As transformações sociais naturalmente irrompidas com avançar dos anos vêm impactando fortemente na qualidade da relação paciente-médico. As razões são variadas e se somam. A começar pelo espírito democrático e humanístico da Constituição de 1988, que assegura a todos o direito à informação (em nome da autodeterminação como direito fundamental) e meios concretos de efetivação do direito à saúde. Em sequência, foi promulgada a Lei de Proteção e Defesa do Consumidor, que, a propósito, é aplicada para reger as relações entre profissionais da saúde e pacientes, a teor do entendimento do Superior Tribunal de Justiça. O status de consumidor impele o paciente a agir como tal e, o médico, por sua vez, tem temor de ser processado. O avanço tecnológico, a superespecialização, a virtualização e os atendimentos em massa na medicina também têm contribuído no esmorecimento do vínculo.
Infelizmente, a atmosfera de desconfiança existe. Os pacientes, por vezes, sem nenhuma má-fé, entram nas consultas acreditando que o atendimento será insuficiente e rápido demais. Ainda ficam intrigados quanto às indicações, prescrições, ocultação de falhas e adequação do valor dos honorários cobrados. O médico, conquanto ciente de que está prestando um serviço de excelência, trabalha com medo de a sua honra ser maculada na imprensa e em processos administrativos, éticos e judiciais movidos e que tem aumentado exponencialmente a cada ano. Somado a isso, teme sofrer desfalques em seu patrimônio econômico, em razão das substanciosas indenizações.1
O que deve ficar claro neste texto é que não há parte certa ou errada nesse sítio relacional. Não há médico vilão e paciente mocinho (e vice-versa). Parte boa ou má. Nem um nem outro tem culpa pelo fenômeno da judicialização. Ambos, por excelência, são vítimas de um complexo sistema conjuntural.
Fato é que a predisposição litigiosa levou vários médicos e pacientes a lançarem mão de instrumentos e estratégias probatórias precoces, como gravações em áudio ou vídeo das consultas, exames e procedimentos. A esmagadora maioria grava a consulta sem nenhum tipo de ardil ou malícia.
Dentre essas medidas, as maiores controvérsias residem na licitude e eticidade das gravações captadas nos atendimentos. As principais dúvidas dos profissionais da saúde são: O paciente tem o direito de gravar a consulta sem pedir autorização ao profissional? E o médico, também teria o direito de gravar sem o consentimento do paciente?
Antes de tudo, vale relembrar que a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem e a voz das pessoas são bens especialmente tutelados pela Ordem Jurídica Pátria, tanto é que o ofendido tem assegurado o direito à indenização pelos danos morais e materiais que advierem de sua violação, consoante a dicção inferida do art. 5º, X, da Constituição Federal.2
Além disso, o Código Civil, em seus artigos 20 e 21, reforça a inviolabilidade desses direitos da personalidade, destacando que a vítima, além das indenizações pertinentes, tem a guarida do Estado caso demostre que tenha sofrido exposição indevida de sua imagem ou caso aponte que está na iminência de violação. Portanto, “o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.3
Em outras palavras, esses artigos do Código Civil explicitam que a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderá ser proibida - por meio de uma ação judicial de Tutela Inibitória dos Direitos da Personalidade - a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
O Código de Ética Médica prevê que é vedado ao médico “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.” Assim, note-se que o dispositivo deontológico visa resguardar a intimidade do paciente, um dos valores constitucionais mais caros.
Assim, se por um lado, há dúvidas sobre a licitude ou não da gravação de consultas e procedimentos sem o consentimento do outro interlocutor, por outro, há muitas certezas do caráter ILÍCITO da conduta consistente em divulgar a terceiros tal material (que podem, inclusive, caracterizar crimes contra a honra do CP), a menos que médico e paciente o utilize para suas defesas em processos administrativos e judiciais. Isso porque, ambos, paciente e médico, possuem o direito de que suas intimidades, nome e honra sejam preservados.
Passemos, então, à análise técnica da controvérsia. O paciente tem o direito de gravar consultas e atendimentos sem a autorização do profissional prestador do serviço? E o médico, pode gravar sem informar o paciente?
