Migalhas de Peso

Os nomes importam: reflexões sobre porque a Lei de Alienação Parental deve ser mantida (e aperfeiçoada)

Estas reflexões fazem parte da minha tese de doutorado, defendida em agosto de 2020 junto ao Centro Universitário de Brasília, em vias de publicação.

14/10/2020

Imagem: Arte migalhas.

O Código Penal brasileiro é sucinto ao estabelecer: “Matar alguém: pena – reclusão, de seis a vinte anos” (artigo 121). O crime de homicídio talvez seja aquele que desperte maior repulsa e sanção penal de maior gravidade, já que causa em seu âmago a finitude da existência da vítima, vida sem a qual não é possível exercer ou desfrutar de qualquer outro bem jurídico.

Na atual codificação brasileira, o homicídio simples é a figura dolosa com menos requisitos, de redação clara, sem oferecer dificuldades para sua interpretação. Mas, no passado, diversos autores de delitos passionais, na sua grande maioria homens que matavam suas mulheres, impelidos por “violenta emoção”, eram absolvidos em tribunais diante da previsão de “crime passional” do seu artigo 27, § 4º, que rezava que “Não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime” (OLIVEIRA, 2011).

No Brasil, um dos maiores juristas que combatiam com veemência as absolvições dos passionais foi o promotor de justiça Roberto Lyra, que ensinava com brilhantismo que:

O verdadeiro passional não mata. O amor é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário, generoso. Ele é cliente das pretorias, das maternidades, dos lares e não dos necrotérios, dos cemitérios, dos manicômios. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Para os fins da responsabilidade, a lei considera apenas o momento do crime. E nele o que atua é ódio. O amor não figura nas cifras da mortalidade e sim nas da natalidade; não tira, põe gente no mundo. Está nos berços e não nos túmulos (apud OLIVEIRA, 2011).

Mas por que falar de homicídio para falar sobre a manutenção da lei 12.318/10 (Lei da Alienação Parental)? Para tecer a correlação de que, assim como os instrumentos penais tradicionais não foram suficientes para combater os homicídios contra a população feminina, assim os instrumentos do Estatuto da Criança e do Adolescente não foram suficientes para combater as violações contra os direitos de convivência familiar e integridade psicológica dos filhos: tornou-se necessária a criação da qualificadora do “feminicídio”, na seara penal, assim como tornou-se necessária a criação da Lei de Alienação Parental.

O feminicídio, criado pela lei 13.104/15, é o homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” (inciso VI do §2º do artigo 121 do Código Penal), considerando-se que “há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (§2º-A do artigo 121 do Código Penal).

O feminicídio é um tema relativamente novo. Na década de 1970, a socióloga Diana E. H Russell começou a propagar o estudo do Feminicídio utilizando esse termo pela primeira vez no ano de 1976, durante uma explanação dentro do Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, na cidade de Bruxelas (SARAIVA, 2019). A alternativa pela criminalização do feminicídio tem suscitado, desde sua sanção, um conjunto de análises que põem em xeque as estratégias empreendidas pelos chamados movimentos feministas brasileiros até então. Ao mesmo tempo, têm-se levantado vozes favoráveis, sob os mais diversos argumentos, aos processos de judicialização, atribuindo, muitas vezes, à dimensão simbólica um viés positivo – de mudança no imaginário cultural (MACHADO, ELIAS, 2018).

Mesmo com a Lei do Feminicídio e a Lei Maria da Penha em pleno vigor, as estatísticas mostram um número crescente de violência contra a mulher, de violência sexual e de feminicídio. Isto porque essas violências ainda estão fortemente ligadas a uma cultura patriarcal e repressora da mulher, que a identifica como um objeto de posse. Essa mesma cultura também culpabiliza a vítima de violência doméstica e sexual, o que dificulta a denúncia das vítimas, que muitas vezes têm medo de serem mal vistas, mal interpretadas, culpabilizadas ou ignoradas. Essa cultura misógina deve mudar, o que só acontecerá com uma mudança de hábitos culturais por meio da educação e da atuação severa da esfera pública sobre os crimes cometidos contra a mulher (PORFÍRIO, s.d.).

Nome também recente na história do conhecimento científico, a Alienação Parental é uma percepção recente de um mal antigo: o uso dos filhos, por sua pouca maturidade e higidez mental, como instrumentos de conflito e peças das micro e macro disputas de poder no espaço da família.

A lei de Alienação Parental trouxe a mesma dimensão simbólica da lei do Feminicídio, da lei Maria da Penha, como uma forma de inserir no ordenamento o nome específico a um mal e a previsão de um conjunto de regras jurídicas específicas a seu combate, para proteção de um público vulnerável: o das crianças e adolescentes. O sentimento de posse dos genitores sobre os filhos ainda é muito presente no entendimento cultural do exercício da parentalidade, especialmente após a dissolução da união entre os genitores.

