Migalhas de Peso

O TCU e o efeito cinderela nas contratações públicas

Qual é a devida extensão da sanção prevista no art. 7º da Lei do Pregão?

6/10/2020

Comecemos refletindo sobre a seguinte situação hipotética: determinada empresa, participante de uma licitação no município de São Paulo na modalidade pregão, é penalizada por cometer diversas fraudes e variados ilícitos administrativos. Assim, após o devido processo administrativo, fica “impedida de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou municípios” pelo prazo de um ano, nos termos do art. 7º da lei federal 10.520/02 (Lei do Pregão). Um dia após consolidada sua penalidade pelo município de São Paulo, a mesma empresa participa de licitação e é contratada pelo município de Guarulhos. De fato, ao atravessar a rua entre o município de São Paulo e o de Guarulhos, a empresa é considerada apta e devidamente habilitada a licitar e contratar em Guarulhos. O seu desvio de conduta anterior, ensejador de penalização grave pelo município de São Paulo, simplesmente desaparece. Em outras palavras – e tal qual Cinderela e seus sapatinhos de cristal –, ao atravessar uma rua e o limite dos municípios, a empresa simplesmente lava a sua alma: suas fraudes e ilícitos anteriores desaparecem. É a abóbora que vira carruagem; os ratos que viram lindos cavalos.

O exemplo acima, apesar de bizarro, faz parte do cotidiano das licitações e contratos no Brasil, sobretudo a partir da interpretação dada pelo Tribunal de Contas da União ao art. 7º da Lei do Pregão. É que, contrariamente ao que se poderia imaginar na proteção do erário, entende o TCU, de forma majoritária (e equivocada, a nosso sentir), que a devida extensão da sanção prevista no art. 7º da Lei do Pregão restringe-se ao âmbito do ente federativo sancionador (União ou Estado ou Distrito Federal ou município). Diante disso, por exemplo, a empresa transgressora no município de São Paulo, com diversas fraudes e ilícitos no “currículo” recente, estaria apta a licitar e contratar com o município de Guarulhos, com o Estado de São Paulo e com a União.

Pergunta-se, pois, o quão lógica (e razoável) pode ser considerada tal interpretação em termos de proteção à moralidade e à probidade nas contratações públicas. Eis o que ousamos pensar.

Como já dito, o vetor interpretativo sobre o qual repousa o entendimento majoritário do TCU, a despeito de alguma divergência interna entre ministros, pode ser vislumbrado, por exemplo, no Acórdão 269/2019-Plenário, da relatoria do ministro Bruno Dantas, no qual restou consignado que “os efeitos da sanção de impedimento de licitar e contratar prevista no art. 7º da lei 10.520/02 restringem-se ao âmbito do ente federativo sancionador (União ou Estado ou município ou Distrito Federal)”.

Ocorre que a manutenção desse entendimento pelo TCU tem o condão de tornar prática cotidiana o já aludido Efeito Cinderela nas contratações públicas. É dizer: a simples transposição de um limite municipal ou divisa estadual, como num passe de mágica, faria com que eventual desvio de conduta ensejador de penalização à determinada empresa em um ente da federação simplesmente desaparecesse (já que a punição pretérita estaria restrita ao espectro do ente federativo que a aplicou).

Dito isso, não nos parece que essa é a interpretação mais condizente com a razão de ser do dispositivo legal em questão, qual seja: a regeneração jurídica e moral da Administração Pública. Diante disso, a enumeração dos entes federativos realizada no art. 7º da lei 10.520/02 implica, por pura lógica jurídica, impedimento de contratar com quaisquer dos entes enumerados (e não apenas um deles, como se pretende a partir de interpretação literal, rasteira e equivocada do dispositivo).

Ainda que muito já se tenha discutido acerca dos limites / extensão dos efeitos das sanções administrativas a licitantes e contratados, resta patente que a tutela da moralidade administrativa reclama posição privilegiada, cabendo ao Administrador optar pela segurança jurídica alicerçada na pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (intérprete último da legislação federal) de que as sanções contidas no art. 87, III da lei 8.666/93 não estão restritas apenas ao órgão/ente licitante, mas abrangem toda a Administração Pública, direta e indireta, da União, Estados, Distrito Federal e dos municípios.1 O mesmo raciocínio, por óbvio, há de se aplicar ao art. 7º da Lei do Pregão, não sendo possível que o apego à literalidade de uma conjunção disjuntiva constante da norma (a partícula “ou” no texto do referido art. 7º) seja capaz de esvaziar por completo o conteúdo normativo e lógico do dispositivo legal em questão. É dizer: as abóboras não podem virar carruagens e os ratos não podem virar cavalos por mero capricho hermenêutico.

