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Pandemia e a suspensão dos processos administrativos disciplinares: uma análise sobre a efetividade da MP 928/20

O que seria “prazo em desfavor do acusado” no processo administrativo disciplinar? A redação da MP 928, de 2020, não deixou claro, nem tampouco sua exposição de motivos.

28/9/2020

Descoberto em dezembro de 2019, o novo agente do Coronavírus (COVID-19) expôs o mundo a uma realidade nunca antes imaginada. Exigiu dos governos atuação célere e postura estratégica. O foco, imediatamente, voltou-se às questões relacionadas à saúde, à economia e à política. No Brasil, já em 6 de fevereiro, foi publicada a Lei 13.979, definindo as primeiras medidas para enfrentamento do desafio que se apresentava.

Definiu-se o isolamento e a quarentena dentre as principais medidas voltadas à proteção da coletividade. Com o fim de possibilitar maior transparência, determinou-se, já naquela ocasião, o obrigatório compartilhamento, entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção, com a finalidade exclusiva de evitar a propagação do vírus.

Outras questões administrativas e/ou gerenciais relacionadas à prestação dos serviços públicos não diretamente vinculados à emergência de saúde pública não foram objeto de regulamentação naquele momento.

Com o avançar do período de isolamento, porém, o Poder Público se viu obrigado a revisitar de forma mais duradoura a sistemática de prestação de serviços com o fim de garantir a continuidade normal das atividades administrativas. Políticas públicas que, embora não estivessem diretamente vinculadas à saúde pública, precisavam de manter seu fluxo, o que exigia adaptações à nova realidade social.

Nessa linha, foi publicada a Medida Provisória 928, em 23 de março de 2020, que incorporando à Lei 13.979, de 2020, diretrizes voltadas a garantir o atendimento prioritário aos pedidos de informação relacionados às medidas de enfrentamento à pandemia, também dispôs:

Art. 6º-C  Não correrão os prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o Decreto Legislativo 6, de 2020.

Parágrafo único.  Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei 8.112, de 1990, na Lei 9.873, de 1999, na Lei 12.846, de 2013, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos.” (NR)

É bem verdade que o tema, suspensão de prazos processuais administrativos e prescricionais, parecia destoar um pouco da ratio legis da medida provisória. Aparentemente, não estava diretamente ligado às medidas emergenciais de enfretamento à pandemia. Entretanto, em sua Exposição de Motivos, a MP 928, de 2020 destacou que:

... faz-se necessário ajustar os serviços às ações estatais de combate e contenção do COVID-19 e estratégias de isolamento social, como tele trabalho, quarentena ou similares, levando em conta que o momento impõe a necessidade de que a administração pública federal esteja trabalhando da melhor forma possível para que todas as informações relacionadas com a emergência de saúde em curso estejam amplamente à disposição da sociedade de forma transparente.

De fato, a questão precisava ser enfrentada e, de forma semelhante, os órgãos integrantes do Poder Judiciário também haviam determinado a suspensão de prazos processuais por meio de regulamentos internos. A realidade social havia sido abruptamente transformada e os gestores ainda estavam, - e de certa forma ainda estão - tentando tomar as rédeas da situação e minimizar os impactos no dia a dia.

Ademais, no momento em que “diversas medidas vêm sendo adotadas pelo Estado no sentido de prevenir o avanço da pandemia que, ao mesmo tempo, impõe restrições à continuidade normal das atividades administrativas e atendimento, pelos investigados e acusados em processos administrativos, de prazos processuais administrativos”, surge a fundamentação adequada para a imposição da referida suspensão processual e prescricional imposta pela MP n. 928, de 2020.

Pragmaticamente, se levarmos em conta que todos os processos e procedimentos administrativos foram de certa impactados pelos efeitos da pandemia, em seu trâmite e/ou forma de execução, aceitaremos, sem grande sofrimento, a alteração da Lei 13.979, de 2020, da forma em que fora concretizada.

