Migalhas de Peso

A ascensão justificadora de Dworkin, o pragmatismo e a LINDB: um convite à reflexão

Com o intuito de conferir maior segurança jurídica, a lei número 13.655/18 introduziu o consequencialismo no ordenamento, de modo que torna-se imprescindível analisar sua aplicabilidade.

2/10/2020

Imagem: Arte Migalhas.

Para alcançar a reflexão almejada, apresenta-se a teoria da ascensão justificadora (“justificatory ascent”), de Ronald Dworkin, tão somente com o intento de ilustrar um procedimento epistemologicamente adequado. Para tanto, tentaremos explicá-la a partir de um introito do metafórico juiz Hércules. Ato contínuo, passaremos à aclaração de uma vertente pragmatista para, enfim, concluirmos com um liame que vincule às recentes alterações feitas a nossa Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Sigamos por partes.

Juntamente com as criações do juiz boca-da-lei e do juiz Hermes, atribuídas respectivamente a Montesquieu e a Françoi Ost, é conhecida a representação do juiz Hércules, de Dworkin. Diz este que o juiz Hércules seria capaz de iniciar sua construção intelectual de fora para dentro, isto é, sua atividade teria dimensões intergalácticas (termo empregado pelo autor) como ponto de partida, encontrando a melhor justificativa possível para um direito geral, para questões metafísicas, epistemológicas, éticas e, inclusive, morais. Esse arcabouço de teorias perfectibilizaria, assim, a formação de um sistema arquitetônico maravilhoso.

Evidentemente, entretanto, que nenhum jurista consegue trilhar o supracitado caminho, sendo certo que, como mortais – em contraponto a Hércules -, raciocinamos no sentido oposto, ou seja de dentro para fora. Em outras palavras, partimos de um problema concreto específico, local, e passamos a criar objeções a nossas convicções com o fito de verificarmos o quão robustas e suficientes nossas posições são. Trata-se de verdadeiro atuar em consonância com uma responsável epistemologia moral (“moral epistemology”), utilizando aqui de outra abordagem dworkiana digna de aplausos1.

É neste ponto que vem à lume a ideia da ascensão justificadora, desenvolvida para o raciocínio moral – tal como a epistemologia moral acima mencionada -, mas que não encontra qualquer óbice em ser operacionalizada para qualquer atividade decisória, inclusive a judicial. Por meio daquela, reclama-se – em um modelo ideal – que o responsável por uma decisão terá o dever de pensar tanto para fora quanto sejam a complexidade e a importância da questão que se põe. Portanto, a continuidade dessa generalidade de objeções deverá ser proporcional à importância e à complexidade da questão.

Uma forma simples de simbolizarmos a teoria da ascensão justificadora é pensarmos em um círculo. Seu diâmetro (ou, se preferir, seu raio – que representa a metade daquele) deverá ser majorado a partir de questionamentos, isto é, de “testes” que o sujeito que desenvolve a ideia deve lançar face a sua construção decisória originária.

Nesta concatenação, quanto mais complexa e importante for a questão a ser decidida, maior deve ser a quantidade de indagações a serem engendradas com o intento de analisar a idoneidade da posição – e, para efeitos de nossa representação simbólica, maior será o diâmetro do círculo (analogicamente a uma força centrífuga, com sua produção de movimento “de dentro para fora”).

Explicitada a ideia de ascensão justificadora, avancemos para o pragmatismo. Este ostenta três características fundamentais, quais sejam, o contextualismo, o anti-fundacionismo e o consequencialismo. O primeiro implica que toda proposição seja julgada a partir das necessidades humanas e sociais. O segundo emprega a rejeição da metafísica, de conceitos abstratos, de categorias apriorísticas, dentre outros tipos de raciocínios análogos para o pensamento.

O que nos importa aqui é seu terceiro pilar: o consequencialismo. Este tem o condão de antecipar consequências e resultados possíveis, isto é, antever quais resultados serão mais satisfatórios, úteis ou benéficos. A título de complementariedade, tem-se que o consequencialismo se contrasta com o raciocínio deontológico2, que ordena que às vezes precisamos agir mesmo quando consequências piores serão geradas.

Pensemos na estrutura pragmatista idealizada por Richard Posner, defensor moderno dessa corrente e que amolda sua teoria moral e jurídica sob um viés antiteórico - é de bom alvitre salientar que a ideia aqui não é examinar detidamente a posição de Posner ou qualquer outra formação teórica pragmática, mas apenas apresentar uma ideia que faculte a compreensão final da reflexão.

