Migalhas de Peso

O marco regulatório do saneamento ambiental*

A Política Nacional de Saneamento Básico, estampada na lei 11.445/07, com as alterações promovidas pela lei 14.026/20, traz enfoque nas questões contemporâneas, virtude compartilhada com outros documentos legislativos referidos neste artigo.

29/9/2020

1.            O QUADRO DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL

As intensas discussões que ora se travam sobre o marco regulatório do saneamento desnuda um dos déficits mais agudos do País em termos de infraestrutura. É surpreendente que tantas gerações tenham convivido com problema tão grave. Água e esgoto tratados, coleta de lixo e sua correta disposição é o mínimo que uma sociedade pode oferecer às pessoas.

Daí que, ao se falar de saneamento é importante considerar que, para muitos, não se trata de uma questão relacionada a aspectos meramente técnicos e/ou legislativos, mas de fatores vinculados a sua própria dignidade e inclusão social.

Com efeito, além de fundamental para a dignidade humana, o acesso universal ao saneamento configura premissa básica de saúde pública e agrega benefícios ao meio ambiente. Sua essencialidade foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas- ONU, ao declará-lo um direito humano fundamental para o gozo pleno da vida e de todos os outros direitos humanos (Assembleia Geral, Resolução 64/292 de 28 de julho de 2010). Nesse mesmo diapasão, a Carta Encíclica Laudato Sì reconheceu esse direito como “fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”.2

Para parte significativa da população, uma torneira com água, um chuveiro para um banho quente e um vaso sanitário são artigos de luxo. O cidadão, muitas vezes, deseja apenas possuir um banheiro com um sistema de água e esgoto. É-lhe irrelevante se o serviço é deficitário ou lucrativo; se é público ou privado; se é “de esquerda” ou “de direita”; ou se a legislação possui boa ou má redação. As pessoas não se importam com a burocracia dos doutos e possíveis conflitos entre o público e o privado, mas com qualidade de vida. Ter uma conta de água/esgoto é existir formalmente, com o reconhecimento do próprio endereço e, consequentemente, da própria cidadania. Numa palavra: saneamento é, no mundo das coisas, algo importante para o desenvolvimento de todas as potencialidades do homem, devendo ser regulado com observância da realidade.

No contexto apresentado, são quase 35 milhões de brasileiros (= 3 vezes a população de Portugal) sem acesso à água tratada; mais de 100 milhões (= mais de 2 vezes a população da Argentina) não dispõem da cobertura da coleta de esgoto3. Além de servir para a expansão de doenças relacionadas à veiculação hídrica, essas condições não permitem que disponham da higienização mínima para evitar, por exemplo, a proliferação do novo coronavírus. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE já realizou estudos mostrando que 34,7% dos municípios registram avanços de epidemias ou endemias relacionadas à transmissão hídrica nos últimos anos4.

Além da precariedade nos índices de atendimento, observam-se sérios problemas estruturais ligados à operação e à manutenção desses serviços, com o desperdício de água tratada, cuja média nacional, em 2017, foi de 38%. Convertida em valores financeiros, essa perda equivale a cerca de R$ 10 bilhões desperdiçados anualmente, conta que é repassada ao conjunto dos consumidores por meio das tarifas.

Este cenário alarmante está a exigir uma atuação imediata, concertada e eficiente do legislador, do Poder Público e da sociedade organizada rumo à universalização5, pois a manutenção do status quo perpetua a violação à dignidade e à saúde de milhões de brasileiros.

2.            DESENHO EVOLUTIVO DO MARCO REGULATÓRIO

O Brasil sempre foi pródigo na sua produção legislativa. Todavia, chega a surpreender que, em matéria de saneamento, tenha negligenciado por décadas sobre algo tão fundamental e civilizatório, tratando o tema com pouco destaque durante parte considerável de sua história. Somente em 2007 é que desponta uma das mais relevantes políticas de âmbito nacional para tratar, sistematicamente, do tema, cujo registro de nascimento foi estampado na Lei 11.445/07.

Na verdade, o histórico normativo do saneamento permite identificar quatro estágios ou fases marcantes, com características bem distintas, que autorizam observar os desafios já superados e aqueles que ainda se apresentam para um País marcado pela desigualdade social, quais sejam:  (i) o período generalista; (ii) o do Plano Nacional de Saneamento Básico- PLANASA; (iii) o de regulação estruturada; e (iv) o do marco legal de 2020. 

2.1          Primeira fase: o período generalista

A primeira fase abrange toda estrutura e produção normativas de meio século atrás, anteriores ao ano de 1970. A regulação foi relativamente esparsa, sendo as particularidades do saneamento tratadas dentro do âmbito do Poder Executivo. A prestação é vista como mais um equipamento público “descolado” do próprio meio ambiente e com pouca inserção no conceito de políticas públicas.

Havia, no período, uma atuação predominante dos municípios, com pouca ou nenhuma participação dos estados ou da União, certo que apenas as capitais e cidades com maior desenvolvimento econômico tiveram algum progresso na área, até porque o sistema tarifário não abrangia noções de equilíbrio e sustentabilidade financeira, sendo o modelo comumente deficitário. O planejamento e os investimentos eram locais, dependendo o resultado da capacidade técnica, operacional e financeira de cada cidade. Não havia, por conseguinte, um sistema nacional de financiamento para os serviços, nem a preocupação com fixação de padrões nacionais ou regionais de atendimento.

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*Apesar de consolidada na doutrina e na legislação a expressão saneamento básico, é importante discutir a necessidade de análise quanto a sua utilização nos dias atuais. Em nosso sentir, afigura-se como mais contemporâneo o uso do termo saneamento ambiental. Assim, estar-se-ia por ressaltar o aspecto mais abrangente e integrado, na medida em que se consideram a salubridade ambiental e a conservação dos recursos naturais como parte do sistema. O saneamento é holístico e não segmentado, envolvendo uma ideia de maior abrangência, a exigir a aglutinação da expressão ambiental em substituição ao termo básico.

2 Laudato Sì. São Paulo: Paulus/Edições Loyola, 2015, item 30. p. 25. Grifos do original.

3 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20.08.2020.

4 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20.08.2020.

5 Para o legislador, a meta de universalização corresponde ao atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033 (art. 11-B, caput, da Lei 11.445/2007, com redação determinada pela Lei 14.026/2020). Interessante observar, aqui, como que um reconhecimento oficial da impossibilidade de nosso País atender o Objetivo 6 da Agenda Global para o Desenvolvimento Sustentável, que propugna pela universalização e disponibilização de água e saneamento para todos até 2030.

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*Édis Milaré é advogado fundador de Milaré Advogados; professor e consultor em Direito Ambiental; Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Criador e 1º Coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1992/1994).





*Lucas Tamer Milaré é advogado sócio de Milaré Advogados; consultor em Direito Ambiental; Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Especialista em Direito Ambiental pela PUC/SP.

 

 

 

 

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