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Liquidação do dano extrapatrimonial: Avanços e retrocessos no método bifásico do STJ

segurança jurídica configura bem fundamental em um ordenamento, expressa, antes de tudo, nas próprias decisões dos magistrados.

30/9/2020

A temática do dano extrapatrimonial tomou maior vulto no ordenamento brasileiro com a Carta Constitucional de 1988. Nesse momento, o constituinte concretizou a orientação jurídica adotada pela doutrina e jurisprudência, admitindo, por fim, a reparação civil oriunda de danos à esfera existencial do indivíduo. A Constituição Federal consagra “o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), como uma cláusula geral de tutela da personalidade”1, e, a partir de então, reputa ilegítimos, ou melhor, injustos, os atos que lesem a esfera de condição humana. Os incisos V e X do extenso artigo 5º representam desdobramentos naturais de tal proteção geral, e concretizam a ressarcibilidade dos danos extrapatrimoniais. Em seguida, a promulgação do Código Civil de 2002 reforçou o reconhecimento do dano moral oriundo de ato ilícito (artigo 186), e selou, de vez, as discussões que incendiaram a doutrina na vigência do Código anterior.

No entanto, o legislador, ao positivar tal entendimento jurídico, não exauriu o regime de aplicação do instituto, ainda tortuoso e controvertido. Mais precisamente, o tema da liquidação do dano moral é fantasma permanente nos tribunais brasileiros, que engatinham no assunto e, por vezes, transparecem posição duvidosa. O Código Civil limitou-se, em seu artigo 944, a determinar a medida da reparação civil como a extensão do dano (princípio da reparação integral da vítima), e assim o fez satisfatoriamente. Cabe à doutrina, contudo, estabelecer os parâmetros a serem empregados pelo Judiciário na apuração do quantum debeatur2, no esforço de se reduzir as incertezas do ambiente jurisdicional. A segurança jurídica configura bem fundamental em um ordenamento, expressa, antes de tudo, nas próprias decisões dos magistrados.

Por isso, o Superior Tribunal de Justiça tem se esforçado em construir trajeto sólido para assentar suas decisões, e evitar, ao máximo, utilizar critérios puramente subjetivos que tendem a mover ações de dano extrapatrimonial. É válido sublinhar, antes de tudo, que “a Corte tem a palavra final nos valores indenizatórios do dano moral, e assumiu a tarefa de consolidá-los, daí a importância de estudar sua jurisprudência”3.

Em dissonância com decisões de alguns tribunais do país, o STJ vem “rejeitando reiteradamente o sistema tarifado por considerá-lo em desacordo com a Constituição Federal de 1988”, deixando “a cargo do juiz o arbitramento da indenização”4. O tabelamento dos quantuns finais devidos, por similitude entre os casos, não condiz com a necessidade criativa e específica que a Corte avalia ser inerente ao exercício da majoração. O método adotado pelo STJ é intitulado bifásico, e se divide em fases bem delimitadas. Primeiramente, são analisados o interesse jurídico lesado e um grupo de precedentes, concluindo-se um valor base. Em seguida, o julgador verifica as circunstâncias particulares do caso para, enfim, fixar o quantum definitivo. “Julgados anteriores já ponderavam esses dois grupos de fatores na busca de uma solução que (...) evitasse reparações irrisórias e o enriquecimento sem causa”5.

Na primeira fase, aplica-se um critério de “justiça comutativa”, por meio do qual casos semelhantes são tratados com razoável igualdade. Casos distintos, por analogia, recebem tratamentos diversos. O interesse jurídico lesado, portanto, é analisado à luz de decisões judiciais próximas ou quase idênticas, das quais se extrai um valor base usualmente arbitrado. “É indispensável o preenchimento de outro parâmetro (“justiça comutativa”)6, no intuito de se impossibilitar a inapropriada tarifação do interesse jurídico, sob pena de objetificação do direito da personalidade violado”7.

Na segunda fase, há aumento ou redução do valor básico estipulado, considerando-se as circunstâncias específicas do caso concreto. Realiza-se, nas palavras do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, um “arbitramento efetivamente equitativo”, pois respeita as particularidades da situação. Para o magistrado, o Direito Positivo brasileiro evoluiu de tal forma a amparar tal arbitramento, como ocorre no artigo 953, parágrafo único do Código Civil, em que o legislador autoriza o juízo equitativo para liquidar danos de injúria, difamação ou calúnia quando não se puder provar seus efeitos materiais. Seguido por entendimento do ministro Luis Felipe Salomão, Sanseverino enuncia algumas circunstâncias analisadas pela Corte, tais como: a gravidade do fato em si; a atuação culposa do ofensor e/ou da vítima; as condições pessoais do lesado; e as condições econômicas das partes. Constituem, evidentemente, critérios objetivos empregados pelo STJ, os quais representam as tendências de uniformização da jurisprudência da Corte.