Basicamente, Posner defende que a decisão judicial deve ser guiada pela comparação das consequências de resoluções alternativas do caso, e não por um processo lógico ou formal que utilize materiais canônicos da tomada de decisões judiciais - como o texto legal ou constitucional e decisões judiciais anteriores. Não é difícil encontrar definições do que toma por pragmatista em suas obras. São suas palavras:

 “The pragmatist […] regards adjudication, especially constitutional adjudication, as a practical tool of social ordering and believes therefore that the decision that has the better consequences for society is the one to be preferred.”

Em livre tradução: O pragmatista [...] vê a decisão judicial, sobretudo a constitucional, como um instrumento prático de ordenação social, e acredita, portanto, que a decisão que trouxer as melhores consequências para a sociedade é aquela que se deve preferir.3

Em outra obra, logo após tecer duras críticas ao sistema da common law - pelo que entende como “deferência do direito em relação ao passado à custa do presente e do futuro” -, Posner arremata:

“[…] juiz pragmático, cujo desejo é decidir seus casos da maneira que melhor promova, dentro das limitações do papel do juiz, os objetivos da sociedade. [...] Num sentido excêntrico, mas que considero válido, o pragmatismo é uma reação à dificuldade de resolver questões histórias polêmicas.”4

Dworkin, em sua obra Justice in Robes, também apresenta uma definição para o pragmatismo:

 Pragmatism is most easily and generally described as a theory of adjudication: it holds that judges should always decide the cases before them in a forward-looking, consequentialist style.”5

Em livre tradução: Uma descrição mais fácil e geral do pragmatismo consiste em apresentá-lo como uma teoria da decisão judicial: seus postulados sustentam que, para decidir os casos que se lhes apresentam, os juízes devem recorrer a um estilo consequencialista e voltado para o futuro. (Grifo nosso)

Nesse momento é que podemos associar o Decreto-Lei 4.657 de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) ao conteúdo ora tratado. A Lei número 13.655 de 2018 incluíra, dentre outros, o artigo 20 naquele, o qual prevê, in verbis: Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

A mens legis merece elogios, não havendo dúvidas de que buscara maior segurança jurídica e eficiência na aplicação do direito. Todavia, a grande questão que se descortina, e que nos convida a refletir, diz respeito a perquirir o real significado de “consideradas as consequências práticas da decisão”. Em outros termos, aparentemente nenhuma faceta consequencialista foi erigida pelo legislador, o qual empregou uma previsão vazia e relegou sua eleição ao livre alvedrio de quem decidirá a questão.

Além disso, torna-se dificultoso aliar uma posição epistemologicamente responsável, a exemplo da ascensão justificadora que fora trazida a título de ilustração, com o consequencialismo. Diz-se isso em razão do raciocínio consequencialista ter em vistas calcular resultados práticos, ainda que ao custo de afastar compromissos com precedentes ou até mesmo com normas postas. Isto tudo sem falar no eventual solipsismo que vem à reboque, tendo em conta que “melhores consequências” são relativas.

Posner afirma que a abordagem pragmática é progressista e empírica, sendo certo que diferentes vieses podem alicerçar tal raciocínio jurídico. Em uma ótica mais específica, os escólios de Dworkin6 enfatizam que um consequencialista afirma que jamais somos ordenados a agir de uma maneira que gere consequências piores. Com efeito, outras concepções podem ser inseridas no conjunto das teorias consequencialistas.

Podemos mencionar uma visão adepta do bem-estar social ou mesmo utilitarista como constituindo o escopo do encarregado pela decisão. Leciona Dworkin que um defensor utilitarista do bem-estar social toma como verdade que uma lei ou decisão judicial só torna determinada situação melhor se, no conjunto ou na média, resultar na melhora da situação das pessoas.

Como quer que seja, o entrave que surge é o de perscrutar qual parâmetro deverá ser manejado para avaliar tal melhora. A propósito, em tempos de pandemia, é possível pensarmos em variados exemplos. Imaginemos no aspecto judicial. Um julgador que tome por base um enfoque econômico-financeiro como critério de efetivação do que levaria a um maior bem-estar, de modo que sua justificativa seja no sentido de que o aquecimento do setor faz com que renda circule, evitando fechamento de estabelecimentos e seus consectários nefastos, inexoravelmente consideraria que as consequências de sua decisão seriam as melhores possíveis.

Por outro lado, um juiz que tomasse a saúde e a vida como critérios de efetivação do maior bem-estar, no mesmo cenário, certamente chegaria à conclusão de que a manutenção do fechamento do comércio preencheria melhor tais vetores. Afinal, a consequência de sua decisão é o fato de que menos pessoas terão contato umas com as outras, o que diminuiria, ao menos em tese, a tendência de propagação do vírus, o que reduziria a taxa de óbitos em alguma parcela.

