado do que para profissionais liberais, como faz crer o parecer do Conselho Federal da OAB: é um profissional liberal, mas que exerce funções públicas, com controle externo rigoroso. Além disso, apesar de bacharéis em direito ou advogados, estão impedidos de exercer mandato judicial e atividade contenciosa em geral, sendo-lhe facultada apenas o exercício de consultorias.
Pelas razões aqui elencadas, entendemos que a atividade de agente de execução não deve ser realizada por advogados, especialmente se puderem exercer mandato judicial simultâneo e se forem fiscalizados tão somente por seus respectivos órgãos de fiscalização profissional. Na mesma linha também entende Inês Caeiros, diretora da Comissão de Disciplina dos Auxiliares da Justiça em Portugal desde 2014, em recente artigo publicado no Migalhas14.
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2 LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do executado: oposições de mérito no processo de execução. São Paulo: M. E. Editora e Distribuidora, 2000. p. 102.
3 LIEBMAN, op. cit., p. 101.
4 GRECO, Leonardo. O processo de execução – v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 86-8.
5 Metier du Droit: avoue, greffier, detective, avocet, huissier de justice, notaire, avocet em france, mediateur, solicitor, bourreau. France: Books LLC, 2010. p. 193.
6 KENNETT, Wendy. The Enforcement of Judgments in Europe. Oxford: Oxford Ed., 2000. p. 78.
7 KENNETT, op. cit, p. 78.
8 SILVA, Paula Costa e. A reforma da acção executiva. Coimbra: Coimbra, 2003. p.11.
9 Disponível clicando aqui. Capturado em: 16 jan. 2020
10 “B. Incompatibilidade e impedimentos. 1. O exercício das funções de agente de execução está condicionado por um regime de normas deontológicas que estabelecem incompatibilidades e impedimentos. Assim, são incompatíveis com o exercício simultâneo das funções de agente de execução, segundo o artigo 165º EOSAE: a. o exercício do mandato judicial; b. o exercício da atividade de administrador judicial; c. o desenvolvimento de quaisquer outras atividades que possam consubstanciar uma incompatibilidade do Estatuto; d. as incompatibilidades genéricas comuns a solicitador e agente de execução do artigo 102º. Estas incompatibilidades estendem-se aos solicitadores, advogados e demais colaboradores com quem partilhem instalações ou tenham sociedade profissional. 2. Por outro lado, o agente de execução sujeita-se a impedimentos que diminuem a amplitude do exercício da profissão em razão da sua independência poder ser, direta ou indiretamente, afetada por interesses conflitantes. Efetivamente decorrem do artigo 166º OSAE os impedimentos seguintes: a. os impedimentos e suspeições dos juízes, dos artigos 115º, 119º e 120º do Código de Processo Civil; b. os impedimentos genéricos comuns a solicitador e agente de execução do artigo 103º EOSAE; c.o exercício das funções de agente de execução quando tenham participado na obtenção do título que serve de base à execução, salvo se este tiver sido obtido como ato próprio de agente de execução; d. a representação judicial ou extrajudicial de alguma das partes ocorrida nos últimos dois anos.” PINTO, Rui. A ação executiva. Lisboa: AAFDL, 2019. p. 83
11 13 - Os solicitadores e advogados que exerçam funções de agentes de execução regularmente inscritos na Câmara dos Solicitadores, relativamente aos quais se verifique incompatibilidade relativa ao mandato judicial, devem pôr termo a essas situações de incompatibilidade até 31 de dezembro de 2017, sem prejuízo de poderem prosseguir com os mandatos judiciais já constituídos até à data da entrada em vigor do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, aprovado em anexo à presente lei.
12 Nesse sentido, Flávia Pereira Hill, apesar de reconhecer que a atuação dos advogados como agentes de execução seria positiva pelo aspecto do grande número de profissionais existentes no país, considera que tal função deve ser atribuída aos titulares das serventias extrajudiciais. Ao tratar do procedimento extrajudicial pré-executivo (pepex), a autora pondera: “Consideramos de todo relevante ratificar a competência do Poder Judiciário para controlar e coibir ilegalidades eventualmente perpetradas pelos agentes de execução. A experiência no Brasil demonstra que os conselhos profissionais, por vezes, se mostram lentos e até mesmo condescendentes com seus afiliados, demonstrando certo grau de corporativismo (...). (...) para que a sociedade se sinta segura e confie nesse procedimento, é crucial que ela confie primeiramente no agente de execução e, em caso de desvios, saiba que há canais de controle isentos e eficientes”. HILL, Flávia Pereira. “O procedimento extrajudicial pré-executivo (pepex): reflexões sobre o modelo português, em busca da efetividade da execução no Brasil”. (In MEDEIROS NETO, Elias Marques de. RIBEIRO, Flávia Pereira. Reflexões sobre a Desjudicialização da Execução Civil. Curitiba: Juruá. 2020, p. 311 e 317).
13 AgInt no AREsp 701.659/RS, rel. ministro Raul Araújo, 4ª turma, julgado em 14/9/20, DJe 01/10/20.
14 Os principais critérios para que se possa definir quem deve assumir a função de agente de execução são: a) a compatibilização entre o regime que regule o acesso à atividade e o seu exercício; b) exclusividade no exercício da função ou restrição das atividades que podem ser exercidas de forma cumulativa; c) estabelecimento de incompatibilidades e impedimentos, não sendo recomendável a possibilidade do exercício de mandato judicial; d) aproveitamento das estruturas e dos meios já existentes e maior facilidade de ampliação das funções já exercidas; e) supervisão dos profissionais por entidade independente e controle estatal; f) exigências de padrões de qualidade. Por fim, considera mais adequada, no Brasil, a atribuição da função aos tabeliães de protestos, considerando, porém, necessário “um investimento de adaptação e evolução, de forma que a capacidade de tramitação do processo executivo seja gradual - não haverá distribuição automática, conforme o projeto de lei em andamento no Senado Federal brasileiro”. CAEIROS, Inês. A quem atribuir a função de agente de execução - uma opinião portuguesa. Disponível clicando aqui, capturado em 01/10/20.
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*Flávia Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestra em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia. Integrante da comissão de elaboração do PL 6.204/19 - Desjudicialização da Execução Civil.
*Renata Cortes é registradora Civil e Tabeliã no Estado de Pernambuco. Mestre em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela UNICAP. Membro do IBDP. Membro da ANNEP. Coordenadora da pós-graduação em Advocacia Extrajudicial do IAJUF/Unirios.