Após transcorrido o prazo de 120 (cento e vinte dias), já contabilizado o período de prorrogação formalizado pelo Ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional 33, de 2020, a Medida Provisória 928 não foi convertida em lei, deixando de surtir efeitos a partir do último dia 27 de julho. Nesse momento então nos cabe avaliar, se, especificamente no âmbito do processo administrativo disciplinar, os efeitos pretendidos foram efetivamente alcançados.

Intencionava a norma suspender o fluxo de todos os prazos processuais administrativos em desfavor dos acusados enquanto durasse o estado de calamidade e, ainda, suspender o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação das sanções administrativas previstas na Lei 8.112, de 1990, na Lei 9.873, de 1999, na Lei 12.846, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos.

Interessante notar que o estado de calamidade ainda permanece. A sociedade brasileira ainda se encontra, basicamente, sob os efeitos existentes quando da publicação do Decreto Legislativo 6, de 2020. As atividades administrativas, de regra, continuam sendo executadas de forma remota e podemos dizer que as dificuldades na tramitação dos atos processuais administrativos permanecem. Não houve grande mudança neste ponto, apesar na

Imediatamente, com a entrada em vigor da MP 928, de 2020, a maioria das casas correicionais suspenderam integralmente o andamento dos processos administrativos disciplinares. Prosseguiu, de regra, a realização apenas dos atos de mero impulso processual por parte das Comissões Processantes, além dos atos de julgamento de processos, cuja fase de inquérito já havia sido concluída.

Para avaliarmos a efetividade da suspensão no âmbito disciplinar, primeiramente precisamos entender o seu contorno. O que seria “prazo em desfavor do acusado” no processo administrativo disciplinar? A redação da MP n. 928, de 2020, não deixou claro, nem tampouco sua exposição de motivos.

Na prática, entendeu-se que correriam “em desfavor do acusado” aqueles prazos que dependessem da sua atuação proativa e que, se exercidos, pudessem lhe gerar algum potencial prejuízo processual.

Sob a perspectiva da necessidade de conduta ativa por parte do envolvido na apuração disciplinar, estariam suspensos aqueles prazos para apresentação de defesa escrita, realização de interrogatório, perícia, acareação ou mesmo oitiva de testemunhas, por exemplo. Entende-se que, nesses casos, o acusado deveria atuar efetivamente para a consecução do ato, e, em face das dificuldades fáticas trazidas pelo isolamento social imposto, teria dificuldades para tanto, inclusive para locomover-se ao local de realização dos atos. Sob a perspectiva de prejuízo, suspender-se-iam aqueles prazos, cuja natureza pudesse significar eventual dificuldade à realização de defesa por parte do acusado. Citemos, por exemplo, a realização de atos como interrogatório ou oitiva de testemunhas.

Ocorre que, desta forma, a suspensão do andamento de processo administrativo disciplinar nem sempre pode ser entendida como um “benefício” ou mesmo “proteção” ao direito de defesa do acusado.

Apesar de parecer intuitivo imaginar que a paralização de um processo, cujo objetivo é apurar a prática de eventual infração administrativa por servidor publico podendo, ao final, gerar aplicação de penalidade disciplinar, seria uma boa medida para o investigado, talvez não seja tão simples assim. Basicamente, por duas razões.

Uma, a ocorrência de prejuízo no direito administrativo disciplinar possui particularidades que devem ser colocadas em debate quando se presumir que a mera realização de ato processual pode significar algo ruim ou prejudicial ao servidor público que tem sua conduta submetida a investigação administrativa. Duas, a suspensão processual encartada pela MP 928, de 2020, veio acompanhada da suspensão da fluência de prazo de prescrição punitiva disciplinar, elastecendo o prazo para que a Administração Pública finalize a apuração.

Ao tempo em que se reconhece necessária a suspensão dos prazos em desfavor dos interessados, não se pode perder de vista que haverá direto impacto no transcurso do prazo prescricional. Prorroga-se, igualmente, o período que o servidor público permanecerá sob algumas restrições decorrentes da pendência do processamento disciplinar.