Adiante – e na esteira do caminho já consolidado pela gigantesca maioria dos Tribunais de Justiça do país –, é certo que na análise da abrangência da sanção exposta no art. 7º da Lei do Pregão deve a Administração “prestigiar o interesse público primário e exigir idoneidade do particular com o qual celebra contratos administrativos. Isto é alcançado com a ampla abrangência da punição imposta, produzindo efeitos na Administração Pública em geral”.2

Já na linha bem exposta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, “não se ignora que a redação do art. 7º da lei 10.520/02 possui relevantes distinções quando comparada com o que dispõe o art. 87, III, da lei 8.666/93, contudo, ainda assim deve ser realizada interpretação sistemática e teleológica de ambas as legislações, que procuram inabilitar aquele que, por meio de comportamento reprovável, não se mostra apto a firmar relações contratuais com a Administração Pública”.3

De mais a mais, o fato notório de que a Administração Pública é una é inescapável, havendo apenas a descentralização/desconcentração do exercício de suas funções para fins de melhor atendimento do interesse da coletividade, de sorte que a extensão dos efeitos do ‘impedimento de licitar e contratar’ não pode ficar restrita a um órgão do Poder Público ou a um ente da federação. Em verdade, não há razão prática ou lógica jurídica para que os efeitos do desvio de conduta de determinado sujeito sejam extensíveis apenas ao ente aplicador da sanção. Não há, assim, como se vislumbrar uma territorialidade da conduta desviada, sobretudo quando o bem protegido, como no caso, é a própria probidade da Administração como um todo.

Nesse contexto, de forma correta e de maneira oposta ao entendimento ora prevalente no TCU, o quadro atual da jurisprudência brasileira indica que a penalidade prevista no artigo 7º da Lei do Pregão estende-se à toda Administração Pública. Veja-se, entre outros: TJ/SP (diversas decisões em 2018, 2019 e 2020 nesse sentido), TJ/RS (decisões de 2018 e 2019), TJ/DFT, TJ/PA, TJ/GO, TJ/RJ, TJ/AP, TJ/RO (em 18/6/20), TJ/TO, TJ/SC e TJ/MG (em 18/8/20) e TJPB (em 22/9/20)4. No horizonte da teleologia do preceito em estudo, tende-se à inevitável compreensão de que os efeitos da responsabilização administrativa advinda do art. 7º da Lei do Pregão hão de abarcar a Administração Pública em todo o território nacional.

Do contrário, restaria convalidada pelo sistema jurídico a existência do mencionado Efeito Cinderela nas contratações públicas. É dizer: um licitante/contratado poderia ser considerado inadequado para o contato contratual com a Administração Pública de um ente federado após o cometimento de irregularidades e, cruzando a divisa estadual ou municipal, restaria revigorado para a continuidade de suas relações com a Administração Pública. Não se pode imaginar, afinal, que esse seja o espírito real da lei.

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1 STJ – REsp 151.567/RJ – 2ª turma – rel. min. Francisco Peçanha Martins – Julgamento em 25/2/03.

2 TJ/RS – AI 70079329470 – 22ª Câmara Cível – relator desembargador Miguel Ângelo da Silva – Publicação em 3/5/19.

3 TJ/SP – Apelação 1000371-06.2015.8.26.0459 – 8ª Câmara de Direito Público – relator desembargador Ponte Neto – julgamento em 16/10/18.

4 1) TJ/DFT – Acórdão 855.726 – 20140020278073MSG – Conselho Especial – rel. des. George Lopes – julgamento em 10/3/15; 2) TJ/PA – AI 00363969620118140301 Belém – rel. des. Constantino Augusto Guerreiro – julgamento em 22/11/12; 3) TJ/GO – Agravo de Instrumento 5392656-59.2018.8.09.0000 – rel. des. Alan Sebastião de Sena Conceição – julgamento em 3/5/19; 4) TJ/RJ – APL 00038818420128190037 Nova Friburgo – rel. desa. Myriam Medeiros da Fonseca Costa – julgamento 29/4/15; 5) TJ/AP – Acórdão 95758 – Processo 0000399-12.2016.8.03.0001 – rel. Juiz Convocado Eduardo Freire Contreras – julgamento em 16/5/17; 6) TJ/RO – Apelação 7018506-83.2018.822.0001 – julgamento em 18/6/20; 7) TJ/TO – MS 50065651420138270000 – rel. des. Marco Villas Boas – julgamento em 5/12/13; 8) TJ/SC – Apelação Cível 0300213-24.2018.8.24.0012 – 3ª câmara – rel. des. Ronei Danielli – julgamento em 19/3/19; 9) TJ/MG – Agravo de Instrumento 1000020026458001 – rel. des. Ângela de Lourdes Rodrigues – julgamento em 18/8/20; 10) TJ/PB – Agravo de Instrumento 0805593-22.2019.8.15.0000 – rel. Juiz João Batista Barbosa – julgamento em 22/9/20.

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*Bruno Santos Cunha é mestre em Direito do Estado pela USP. Master of Laws pela University of Michigan Law School. Procurador do município do Recife. Sócio de Urbano Vitalino Advogados.

*Flávio Germano de Sena Teixeira Júnior é advogado mestrando em Direito Público pela UFPE.

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