Quanto ao paciente, a resposta é afirmativa. Ou seja, o paciente não precisa obter o consentimento do médico para gravar, pois, a teor do que prescreve o Superior Tribunal de Justiça, a gravação, por si, não induz à ato ilícito (não caracteriza prova ilícita em uma demanda criminal ou cível), ainda que seja realizada sem o conhecimento do profissional.
Com efeito, em 2004, o embate acerca da gravação de diálogos entre médico e paciente chegou ao STJ (Processo: MC 7.625), cuja Corte decidiu que tal expediente não se configura fonte de prova ilícita. Julgou, inclusive, que o áudio ou vídeo gravado por paciente, pode servir como prova no processo.
Segunda consta no julgado, "nada há de imoral nessa gravação, mesmo que da gravação não tivessem ciência os outros interlocutores. O autor (U.A.L.) apenas registrou em gravação magnética a própria conversa mantida com os médicos que lhe prestaram um serviço de assistência à saúde".
O que não pode ocorrer, registra-se, é a interceptação de conversa de terceiros ou gravações ambientais clandestinas, a exemplo das escutas telefônicas ou de colocação de microfones para gravar determinado diálogo entre pessoas.
Para exemplificar, em uma conversa entre “A” e “B”, se “A”, o paciente ou seu representante legal, grava esse diálogo, a prova é considerada lícita (válida). Em outra situação, em uma conversa mantida entre “A” e “B”, se “C” (terceiro que não está participando do diálogo) a grava, sem o conhecimento dos interlocutores e sem autorização legal para tanto, atesta-se a ilicitude da prova, por ser considerada escuta ambiental.
Enfim, o paciente que grava a consulta sem informar o médico não age ilicitamente, estando, assim, no legítimo exercício regular de direito seu. Lembremos que o direito de gravar não confere ao paciente o direito de publicar o conteúdo da filmagem ou da gravação a terceiros (redes sociais, Whatsapp, imprensa, amigos, colegas de trabalho, etc...), porque aí estaria lesando bem jurídico alheio, no caso, violando a intimidade do profissional da medicina.
Nessa ordem de ideias, se o paciente fizer uso indevido dessa gravação, sem que haja autorização prévia do outro interlocutor (no caso, o médico), o profissional poderá se valer do instituto da responsabilidade civil, para que seja indenizado dos danos extrapatrimoniais experimentados, por violação aos seus direitos fundamentais (intimidade, vida privada, voz e imagem) assegurados pela Constituição Federal, sem prejuízo de repercussões na esfera criminal.
Cumpre observar que, se o médico perceber que a consulta está sendo gravada, tem a prerrogativa de suspender e rescindir o contrato, motivado pela quebra da confiança, desde que, igualmente, não se trate de urgência e emergência (pois, nesses casos o dever de agir é imperativo), de acordo com o § 1º do artigo 36, do Código de Ética Médica4.
Em 2016, o Conselho Federal de Medicina, (CFM, Despacho SEJUR 386/16), pontificou que a gravação feita pelo paciente está condicionada à autorização do médico. Nesta mesma normativa, de forma acertada, deixou assente o direito de o médico recusar o atendimento nessas condições. Por fim, destacou que o profissional tem o direito da preservação da sua imagem caso a gravação ocorra (ou por meio oculto ou por autorização médica).
Vale considerar que a tentativa de registro pode se dar por insegurança do paciente ou até mesmo para reforçar em sua memória as orientações feitas na consulta (em raríssimos casos por má-fé). De qualquer modo, se o médico perceber eventual gravação e mal estar, pensamos que é o momento adequado para tentar pacificá-lo, por intermédio de uma interlocução clara e segura (antes de suspender o atendimento), e buscar entender as razões do paciente.
