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Revogação da resolução CONAMA 303/02 e a proteção da Restinga como Área de Preservação Permanente (APP)

Ao tratar da restinga, a proteção legal vai além do acidente geográfico em si, abrangendo todo o acidente ecológico, que engloba a vegetação e o conjunto de ecossistemas, inclusive o solo, em sua conformação.

8/10/2020

Repercutiu fortemente na imprensa e nos setores especializados na tutela do meio ambiente notícia de que o Conselho Nacional Meio Ambiente – CONAMA, em sessão realizada no dia 28 de setembro de 2020, revogou duas resoluções do CONAMA que delimitavam faixas de preservação permanente, dentre elas aquela que dispõe que as restingas são áreas de preservação permanente (AGÊNCIA BRASIL, 2020).

Assim, nesta abordagem vamos concentrar atenção no conjunto ecossistêmico denominado Restinga.

Pois bem, inicia-se dizendo que a resolução CONAMA 303 foi editada em 20 de março de 2002 e entrou em vigor para dispor sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente (APP). Dispunha essa Resolução, no artigo 3º, a) e b) que constitui Área de Preservação Permanente (APP) a área situada nas restingas, seja ela em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima (alínea a); ou em qualquer localização ou extensão, quando recoberta por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues (alínea b).

Esse era considerado o único preceito normativo então vigente que dispunha expressamente que a restinga seria de preservação permanente, mesmo nos casos que não tivesse a função de fixar dunas ou estabilizar mangues.

No entanto, com o advento da lei 12.651/12 (denominado Novo Código Florestal), por ser norma superveniente, passou-se a colocar em dúvida a vigência da resolução CONAMA 303.

Dessa forma, pode-se dizer que mesmo antes da revogação da resolução CONAMA 303, ocorrida dia 28 de setembro de 2020, o tema já era controvertido, tanto que a Advocacia-Geral da União, através do Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente, no parecer 1.131/2014/CGAJ/CONJUR-MMA/CGU/AGU, analisando a revogação, ou não, do art. 3º, a) e b) da resolução CONAMA 303 pela superveniência da lei 12.651/12 (Novo Código Florestal), entendeu pela sua subsistência e validade (MPSP, 2014).

Ficou destacado no Parecer que dúvidas não pairavam quanto à persistente validade e eficácia do art. 3º, b), porquanto repete exatamente a redação que era dada pelo código anterior (art. 2º, f, da lei 4.771/65) e do atual Código Florestal (art. 4º, VI).

No entanto, quanto à alínea a) o Parecer entendeu que a sua validade decorreria diretamente do art. 2º, f) da lei 4.771/65, e não do art. 3º, que alude às áreas de preservação permanente que tenham sido assim declaradas por ato do poder público (no caso a resolução do CONAMA).

Até porque, o Superior Tribunal de Justiça, em 2009, ao ser desafiado a apreciar a validade do art. 3º, a) da resolução CONAMA 303, que trata especificamente a APP da faixa de 300 metros medidos da linha de preamar máxima, já havia decidido que a mencionada norma da resolução é plenamente válida e legal porquanto tira seu fundamento do art. 2º, f) da lei 4.771/65 e art. 8, VII da lei 6.938/81 (REsp 994.881/SC).

Neste ponto, é válido rememorar que o novo Código Florestal guarda a mesma redação do código anterior (art. 4º, VI da lei 12.651). Assim, apresenta-se válida a menção a esse precedente do STJ, mesmo anterior ao Código atual.

Pensamos que a fundamentação mesma para o art. 3º, a) e b) da resolução é o art. 2º, f) da lei 4.771/65, que é idêntico ao art. 4º, VI da lei 12.651/12. Diz-se isso, para esclarecer que a base que autoriza a conclusão de que a restinga é APP, mesmo naquela hipótese da alínea a) do art. 3º da resolução é a lei diretamente e não a delegação antes prevista no art. 3º da lei 4.771/65 (que previa que ato do poder público poderia específica outras espécies de áreas de preservação permanente), nem o atual art. 6º da lei 12.651 (que atribui esse poder ao chefe do executivo).