A atividade do STJ já apontava para o “método bifásico”, antes mesmo de a Corte adotá-lo, por definitivo, em sua rotina. A ministra Nancy Andrighi, na sede do REsp 710.879, em que se buscava quantificar os danos morais oriundos da morte de passageiro de transporte coletivo, apresentou compreensão relativamente recente acerca do tema. Na ementa do julgado lê-se tese jurídica que bem resume a atuação da Corte nos últimos anos: “Ao STJ é dado revisar o arbitramento da compensação por danos morais quando o valor fixado destoa daqueles estipulados em outros julgados recentes deste Tribunal, observadas as peculiaridades de cada litígio”8.

As vantagens do método utilizado são visíveis e representam intenção jurídica a ser perpetuada no âmbito do Judiciário, a fim de reduzir, ao máximo, as arbitrariedades. A primeira fase apresenta conclusão equitativa em concordância aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, a serem aplicados na atividade jurisdicional. O julgador “busca se valer da jurisprudência de forma minuciosa, classificando-a a partir de uma análise qualitativa” e da “determinação dos valores médios indenizatórios a partir de uma análise quantitativa”9.

A expressão “gravidade do fato”, contudo, deve ser substituída por “dimensão do dano”, em clara adequação ao princípio da reparação integral da vítima que ordena o instituto da responsabilidade civil. “A lesão aos interesses merecedores de tutela deve ser configurada, em toda a sua extensão (...), independentemente de a conduta do ofensor ter sido mais ou menos grave”10. Mesmo assim, prevalece o avanço ironicamente representado pelo uso da expressão, que encerra, sem dúvida, análise da extensão do dano, em sentidos materiais e existenciais.

As condições pessoais do lesado, dentre todos os critérios enunciados, representam o parâmetro objetivo mais adequado de que o STJ se vale em sua jurisprudência pioneira. Verdade seja dita, são frequentes decisões em que se aplicam concepções predeterminadas acerca das qualidades do lesado. Por vezes, por exemplo, “vítimas com alto poder aquisitivo ou relevância política tendem a receber valores maiores a título de compensação, ao passo que vítimas de menor padrão socioeconômico recebem quantias menores”11. Tal avaliação é equivocada, por certo, mas não contamina a importância que o critério ostenta. Analisar as condições pessoais da vítima significa, em simples palavras, compreender como o ato ilícito afetou a dignidade pessoal do lesado, retornando, mais uma vez, à relevância que a extensão do dano apresenta para o estudo de cada caso.

Os retrocessos do método bifásico são, entretanto, latentes. A atuação culposa do ofensor não deve nortear a majoração do dano moral, por representar flagrante violação ao artigo 944, caput, do Código Civil de 2002. Além disso, “o critério (...) atribui caráter punitivo ao sistema de responsabilidade civil, o qual deve ser afastado”12. A ordem civil-constitucional brasileira consagra o caráter reparatório do instituto, num esforço de a indenização representar retorno ao status quo ante, ou seja, momento anterior ao ato ilícito e seu consequente dano. Dessa forma, não há lugar para aspectos punitivos no regime de reparação civil, não devendo o julgador cogitar da dimensão da culpa ou dolo para liquidar o dano. O STJ, em repetidas ocasiões, aplicou fórmulas que pouco condizem com o peso da culpa nesse regime. Exemplo emblemático é a tese de que “o ofensor deve pagar mais se agiu com dolo ou maior negligência, imprudência ou imperícia”13. Configuram entendimentos equivocados, como já referido.

Há, entretanto, hipóteses dispostas no artigo 944, parágrafo único, e artigo 945, em que o juiz pode reduzir ou aumentar a indenização, respectivamente, nos casos de desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, e de concorrência culposa da vítima. Representam exceções expressas no âmbito de avaliação da culpa na liquidação, devendo ser aplicadas com cuidado. Nem por isso, devem servir como critério objetivo básico para o julgador. São dispositivos de aplicação final, vale dizer, e não inicial, como buscam significar os critérios do método bifásico.

A avaliação das condições econômicas das partes também esbarra no princípio geral da reparação integral da vítima (restitutio in integrum)14, revelando-se mais como uma punição ou ensinamento ao ofensor do que propriamente um critério objetivo de ressarcimento.