Em uma gama de milhares de exemplos possíveis, citemos um terceiro que envolva diretrizes políticas. Um juiz poderia se valer tão somente da investigação consequencialista dos impactos políticos de sua decisão, afinal, um panorama político estável encerra a estabilidade social como consectário natural, o que envolve aspectos jurídicos diretamente. Assim, o julgador pode tomar como esteio a posição do gestor público no que tange à determinada postura municipal, bem como com sua popularidade mais ou menos arranhada pelo fator em tela. Independentemente do mérito, identifica-se como defeso excluir a perspectiva política de uma análise consequencialista.

O crucial a ser observado é que na tríade de hipóteses, todos os julgadores consideraram as consequências práticas de suas decisões em uma comparação de resultados. O que ressoa de forma hialina, a partir do que foi exposto, é que as percepções pessoais incidirão intensamente nesse esforço hermenêutico, o que respalda um verdadeiro convite à ilegalidade.

O grande impasse que se vislumbra, portanto, é justamente o alto grau de subjetivismo de todas essas posições, além da erosão de uma postura sistêmica epistemologicamente responsável, uma vez que o importante é tão somente realizar uma prognose das consequências práticas quando do ato decisório - o que é carente de significado, já que o atuar é desprovido de métricas pressupostas, isto é, de orientações.

Nesta entoada, a tentativa legislativa de reforçar a segurança jurídica a partir da mera previsão positivada configura-se como inócua e até mesmo contraditória. O pragmatismo, essencialmente por força de seu arrimo no consequencialismo, não se importa com a coerência lógica de um sistema jurídico, pois seu olhar para o futuro almeja decisões consequencialmente corretas com ditames nas necessidades sociais daquele momento histórico.

É indubitável que tomadores de decisões devem levar em consideração as consequências de seus atos, mas só podem fazê-lo na medida em que ostentem princípios jurídicos como bússolas, de maneira que o norte do instrumento exprima quais consequências são pertinentes e qual a forma adequada de avaliá-las. Apenas nesta conformação é que diretrizes subjetivas serão afastadas e a efetividade outrora buscada será, de fato, concretizada – mister mediante um procedimento epistemologicamente adequado, em correspondência à ascensão justificadora.

Uma sugestão aparentemente consentânea com a previsão positivada, e que ao mesmo tempo observe uma responsável composição intelectual quando da resolução decisória, parece consistir em uma concepção holística. Neste sentido, o CPC pode ser uma ferramenta imensamente útil, pois, ao prever que o juiz atenderá (em modo verbal imperativo) aos fins sociais e às exigências do bem comum ao aplicar o ordenamento jurídico - artigo 8º, - não deixou de catalogar princípios a serem respeitados, diversamente do dispositivo introduzido pela Lei 13.655/2018.

Para além de outras prescrições normativas, não olvidemos o importantíssimo artigo 926, também do diploma processual civil, com sua imposição de estabilidade, integridade e coerência. Novo desafio surge: aliar eventual papel criador do postulado pragmatista com a manutenção imposta pelo último artigo referido. Pensa-se que a relação necessária é no sentido da limitação daquele por este. Encerro citando - como não poderia deixar de ser - uma passagem, de Dworkin, que cai como uma luva:

In many – probably most – hard cases, however, it will not help simply to say that judges must think about consequences, because the nerve of the controversy is how those consequences should be assessed7

Em livre tradução: Em muitos – talvez na maioria – dos casos difíceis, contudo, não será útil simplesmente afirmar que os juízes devem pensar nas consequências, pois o ponto nevrálgico da controvérsia é o modo como essas consequências devem ser avaliadas.

__________

1- DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. The Belknap Press of Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts. London, England, 2011.

2- De acordo com Miguel Reale: “A deontologia jurídica é a indagação do fundamento da ordem jurídica e da razão da obrigatoriedade das normas de Direito, da legitimidade da obediência às leis, o que quer dizer indagação dos fundamentos ou dos pressupostos éticos do Direito e do Estado”. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo. Saraiva, 2002.

3- POSNER, Richard A. Breaking the Deadlock: The 2000 Election, the Constitution, and the Courts. Princeton University Press, 2001.

4- POSNER, Richard A. Fronteiras da Teoria do Direito. São Paulo. WMF Martins Fontes, 2011.

5- DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. The Belknap Press of Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts. London, England, 2006.

6- Ibid.

7- Ibid.

__________

*Baldomero Cortada de Oliveira Bello é advogado especializado em Direito Civil, Contratual e Processual Civil. Possui Pós-Graduação pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ (Especialização em Direito Público e Privado) e cursa Pós-Graduação em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ.

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