A referência no art. 6º da lei 12.651 que permite a indicação de outras hipóteses de APP expressamente declaradas pelo Chefe do Poder Executivo não se aplica ao reconhecimento das restingas como APP, porque elas já o são, todas, desde o art. 4º, VI da lei 12.651 (art. 2º, f da lei 4.771). É preciso observar que a previsão do art. 6º em realidade se dirige a outras vegetações diversas da restinga que possam ser úteis para servir de proteção das as restingas.

Apesar de o art. 6º não aludir a outras espécies de APP do art. 4º, entendemos que essa interpretação é única que consegue alcançar a proteção da vegetação de restinga. Isto porque pensar que haveria uma distinção entre restingas de dunas e mangue (ex lege) e restingas em geral (mediante ato do chefe do executivo) pode não alcançar o objetivo central de preservação desses espaços, pelo conjunto biológico único e ecossistêmico que nele se contém.

Ora, sendo o mangue já protegido como APP ex lege (art. 4º, VII da lei 12.651/12), em toda a sua extensão, limitar a proteção das restingas somente àquelas estabilizadoras de mangue seria dizer que ela não tem proteção per si, o que nega a própria dicção do art. 4º, VI da lei 12.651/12.

Sendo assim, mesmo ciente que o art. 2º, f da lei 4.771/65 expressamente afirmava que são áreas de preservação permanente as formas de vegetação nas restingas, como fixadoras de duas ou estabilizadoras de mangue, isso não significa que somente se possa falar em APP de restinga nessas duas situações. Isto porque, conforme visto, o STJ expressamente considerou a APP de restinga do art. 3º, a) da resolução CONAMA 303 como válida e extraível do art. 2º, f da lei 4.771/65. Além do que, a leitura do art. 2º, f, citado, deve ser cotejada com outros preceitos vigentes que tutelam as restingas.

Assim, a fundamentação legal que mantém a higidez da previsão das restingas, sejam elas fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues, ou não, é a previsão direta do art. 2º, f) da lei 4.771/65 (atual art. 4º, VI da lei 12.651/12) conjugada, no entanto, com a disposição normativa do art. 2º da lei 11.428/06 que, ao tratar do regime diferenciado de proteção da vegetação de Mata Atlântica, expressamente protege as vegetações de restinga, em sentido amplo.

Da mesma forma, sob regime especial de proteção, as restingas são mencionadas, ainda, no art. 3º da lei 7.661/88 que, no art. 3º, I, estabelece a prioridade para a conservação e proteção das restingas. Tudo a indicar um conjunto normativo, sistêmico, que promove um tratamento especial e diferenciado para a vegetação de restingas, sejam ou não, elas, protetoras de dunas ou estabilizadoras de mangue.

Como se pode observar, o sustentáculo que apoia a afirmação de que as restingas, mesmo não fixadora de duna ou estabilizadora de mangue, são áreas de preservação permanente é a direta incidência das normas ambientais legais acima apontadas.

Parece ser essa a interpretação que melhor se adequa ao nível protetivo estabelecido pelo art. 225 da CF, sob pena de se admitir um enfraquecimento na tutela ambiental, forte na ideia de que as restingas são importante elo de transição entre o ambiente marinho e o terrestre que contribui de modo relevante para a sobrevivência de um conjunto de espécies biológicas.

Por isso, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp 945.898/SC, através da declaração de voto do ministro Herman Benjamin, enfatiza que a restinga é caracterizada por um conjunto de traços identificadores: a) localização em depósito arenoso, praias, cordões arenosos, dunas, e depressões, que pode incluir, como forma de garantir a proteção do todo, também florestas de transição restinga-encosta; b) ocorrência em linha paralela à Costa, daí a influência marinha; c) povoamento por comunidades edáficas; d)cobertura vegetal em mosaico, estrato herbáceo, arbustivo e arbóreo, este último mais interiorizado. Onde essas características, dentre outras, listadas pela legislação se fizerem presentes, de restinga se cuidará para fins de proteção como APP.