Devem, assim, ser afastadas as alegações de que a lei 12.318/10 representa a indevida ingerência judicial nas relações cotidianas. Violência psicológica contra os filhos, abusos dos direitos parentais de guarda e convivência, assédio moral contra crianças e adolescentes, não fazem – ou ao menos, não devem fazer – parte do cotidiano das famílias, sendo imprescindível que o combate à Alienação Parental faça parte do espírito da Proteção Integral. Não se trata de patologizar as relações parentais-filiais, mas de reconhecer que uma prática indevidamente normalizada nas relações de família deve ser revista sob uma ótica infantocêntrica.

A convivência familiar define-se pelo relacionamento constante e duradouro entre os integrantes da família. Esse relacionamento distingue-se, sobretudo, pelos vínculos pautados pela continuidade afetiva, que caracteriza o exercício das funções na família, e que fomentam o conhecimento de si e do outro, bem como a possibilidade em reconhecer e ser reconhecido, sendo esse último tipo de vínculo essencial para a formação da identidade e da autoestima. A continuidade afetiva se dá mediante a presença relativamente constante de quem exerce a função materna e a presença intermitente daquele que exerce a função paterna (GROENINGA, 2011).

A convivência familiar e comunitária é elencada pela Constituição Federal como direito fundamental, constante do próprio caput do artigo 227, que estabelece o rol de direitos que representam um patrimônio jurídico existencial mínimo de toda pessoa em desenvolvimento. O combate à Alienação Parental se insere na garantia de que esse patrimônio existencial mínimo seja preservado, diante da imprescindível exigência biopsicossocial de que uma criança e adolescente cresçam em um ambiente harmônico de família. Crescer em um ambiente familiar saudável não é só uma necessidade afetiva do filho: é uma necessidade fisiológica.

É importante que se finque a premissa básica que o exercício saudável da convivência familiar está diretamente relacionado à qualidade da integridade psicológica de uma criança ou adolescente, em franco processo de formação da sua personalidade. Saúde mental e convivência familiar são duas faces da mesma moeda quando se tratam das pessoas em situação peculiar de desenvolvimento humano.

Daí a importância de se manter a lei 12.318/10, contrariamente aos movimentos equivocados em prol da sua revogação, e aproveitar a oportunidade de aperfeiçoá-la e incrementá-la, fortalecendo seus pontos fracos e validando seus pontos positivos. Afinal, é perfeitamente natural que a dinâmica da vida real demonstre a necessidade de aperfeiçoamento das leis. Em se tratando da criação de instrumentos legais para a proteção da criança e do adolescente, não podemos retroceder.

Os nomes importam, especialmente quando nomeamos violações de direitos que costumam ser invisibilizadas. Existe todo um efeito pedagógico em se informar os pais, mães e demais familiares que seu comportamento pode gerar danos às crianças e adolescentes, em virtude da prática de Alienação Parental. É a partir desse conhecimento que podemos almejar uma nova cultura de parentalidade e convivência familiar, em que os filhos deixem de ser usados como instrumentos de vingança, revanche e chantagem, sendo realmente considerados sujeitos de direitos por seus próprios familiares.

Estas reflexões fazem parte da minha tese de doutorado, defendida em Agosto de 2020 junto ao Centro Universitário de Brasília, em vias de publicação. Outras questões de ordem material e processual foram por mim abordadas, mas este é assunto para um próximo artigo.

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GROENINGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre pais e filhos: análise interdisciplinar com vistas à eficácia e sensibilização de suas relações no Poder Judiciário. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de São Paulo. Orientação: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. São Paulo, 2011. Disponível aquiAcesso em: 16 abr. 2017.

MACHADO, Isadora Vier. ELIAS, Maria Lígia G. G. Rodrigues. Feminicídio em cena: da dimensão simbólica à política. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 1., Abril 2018, pp. 283-304. Disponível aqui. Acesso em: 29 jun. 2020

OLIVEIRA, Marcel Gomes de. A história do delito de homicídio. 01 de julho de 2011. Disponível aqui. Acesso em: 29 jun. 2020.

PORFÍRIO, Francisco. Feminicídio. s.d. Disponível aqui. Acesso em: 29 jun. 2020.

SARAIVA, João Paulo. Lei 13.104/15: Feminicídio - Esse crime é consequência de preconceito. Portal Migalhas Jurídicas, 2 de julho de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 05 out. 2020.

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*Bruna Barbieri Waquim é doutora e mestre em Direito. Assessora Jurídica no TJMA. Diretora Cultural do IBDFAM/MA. Professora universitária. 

 

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