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Santa Clara, olhai por nosso teletrabalho de cada dia. Assim seja

A tecnologia pode ser usada de forma conectiva, para que todos tenham acesso e possam valer-se dela para o bem comum.

14/10/2020

Narra-se no Florilégio, textos que contam as histórias de São Francisco de Assis e seus companheiros, que, em 1253, na Toscana, Itália, Santa Clara, naquela época já gravemente enferma e sem condições de participar presencialmente da Missa de Natal, a que nunca faltara, milagrosamente, assistiu do convento onde estava acamada à Missa da meia-noite que ocorria naquele momento, longe dali, na igreja de São Francisco. Por ter assistido à missa, à distância, em 1958, o então Papa Pio XII proclamou Santa Clara como a padroeira da televisão.

Assim, a tecnologia pode ser usada de forma conectiva, para que todos tenham acesso e possam valer-se dela para o bem comum. Quando se fala em trabalho essa ideia recebe um significado especial, porque a soma de forças individuais é fundamental e, por isso, mais importante que por uns à frente dos outros, é por uns juntos com os outros, conectados, mesmo que em espaços físicos diferentes.

Da conexão entre as pessoas que trabalharão à distância pode-se extrair o primeiro requisito para a instituição do teletrabalho, a saber: o mútuo acordo. A prestação de serviços pelo teletrabalho deve ser benéfica para ambas as partes e, assim, constar expressamente do contrato de trabalho (art. 75-C “caput” da CLT), ou por de aditivo ao contrato (art. 75-C § 1º da CLT).

Por causa da pandemia por covid-19, a medida provisória 927/20 excepcionou essa regra autorizando que o teletrabalho também fosse instituído somente a critério do empregador. No entanto, tal regra é temporária sendo aconselhável aqueles que quiserem permanecer no sistema de teletrabalho, para depois da pandemia, que manifestem de forma expressa tal opção, atendendo à condição do mútuo acordo, como estabelecido na regra geral prevista no art. 75-C da CLT.

Já a alteração do regime de teletrabalho para o presencial pode dar-se a critério unilateral do empregador com prévia comunicação de 15 dias para dar-se a transição, conforme dispõe o art. 75-C, § 2º da CLT.

Interessante notar que o jus variandi pode dar-se de forma plena. Com efeito, se o empregador abrir a todos os empregados a possibilidade de se candidatarem ao teletrabalho, caberá a ele a escolha discricionária de quem poderá migrar para esse sistema. De outro lado, caso o empregador também de forma unilateral entender que o empregado deva voltar ao sistema presencial, poderá a seu critério, determinar o retorno ao trabalho presencial, desde que observado o prazo de 15 dias para a transição do empregado.

Portanto, mesmo havendo o requisito do mútuo acordo para a instituição do teletrabalho (segundo a regra geral) ainda há boa margem para o empregador organizar o negócio da forma como melhor lhe convier, podendo de certa forma definir quando o trabalhador irá ao trabalho na empresa (trabalho presencial) e quando o trabalho irá ao trabalhador, onde quer que ele esteja (trabalho telepresencial), aliás esse é o conceito do trabalho à distância conforme preconizado por Jack Nilles.

Seguindo tal premissa, o art. 75-B da CLT conceitua o teletrabalho da seguinte forma: Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador.

Assim, não importa de onde o empregado prestará o serviço, bastando que não seja no mesmo espaço físico da empresa, para que se configure o teletrabalho.

Cabe considerar que a utilização do termo home office se trata de uso impróprio de anglicismo, porque a tradução correspondente ao trabalho realizado pelo empregado de sua casa é work from home, enquanto home office designa o espaço reservado na casa para o escritório ou biblioteca.

De qualquer forma, quer seja do escritório ou da biblioteca da casa, ou de outro local em que o empregado tenha acesso à tecnologia, o serviço prestado pelo empregado à distância pelo uso de ferramentas de comunicação ou informação configura teletrabalho e, nesse passo, o art. 6º da CLT define que não há diferença entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado à distância. Essa disposição da CLT é importante, porque afasta qualquer discussão relacionada a eventual natureza de autonomia pelo fato de o trabalho ser prestado à distância. Consoante o artigo de lei, se presentes os demais requisitos previstos no art. 3º da CLT, o teletrabalho forma típica relação de emprego.

Vale observar que a CLT no art. 83 já trazia a possibilidade do teletrabalho, muito antes da inclusão do art. 75-A e ss. Consta do referido artigo de lei: É devido o salário mínimo ao trabalhador em domicílio, considerado este como o executado na habitação do empregado ou em oficina de família, por conta de empregador que o remunere.

Assim, historicamente pela lei trabalhista, não importa de onde o empregado preste o serviço para que se configure a relação de emprego.

