Através de experiências profissionais com entidades de atuação coletiva, constatou-se uma curiosa peculiaridade do associativismo, aqui denominada de “medo do futuro”. Muito embora o termo usado para definir a situação seja autoexplicativo, esmiúça-se seu significado: tanto para as entidades de âmbito de atuação coletiva já em operação, quanto para aquelas que ainda nem foram criadas, é visível em seus potenciais ou efetivos integrantes profundos receios acerca da sua viabilidade.
Antes da criação da entidade, o receio é arregimentar interessados; se recém criada, o medo passa a ser que ela “não vingue”; Se vingar, a dúvida passa a ser se vai crescer; quando cresce, aflige-se em saber se vai conseguir se manter relevante com os desafios de cada coletividade, e por aí vai.
Ou seja, o leque de preocupações de quem envereda pelo coletivismo não deixa de existir em momento algum, o que é até algo bem-vindo, mesmo porque, volta e meia esse medo do futuro se mostra acertado, como ocorreu, por exemplo, em 2017, quando os sindicalistas viram se materializar seu medo do fim da obrigatoriedade do pagamento da contribuição sindical.
Outro exemplo possível para legitimar esse “medo do futuro” é o das entidades que nem conseguem ser criadas, ou que são extintas no primeiro ano (o que ocorre, sobretudo, por falta de modelagem/roupagem/justificativas de atuação adequadas). Além dos casos supra, existem ainda aquelas entidades que, mesmo após já estabelecidas e sedimentadas, acabam, com o tempo, perdendo boa parte (ou a totalidade) do protagonismo e respeito adquiridos a duras penas, quase sempre devido a erros estratégicos e/ou de gestão.
Todos os que militam e trabalham com entidades de atuação coletiva conhecem entidades em que ocorreu algum dos exemplos aqui citados.
Os sindicatos não fogem dessa precaução comum ao coletivismo (“medo do futuro”), especialmente após o citado fim da obrigatoriedade de pagamento da contribuição sindical (que era até então cogente, e cuja obrigatoriedade fora sepultada pelo advento da dita “Reforma Trabalhista”, que adequou teor dos artigos 578 e 579 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, através da lei 13.467/17, passando assim a ser, pós-2017, opcional esse pagamento, com reconhecimento posterior do Supremo Tribunal Federal – STF – sobre a constitucionalidade disso).
Aqui vale uma contextualização pertinente sobre a realidade de arrecadação e funcionamento das entidades sindicais antes de 2017: como no Brasil vigora o princípio da unicidade sindical, até 2017 os sindicatos tinham garantida a verba oriunda da contribuição sindical obrigatória dos integrantes de sua categoria (que era, via de regra, de 1 dia do salário por ano). O montante geral proveniente dessa verba atingiu, em 2017, a bagatela de 3,6 bilhões de reais. Já em 2020, esteve no patamar de 150 milhões, o que mostra que, via de regra, os membros pagavam muito mais pela obrigatoriedade do que pela vontade.
Por fim, mas não menos importante, para validação de eventuais acordos/ convenções coletivas e/ou rescisões trabalhistas individuais era necessário sempre a participação do respectivo sindicato, realidade também mitigada, principalmente após a Reforma legal de 2017.
Ou seja, até então havia para os sindicatos uma garantia de orçamento e serviços mínimos, ainda que essa entidade sindical não fizesse “nada” pelos representados. O Estado, as leis e jurisprudências legitimavam esses entendimentos. Não por coincidência, foi antes de 2017 que houvera o grande boom de sindicatos no Brasil, chegando-se a alarmante constatação que o Brasil atingiu ainda nessa época 90% da quantidade de entidades sindicais do mundo.
E, verdade seja dita, boa parte dessas entidades criadas no país pareciam estar muito mais preocupadas com o acesso à contribuição sindical obrigatória e gatilhos provenientes de intermediação de acordos coletivos/ rescisões individuais de seus membros do que em salvaguardar/ defender interesses da coletividade representada e/ou aumentar o poder negocial desses com os patrões.
Como era previsível, houvera uma contrarreação explícita de boa parte da opinião pública, dos legisladores e do Judiciário contra essa obrigatoriedade de contribuição. A tão citada Reforma Trabalhista de 2017 é fruto desse contexto.
Feita a necessária contextualização, voltemos à pergunta-base do título desse artigo, pergunta essa que boa parte dos gestores de entidades de atuação coletiva em geral (e não só de sindicatos) se faz: nesse atual contexto do país e do mundo, os sindicatos e entidades de atuação de âmbito coletivo vão acabar?! E a resposta correta é um sonoro não.