É válido o registro, ainda, ao julgamento do Resp 1.462.208/SC em que a Corte Superior afirmou a validade da resolução CONAMA 303/02, com fundamento na delegação de poderes contida no art. 3º da lei 4.771/65, mas também com base no art. 2º, "f", do Código Florestal o qual qualifica como área de preservação permanente (APP) não o acidente topográfico em si, mas a vegetação de restinga que lá se faz presente, o que conduz à conclusão de que a proteção se dirige à vegetação de restinga, sendo as alusões ao mangue e à duna meros contexto geográficos exemplificativos, mas não o foco do Código Florestal, cujo o escopo está na proteção da vegetação propriamente dita e o conjunto biótico a ela integrado.

Assim, ao tratar da restinga, a proteção legal vai além do acidente geográfico em si, abrangendo todo o acidente ecológico (fitogeomorfológico), que engloba a vegetação e o conjunto de ecossistemas, inclusive o solo, em sua conformação.

Essa forma de ver a restinga de modo mais compreensivo ao seu papel e à sua função ecossistêmica já podia ser encontrada no anexo da resolução CONAMA 261/99, que aprovou o parâmetro básico para análise dos estágios sucessionais de vegetação de restinga para o Estado de Santa Catarina, na qual a restinga é compreendida como um conjunto de ecossistemas que compreende comunidades vegetais florísticas e fisionomicamente distintas, situadas em terrenos predominantemente arenosos, de origens marinha, fluvial, lagunar, eólica ou combinações destas, encontrando-se em praias, cordões arenosos, dunas e depressões associadas, planícies e terraços (MMA, 1999). Assim, não apenas em mangues ou dunas.

Dessa forma, onde houver vegetação de restinga, haverá a APP de restinga, inclusive quando situadas em planícies marinhas ou rampas de dissipação.

Disso se deduz que a conjunto normativo vigente, para além da resolução CONAMA 303, estatui que é área de preservação permanente todos os locais que guardem as características naturais acima declinadas, nos quais incide a vegetação de restinga, mesmo que não seja fixadora de duna ou estabilizadora de mangues.

No entanto, com a revogação da resolução CONAMA 303 suprime-se a referência à dimensão protegida, uma vez que a resolução aludia à faixa de 300 metros medidos da linha de preamar máxima. Como a resolução foi revogada, deve ser considerada como de preservação permanente toda a extensão da restinga, da mesma forma que é aplicável para a vegetação de restinga fixadora de dunas ou estabilizadora de mangue.

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AGÊNCIA BRASIL. Conama revoga normas que delimitam áreas de proteção permanente: são áreas de vegetação do litoral brasileiro e ao redor de represas, 28 de setembro de 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 set 2020.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE (MMA). Resolução CONAMA nº 261, de 30 de junho de 1999. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 set 2020.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE (MMA). Resolução CONAMA nº 303, de 20 de março de 2002. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 set 2020.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (MPSP). Parecer nº 1.131/2014-CGAJ/CONJUR-MMA/CGU/AGU. Disponível clicando aqui . Acesso em: 07 ago. 2020.

BRASIL. Lei nº 12.651/ de 21)5 de maio de 2012. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 set 2020.

BRASIL. Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 2965. Disponível em: clicando aqui . Acesso em 28 set 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp 994.881/SC, relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª turma, julgado em 16/12/08, Dje 9/9/09. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 set 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp 945.898/SC, relatora ministra Eliana Calmon, declaração de voto do ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 24/11/09, DJe 24/8/10. Disponível clicando aqui. Acesso em 28 set 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp 1.462.208/SC, rel. ministro Humberto Martins, 2ª turma, julgado em 11/11/14, DJe 6/4/15. Disponível clicando aqui . Acesso em 28 set 2020.

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*Ricardo Cavalcante Barroso é procurador Federal da AGU. Doutor em Direito/UFPE.

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