Recomendamos aos profissionais que implementem em seu fluxo de trabalho, além do diálogo aberto, paritário e informativo, documentos que visem robustecer a autonomia e o senso de cooperação do paciente, com regras claras quanto aos seus deveres, buscando-se sempre a tomada de decisão compartilhada. Pode-se utilizar também um Non-Disclosure Agreement - NDA (com cláusula de não revelação), por exemplo, o qual demonstrará logo ao paciente que esse possui o dever jurídico de preservar a imagem e a voz do médico, sendo proibido compartilhar com terceiros as consultas e procedimentos. Essa consciência, sem dúvida, reduz as chances de o paciente expor o material gravado, evitando ilícitos danosos. É uma forma, assim, de prevenir a responsabilização civil. Nesse mesmo termo, o médico pode também enfatizar por escrito o seu próprio dever de sigilo profissional, o que conferirá equilíbrio na relação.
Impende pontuar que o direito do paciente à gravação é limitada à relação com o médico, sendo ilícita se realizada na presença de terceiros, como profissionais não vinculados ao caso e pacientes, os quais tem direito à tutela de sua intimidade.
Para finalizar a primeira parte do artigo, concluímos que, malgrado se trate de ato permitido pelo Direito, entendemos que a gravação feita pelo paciente, sob o ponto de vista bioético, em uma primeira análise, não se apresenta como a medida mais acertada, pois essas iniciativas, a depender do caso concreto, pode desencadear suspeitas e estremecimentos no elo recíproco de confiança, o que não se coaduna com a fidúcia, que é elemento fulcral na relação médico-paciente5. Se o paciente estiver inseguro quanto à condução terapêutica, é muito mais benéfico que dialogue com o seu médico, no sentido de expor suas angústias, dúvidas e anseios. A relação, daí, tende a se solidificar e, por consequência, as chances de sucesso no tratamento são bem maiores. Por outro lado, a ideia da gravação não pode ser de plano rejeitada, especialmente quando desenvolvida para conferir ao paciente maior autonomia e participação em seu tratamento.
Feita à análise do comportamento do paciente, passa-se à avaliação da licitude e eticidade da conduta do médico (consistente em gravar consultas de forma oculta)
Pois bem. Se fossemos seguir a mesma linha intelectiva adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no processo em que decidiu ser lícita a gravação feita pelo paciente sem a permissão do médico, a resposta, a priori, por um critério justo e de coesão ao sistema, seria a de que o médico também ostentaria tal direito (gravar sem autorização), pelo menos, até bem pouco tempo antes da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados.
Com a promulgação e vigência da LGPD em nosso Sistema Jurídico, o médico, assim como todos os profissionais e Organizações da saúde devem obediência aos ditames da lei, que estabelece critérios para o adequado tratamento de dados das pessoas naturais. No art. 11º e seus incisos estão elencadas as hipóteses que permitem o tratamento de dados sensíveis, estando incluída nesse rol de admissibilidade (inciso II, f) a autorização para tutela da saúde.
Depreende-se, então, que o médico, no melhor interesse do paciente, possui amparo legal para gravar a consulta, para que tenha disponível a integralidade das principais informações auferidas do diálogo, a fim de que elabore em favor do paciente condutas diagnósticas e terapêuticas mais seguras e direcionadas, cujo material deverá ser anexado ao prontuário (de papel ou eletrônico), podendo ser consultado pelo profissional e/ou pelo paciente.
Feitos esses esclarecimentos, sigamos para outra indagação. O médico é obrigado a coletar o consentimento do paciente para gravar a consulta?
Segundo se infere da leitura do art. 11, II, f, da LGPD, o consentimento não é obrigatório quando o tratamento é indispensável para assegurar a tutela da saúde, quando realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária.
Contudo, se por um lado a interpretação literal da lei é no sentido de que não há obrigatoriedade de obtenção do consentimento do paciente para tratamento de seus dados de saúde (pois necessários para condução do tratamento), de outro, não se pode perder de vista que a Lei impõe outros deveres aos controladores/entes de saúde. A propósito, prescreve “que eventual dispensa da exigência do consentimento não desobriga os agentes de tratamento das demais obrigações previstas nesta Lei, especialmente da observância dos princípios gerais e da garantia dos direitos do titular”. (art. 7º, § 6º)
Tomemos como exemplo o dever de informar, estabelecido no art. 6º, I, da LGPD. Em deferência e obediência à boa-fé objetiva, o profissional fica obrigado a comunicar ao paciente os motivos que justificam a realização do tratamento/gravação (princípio da finalidade), o que deverá ser feito de forma específica e explícita. A modo de exemplo, deve o médico informar que a gravação será realizada com a finalidade de que nenhum dado relevante se perca e de que serão respeitadas a privacidade, a autodeterminação informativa, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania do paciente6.