A saber, em coluna de nossa autoria publicada no Jornal “O Popular”, ainda em 2018, traçamos panorama do futuro das entidades sindicais pós-Reforma Trabalhista de 2017, e já se notava e vislumbrava àquela época algumas tendências que antes podiam não ser tão visíveis, mas que agora estão bem mais claras, como por exemplo:
- O fim do auxílio/aparato estatal e legal na arrecadação das entidades coletivas, especialmente sindicais e congêneres;
- Uma espécie de “seleção natural” no mercado, em que as entidades muito pequenas e específicas perderiam naturalmente poder negocial e acabariam sendo incorporadas por entidades maiores, para terem maior legitimidade e poder negocial;
- Uma bem-vinda exigência do efetivo auxílio aos membros da categoria/ coletividade representada por parte do sindicato, como única contrapartida possível para manutenção do protagonismo e de arrecadação dessas entidades sindicais;
- As filiações baseadas muito mais na vontade do que na obrigação;
- Problemas futuros que fatalmente iriam ocorrer, como, por exemplo, quanto aos casos de entidades representativas e ativas que trazem benefícios a toda coletividade representada após atuação coletiva bem feita e que beneficiam todos da categoria (inclusive os não filiados e/ou que não contribuíram financeiramente para tal resultado), gerando falta de isonomia de tratamento.
Na mencionada coluna, a principal conclusão foi a de que as entidades sindicais sempre vão existir. Isso, na verdade, se aplica ao coletivismo em geral: entidades dessa natureza nunca deixarão de existir, por razões inclusive antropológicas. Explica-se: desde que o mundo é mundo, as minorias humanas se associam para finalidades comuns, para trazer maior legitimidade e força para si, ou, segundo alegam Costa, Oliveira e Figueiredo (2013, p. 5),
Associar-se tem sentido de unir pessoas na defesa dos seus interesses. O associativismo nasceu da necessidade de os homens somarem seus esforços para alcançar um propósito em comum. No princípio este objetivo era a sobrevivência da espécie humana. Posteriormente, transformou-se na necessidade de enfrentar as mudanças impostas pelo sistema econômico mundial.
Nesse viés, o desenvolvimento da fala, da convivência em sociedade e de vários outros atributos sociais tão inerentes e caros a nós hoje em dia foram e são frutos dessa necessidade de convivência e de associação por afinidades. Além disso, somos animais sociais, o que significa que temos necessidade de conviver em sociedade e no meio de outras pessoas.
Ao longo dos anos e da história da humanidade, essa faceta da busca humana pela associação com outras se sofisticou, cresceu e se multiplicou, e mesmo com os vários casos de mal uso por alguns no curso da história, essas entidades e/ou associações de pessoas sempre estiveram ativas, altivas e em evidência, com grande destaque, buscando princípios e finalidades caras a seus membros.
Posteriormente (já no começo do século passado, sobretudo), essas associações de pessoas com finalidades comuns passaram a ter nome e estatuto jurídico próprios e assim surgiram o que hoje são denominados de “sindicatos”, “associações”, “cooperativas”, “grupos”, “condomínios” e etc.
O próprio Muñoz (2012) já havia relatado em sua obra Associativismo e Cooperativismo: uma estratégia de organização empreendedora e solidária que mesmo tendo bases jurídicas formalmente diversas, as entidades coletivas apresentavam legislação, finalidade, formas de gestão e princípios organizativos muito semelhantes.
Assim, faz-se questão de deixar claro que a junção de pessoas com finalidades comuns sempre existiu, e sempre existirá, pois trata-se de ação inerente à natureza humana. O protagonismo ou não dessas nas discussões que envolvem interesses de seus membros é que precisa de especial atenção tanto dos dirigentes de entidades de atuação de âmbito coletivo quanto de seus membros, pois ele não vem de maneira “automática”.
Sabe-se que o coletivismo pode, ao longo do tempo, sofrer maiores ou menores repressões/ limitações por parte do Estado e/ou da opinião pública, bem como atrair maior ou menor interesse das pessoas, dependendo do contexto e da forma de atuação. Mas fato é que sempre haverá a “sociedade de pessoas” como anseio e/ou resposta de determinados grupos, afinal, além disso ser uma importantíssima e habilíssima estratégia (quando bem utilizada), é também uma característica inerente à condição humana, como já dito.
Assim, ainda que se entendam como legítimas as preocupações e precauções das entidades no âmbito de atuação coletiva quanto ao futuro, pode ser afirmado com toda segurança (e embasados por precedentes históricos) que essas entidades vão continuar a existir independentemente da época ou período.
E para que dependam menos do humor da opinião pública e do Estado/ Judiciário, o bom caminho será saber atrair e manter seus filiados sempre satisfeitos e conscientes, através de efetiva produção de resultados em prol desses e da sociedade. Mas isso já é tema para um próximo artigo.
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