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Direito ao esquecimento, o conflito existente entre normas constitucionais e o julgamento de Aída Curi

Nesta quarta-feira, 30 de outubro, o STF julgará se existe o direito ao esquecimento no Brasil.

30/9/2020

A Constituição Federal de 1988 se estabelece, imprescindivelmente, como o centro de validade do sistema jurídico, possibilitando as compatibilidades formais e materiais dos demais ramos do direito aos preceitos constitucionais e, acima de tudo, dando embasamento à dignidade humana, com fundamento nos princípios da unidade do ordenamento e da supremacia da Lei Fundamental. Frente a isso, tem-se no ordenamento jurídico, forte discussão sobre a validade constitucional do denominado “Direito ao esquecimento”.  A vertente que ora se debate é o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos.

No Brasil, o direito ao esquecimento tem assento constitucional e legal, embora não explícito, embasado pelos direitos à privacidade, intimidade e honra respaldados pelo artigo 5°, X da Constituição e pelo Artigo 21 do Código Civil. Há autores que defendem, ainda, que o direito é uma derivação da dignidade da pessoa humana (Artigo 1°, III da Constituição Federal). O Código de Processo Penal Brasileiro contempla, em seu artigo 748, uma espécie de Direito ao esquecimento para os réus que cumpram suas respectivas penas, entretanto, esse esquecimento ocorre tão somente no âmbito de registros do Estado.  O conceito de direito ao esquecimento tem sido muito discutido no judiciário, devido ao enorme número de casos pedindo a remoção de conteúdo. De um lado tem a liberdade de expressão e informação. De outro lado, os direitos a honra, intimidade, privacidade e ressocialização. É um conflito de direitos fundamentais importantes. Direito ao esquecimento trata-se de uma ponderação de valores. É possível adotar ferramentas para proteger a liberdade de expressão sem expor as pessoas, sendo importante avaliar a utilidade social de determinada notícia.

E nesta quarta-feira, 30 de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará se existe o direito ao esquecimento no Brasil. O julgamento tem repercussão geral e deverá orientar outros tribunais. No caso do julgamento em questão será analisada a aplicação do direito ao esquecimento e também a possibilidade dos familiares poderiam reivindicarem o direito ao esquecimento. O assunto está atualmente em discussão no STF, por conta do Recurso Extraordinário n.º 1.010.606/RJ, que provavelmente definirá o entendimento da Corte sobre o tema. A realização de audiência pública representou um primeiro passo na abertura do STF ao tema, motivo pelo qual o precedente assumirá grande relevância.

Na ação figuram, de um lado, os irmãos de Aída Curi e, de outro, a empresa Globo Comunicação e Participações S/A, responsável pela Rede Globo. Aída Curi foi estuprada e assassinada no Rio de Janeiro em 1958. A família de Aída ingressou na Justiça requerendo indenização, com base no direito do esquecimento, por conta do episódio de seu crime reconstituído em 2004 pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Os familiares pedem uma indenização pela exploração da imagem de Aída no programa e afirmam lutar pelo reconhecimento do direito de esquecer a tragédia. O programa utilizou fotografias da época e apresentou uma simulação dos fatos, mais de 50 anos depois, com suas vidas em novo rumo e com a dor apaziguada pelos efeitos curativos de tão longo tempo.

Resta observar como a Corte encaminhará o caso a partir de agora e, se, ao fazê-lo, vai delinear os contornos de um conceito que pode ser eventualmente aplicado a uma enorme quantidade de processos, dada a abrangência de assuntos relacionados ao direito do esquecimento.

O tema voltou a ter grande repercussão midiática face ao “boom” da internet no mundo. A globalização, como forma de maior acesso à rede de computadores e, com isso, uma maior rapidez na divulgação e propagação de notícias e informações, faz com que os fatos ocorridos no passado sejam eternizados. O Jurista e Filósofo Francês François Ost descreve esse conflito existente entre a eternização dos fatos e o Direito de não mais ser perturbado pelo que fora ocorrido: “Uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído. ” (OST, François. O Tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005, p. 160).

Por vezes, um conceito garantidor vai de encontro a outro de mesmo nível, ou seja, ocorre uma impossibilidade de aplicação de um preceito constitucional sem descaramento de outro. Mais comumente é que um desses preceitos conflituosos seja o direito à informação.  A liberdade de expressão é uma das facetas do direito da personalidade, em razão de que a manutenção e desenvolvimento do homem tem por escopo a possibilidade de se socializar, de expressar seus desejos, seus pensamentos e suas opiniões. A manifestação de pensamento, tal como uma imprensa livre, são pilares para a construção de uma sociedade democrática, e um dos requisitos mínimos para o desenvolvimento do homem. A fim de proporcionar sua proteção, o conceito de liberdade de expressão deve ser analisado da forma mais extensa possível, englobando desde ideias, pontos de vistas, convicções, manifestações de opiniões até juízos de valor sobre qualquer assunto e proposições a respeito de um mesmo fato. Apesar do respaldo Constitucional, o direito de expressão e de pensamento não é um direito absoluto, isso porque nem tudo que seja praticado no suposto exercício de determinado direito encontra abrigo em seu âmbito de proteção.

Para solucionar o conflito da colisão entre os direitos fundamentais da liberdade de expressão e dos direitos de personalidade, deve-se atentar as peculiaridades do caso concreto. Isso é atribuído, principalmente, ao fato de não haver hierarquia entre as normas constitucionais. Cada caso concreto possui suas particularidades e, é em função delas, que devesse submeter cada caso a um processo de proporcionalidade, através do qual se chegará a uma solução congruente. Para que haja uma efetiva ponderação entre o conflito existente, necessário uma observação de determinados parâmetros, que o sejam: a veracidade dos acontecimentos, licitude do meio empregado na obtenção da informação, personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia, local do fato, natureza do fato, existência de interesse público na divulgação.  A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou a importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles, no caso concreto, prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro.

Por fim, por obra das diversificadas possibilidades colocadas à disposição dos meios de comunicação e da população em geral, para a captação e disseminação da imagem, correligionária a amplitude concedida pelo texto Constitucional, o qual coibiu qualquer possibilidade de censura, a discussão acerca da linha tênue entre o Direito ao esquecimento e a liberdade de expressão, montam um palco para uma discussão fervorosa e complexa. O direito ao esquecimento cuida de controlar a liberdade de expressão, conferindo àqueles que querem que determinado fato ocorrido em sua vida seja esquecido pela sociedade. Este direito ao esquecimento está intimamente ligado aos direitos de personalidade, que também estão previstos e protegidos pela Constituição Federal. Por consequência, há de ser sopesado o interesse das partes, no caso concreto, mas não se esquecendo, jamais, que mesmo diante de um episódio onde se queira que fato ocorrido fique tão somente onde aconteceu, a história deve ser demonstrada de modo fiel ao ocorrido, cabendo, portanto, à técnica legislativa, encontrar o justo equilíbrio e dar à adversidade o desfecho mais condizente ao fato, seja estabelecendo que as informações sejam eliminadas, seja compulsando as empresas que tenham as ferramentas adequadas a proporcionarem aos interessados uma forma efetiva no sentido de que retirem o conteúdo causador da violação dos direitos fundamentais da internet ou de outro meio de comunicação.

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*Rachel Leticia Curcio Ximenes é bacharel em Direito pela PUC-SP; Mestra e Doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP; Especialista em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista da Magistratura (EPM); Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP. Advogada do escritório Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.

 

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