Importante considerar que o teletrabalho não autoriza por si o monitoramento do empregado. A par de algumas discussões, para corrente majoritária, o monitoramento somente é possível quando houver uma política específica da qual o empregado tenha ciência e que as ferramentas tecnológicas usadas sejam fornecidas pelo empregador para a realização do trabalho. Não obedecidas tais condições, o monitoramento pode configurar violação dos direitos da intimidade, privacidade e dignidade do empregado.

Fato é que o teletrabalho não revoga os direitos constitucionais relativos ao empregado, sobretudo quando o serviço é realizado de seu domicílio, o que incrementa a proteção dos direitos constitucionais, assim, intimidade, privacidade e dignidade devem ser preservadas. Por outro lado, cabe ao empregado zelar por toda a informação a que teve acesso de forma remota, sob pena de responsabilizar-se juridicamente por eventuais danos.

Com relação a aquisição, manutenção e reembolso de equipamentos, infraestrutura para o trabalho remoto, cabem às partes defini-las por meio de contrato. Sendo certo que em se tratando de ferramentas de trabalho tais bens e produtos não integram a remuneração do empregado, conforme dispõe o art. 75-D parágrafo único da CLT.

Quanto ao controle de horário ou jornada de trabalho, a CLT também pacificou a questão ao afastar os empregados que estão em sistema de teletrabalho do regime de jornada de trabalho e controle, conforme dispõe o art. 62, III.

Isso significa que os empregados que prestam serviço à distância têm flexibilidade quanto ao horário em que trabalham, no entanto, a empresa pode definir o horário em que determinadas tarefas podem ser realizadas, para a organização do negócio. Porém, definições de escalas de trabalho podem descaracterizar a flexibilidade de tempo característica essencial do teletrabalho. 

Quanto à possibilidade de criação de um sistema misto, isto é: ausência de controle quando o empregado está prestando serviço à distância e controle quando esporadicamente estiver nas dependências do empregador, pela lei isso não se afigura possível. Isso porque na forma do art. 75-B, parágrafo único, da CLT, o comparecimento do empregado nas dependências do empregador para a realização de atividades específicas não afeta ou retira a natureza de teletrabalho; no entanto, o dispositivo legal é claro no sentido de haver atividades específicas a serem realizadas presencialmente pelo empregado, desta forma, se o empregado comparecer para ficar o dia inteiro à disposição do empregador para a realização de toda e qualquer atividade, isso poderá descaracterizar o teletrabalho e inseri-lo no regime de jornada de trabalho e pagamento das horas extras que forem provadas.

Assim, o trabalhador em regime de teletrabalho não está e nem deve estar submetido ao controle de horário nem mesmo quando comparece nas dependências do empregador para realização de atividades específicas presenciais.

Por fim, ao empregador cabe orientar o empregado sobre as normas de segurança do trabalho e essa responsabilidade continua com o empregador, mesmo no regime de teletrabalho.

Nesse sentido, o art. 75-E da CLT expressamente estabelece que o empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho, porém, o parágrafo único do mesmo artigo traz uma mudança de posicionamento ao estabelecer que o empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador, ou seja, pode ser debitada ao empregado a culpa pelo acidente em decorrência do não cumprimento das instruções fornecidas pelo empregador, como, por exemplo, se decorrente do uso incorreto de EPI, responsabilidade esta que no caso do trabalho presencial permanece com o empregador.

Todas as considerações conduzem à conclusão de que o teletrabalho traz ao mercado uma mudança de pensamento. A proposta para o futuro é clara em se abandonar um sistema baseado em controle de presença e fiscalização, para um sistema que privilegia flexibilidade de tempo e espaço a fim de que haja um incremento da produção e melhoria dos resultados a custos mais baixos.

Se por um lado o teletrabalho traz como benefícios a diminuição da possibilidade de acidentes e a manutenção do empregado próximo de sua família, por outro, também diminui a sinergia e identificação do empregado com a empresa.

De qualquer sorte, o teletrabalho não pode ser visto como um desafio em si, mas, como uma forma de se vencer outro desafio: o da produção de bens e prestação de serviços que possam atender a mais pessoas com menor custo, para que mais pessoas possam ser beneficiadas sem que essas mesmas pessoas, enquanto trabalhadores, sejam prejudicadas com a perda do emprego, diminuição dos seus ganhos e qualidade de vida.

Agora, diante de todas as incertezas e obscuridades que o mundo oferece, que os teletrabalhadores se sintonizem com Santa Clara para que, como canta Jorge Ben Jor, Santa Clara clareie tudo com beleza celestial (Santa Clara Clareou, Jorge Ben Jor, álbum Bem-vinda Amizade, gravadora Som Livre, 1981).

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*Antonio Giurni Camargo é advogado trabalhista militante, sócio do escritório Camargo e Camargo Advogados, pós-graduado em Direito do Trabalho pela Unitoledo e especialista em Direito Empresarial e Compliance pela FGV.

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