O sofrimento da vítima também é critério algumas vezes adotado pelos ministros do STJ (em sede de liquidação), e merece contundentes críticas. “Tanto a doutrina quanto a jurisprudência entendem ser incabível, em determinados casos, exigir-se prova do sofrimento daquele que se diz ofendido, já que, em diversas situações, a perturbação moral causada pela ofensa passa-se na psique humana, isto é, no interior da própria vítima”15. O caráter in re ipsa16 do dano extrapatrimonial dispensa a necessidade de sua comprovação, ensejando presunção judicial de sua ocorrência. Por extensão lógica e relembrando o objetivo ressarcitório da responsabilidade civil, conclui-se pela rasa utilidade de aplicação desse critério. Medir o sofrimento da vítima é tarefa difícil não apenas para provar dano efetivo em sua esfera de dignidade humana, mas, também, para quantificar sua atuação.

Por fim, vale reconhecer que o método bifásico, por mais imperfeito, representa relevantíssimo avanço jurisprudencial em nosso país. Em matéria de danos extrapatrimoniais, a Corte assume posição pioneira para os diversos tribunais do ordenamento, e, por isso, merece elogios pela atuação incansável, por no mínimo trinta anos. “As críticas doutrinárias aos critérios do STJ poderiam facilmente ser combinadas com o método bifásico (não aplicando critérios punitivos na segunda fase, por exemplo)”17. Entre avanços e retrocessos, o Superior Tribunal de Justiça constrói tese jurídica concreta para o futuro da jurisprudência brasileira, em uma corajosa postura de ser, a um só tempo, elogiado e criticado pela Doutrina, como deve funcionar o Judiciário, sempre aberto às inovações e melhorias do Direito.

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1 “Instituições de Direito Civil, Vol. I, Introdução ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil” página 202

2 Quantia devida

3 “A quantificação do dano moral segundo o Superior Tribunal de Justiça”; Clique aqui ; página 2

4 “A aplicação do dano moral de acordo com a jurisprudência do stj”; Clique aqui 

5 “O método bifásico para fixação de indenizações por dano moral”; Clique aqui 

6 Grifo próprio

7 “A Valoração Do Dano Moral Pelo Poder Judiciário: A Concreção Do Dano Experimentado Pela Vítima A Partir Da Propositura De Um Método Objetivo De Valoração”; Clique aqui ; página 304

8 Superior Tribunal de Justiça STJ – RECURSO ESPECIAL: REsp 710879 MG 2004/0177882-4; Ementa

9 “A Valoração Do Dano Moral Pelo Poder Judiciário: A Concreção Do Dano Experimentado Pela Vítima A Partir Da Propositura De Um Método Objetivo De Valoração”; Clique aqui ; página 306

10 “Fundamentos do Direito Civil, Vol. 4, Responsabilidade Civil”, página 45

11 “A quantificação do dano moral segundo o Superior Tribunal de Justiça”; Clique aqui ; página 7

12 “Fundamentos do Direito Civil, Vol. 4, Responsabilidade Civil”, página 45

13 “A quantificação do dano moral segundo o Superior Tribunal de Justiça”; Clique aqui ; página 6

14 Restituição integral

15 “O dano moral in re ipsa e sua dimensão probatória na jurisprudência do STJ”; “Revista dos Tribunais Online”; página 2

16 da própria coisa; presumido

17 “A quantificação do dano moral segundo o Superior Tribunal de Justiça”; Clique aqui ; página 9

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ARAÚJO, Rodrigo Queiroz de. “A aplicação do dano moral de acordo com a jurisprudência do stj”; Clique aqui 

CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. “O dano moral in re ipsa e sua dimensão probatória na jurisprudência do STJ”; “Revista dos Tribunais Online”

COUTO, Igor Costa; SILVA, Isaura Salgado; “A quantificação do dano moral segundo o Superior Tribunal de Justiça”; Clique aqui , “revista eletrônica de direito civil”

Código Civil de 2002, artigos 186, 944, 945 e 953

Constituição Federal de 1988, artigos 1o e 5o

GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde. “Fundamentos do Direito Civil, Vol. 4, Responsabilidade Civil”

PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Instituições de Direito Civil, Vol. I, Introdução ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil”

REIS, Clayton; ROCHA, Debora Cristina de Castro da; ROCHA, Edilson Santos da. “A Valoração Do Dano Moral Pelo Poder Judiciário: A Concreção Do Dano Experimentado Pela Vítima A Partir Da Propositura De Um Método Objetivo De Valoração”; Clique aqui 

STJ. “O método bifásico para fixação de indenizações por dano moral”; Clique aqui 

Superior Tribunal de Justiça STJ – RECURSO ESPECIAL: REsp 710879 MG 2004/0177882-4

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*Thiago Liberato é graduando no curso de Direito na PUC/Rio.

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