Na prestação da informação, deve o profissional, além de justificar a necessidade e a finalidade específica da coleta (gravação), informar o paciente acerca do instrumento utilizado, o meio de armazenamento, a forma e a duração do tratamento (no caso, o paciente deverá ser alertado que o material ficará armazenado por 20 anos, em razão de imperativo legal), a identificação e as informações do controlador, possíveis usos compartilhados e a responsabilidade dos agentes que realizarão o tratamento. Além disso, deve-se assegurar ao assistido o acesso facilitado de seus dados, para consulta, segundo a dicção do IV, do art. 6º da LGPD, e testificar medidas de segurança para proteção dessa gravação contra uso de terceiros não autorizados e contra situações acidentais ou ilícitas.
O profissional ainda pode justificar a licitude da gravação com estribo no art. 11, da Lei em comento (exercício regular de direitos). Assim, sob o manto de estar no exercício regular de um direito seu, está legitimado a tratar os dados extraídos da gravação da consulta, para que exerça o ato médico com maior lastro de segurança ou como meio de se resguardar em caso de eventual processo administrativo ou judicial advindo da relação com o paciente.
Uma vez comunicado ao paciente que a consulta será gravada por áudio, vídeo ou instrumento audiovisual, há dois possíveis caminhos. Ou o paciente anui com o tratamento de seus dados nos moldes propostos pelo médico, ou então dissente.
Ocorrendo a segunda hipótese, ou seja, se o paciente não aceitar a gravação, pode o médico abrir mão da mesma (fazendo valer o desejo do paciente) ou mesmo optar pela renúncia em prestar atendimento a esse paciente, a menos que o caso denote situação de urgência e emergência.
Em síntese, apesar de lícita, defendemos que a gravação de consultas, seja pelo paciente ou pelo médico, ressalvadas as casuísticas, não é a alternativa mais adequada na perspectiva bioética para angariar informações e dados de saúde do paciente, pois capaz de afetar a confiança, núcleo indispensável e indissociável do contrato de prestação de serviços médicos. Os instrumentos mais eficazes para evitar processos e condenações continuam sendo o respeito mútuo, uma conversa transparente e aberta entre as partes, humanização no atendimento, somado ao cuidado de bem informar e ao dever de preenchimento adequado dos documentos dos pacientes.
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1 A profissão médica é intrincada e rodeada de externalidades como eventos adversos imprevisíveis ou sequelas decorrentes da própria doença, interação do paciente com os colaboradores de clínicas e hospitais e a própria relação com o paciente que podem gerar possibilidades de problemas judiciais (sejam processos cíveis de indenização e/ou criminais no Poder Judiciário), além de sindicâncias e processos ético-profissionais nos Conselhos de Classe e até mesmo processos administrativos disciplinares (os PAD’s) no âmbito da Administração Pública, quando um médico é questionado, por exemplo, da existência de um evento danoso em prestação de serviços de saúdo quando está desempenhando função pública em hospital público do qual é servidor estatutário ou contratado da EBESERH.
2 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
3 Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
4 Art. 36, § 1°, do CEM: Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder.
5 De acordo com o princípio da boa-fé objetiva contido tanto no CDC como no art. 422 do CC.
6 LGPD
Art. 4º Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais:
I - realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos;
Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
I - mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;
§ 6º A eventual dispensa da exigência do consentimento não desobriga os agentes de tratamento das demais obrigações previstas nesta Lei, especialmente da observância dos princípios gerais e da garantia dos direitos do titular.
Art. 8º O consentimento previsto no inciso I do art. 7º desta Lei deverá ser fornecido por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação de vontade do titular.
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