Temos que “a atuação da Administração Pública mediante processo administrativo disciplinar representa incidência da regra da isonomia, pondo o particular e Poder Público sob uma mesma relação jurídica disciplinada em lei e numa pretendida situação de igualdade processual, num contexto de paridade de armas entre defesa e acusação, com igualdade de possibilidade de influenciar na formação do ato administrativo decisório”1. Assim, “o processo administrativo aberto, visível, participativo, é instrumento seguro de prevenção à arbitrariedade”2.

De fato, “Quem quer que seja acusado de fato que possa gerar efeito punitivo (não importando a sua gravidade) tem a proteção do processo administrativo”3, obrigatória sempre deve ser a observância do devido processo legal para respaldar punições administrativas. Vê-se que o processo é garantia do acusado, e não instrumento da Administração Pública contra o servidor público4.

O mero curso do processo administrativo disciplinar não pode ser entendido como prejuízo ao acusado, salvo se desacompanhado das garantias a ele inerentes, em especial do devido processo legal. O que, entretanto, não pode ser presumido, mas efetivamente comprovado em caso concreto.

Vige, no direito administrativo disciplinar, o princípio do prejuízo, segundo o qual entende-se que não se decreta nulidades processuais senão quando inevitável. Somente há nulidade, portanto, se houver prejuízo efetivo, comprovado. O Superior Tribunal de Justiça exige a efetiva demonstração do que consistiria o prejuízo decorrente para a defesa.5

A suspensão encartada pela MP 928, de 2020, parece ter andado em sentido inverso à logica processualística administrativista disciplinar quando impôs a presunção de prejuízo em face das restrições impostas pelo isolamento e quarentena inseridos ao dia a dia da sociedade brasileira.

Ocorre que, ainda assim não nos parece razoável a presunção imposta, especialmente quando verificamos que muitas casas correicionais ou unidades responsáveis pelo acompanhamento dos processos disciplinares já possuam atuação eletrônica de consolidada, além de regulamentação sobre a forma como os atos devem ser realizados.6 Não se nega que essa realidade minimiza os efeitos das situação de pandemia vivida.

De outro lado, não se está a dizer que a suspensão processual seria incabível sempre e em todas as hipóteses. Muito menos que, em alguns outros casos, as dificuldades trazidas pelo momento social que vivenciamos não inviabilizaram totalmente o prosseguimento das apurações. De fato, houve! Essas situações existiram e, acredita-se, não devem ter sido isoladas.

O que se quer deixar claro é que, igualmente houve situações, não poucas também, em que a marcha processual poderia ter prosseguido de maneira célere, adequada e sem malferimento a qualquer princípio. Nessa linha, sugere-se uma ponderação sob a perspectiva de que o possível prejuízo deveria ter sido avaliado em cada caso concreto, por meio de decisão aferida caso a caso, como já inserta na lógica do processo disciplinar.

A definição deveria envolver, obrigatoriamente, a realidade do acusado e ser avaliada pela Comissão Processante, cotejando o potencial prejuízo verificado em cada situação. Isso porque, diferentemente do processo judicial, a relação entre Comissão e acusado é deveras próxima. Ademais, a paralização da fluência do prazo prescricional concomitantemente considerada talvez tenha tornado a suspensão processual generalista desinteressante, sob a perspectiva do principal interessado na conclusão processual: o acusado.

Não podemos perder de vista que, a depender do servidor público e do fato em apuração, maior prejuízo se verifica com a postergação na conclusão da apuração e eventual decisão final de arquivamento. Em casos como esse, melhor seria se o acusado pudesse optar pelo prosseguimento processual.

Por fim, temos que avaliar quem efetivamente obteve algum resultado positivo com esta suspensão? Acusados de PADs que tiveram o andamento de apurações disciplinares suspensas, mas igualmente verificaram a suspensão do prazo prescricional que lhe é inerente? Servidores públicos que tiveram a decisão final administrativa sob sua culpabilidade postergada para somente quando o estado de calamidade for superado? A Administração Pública que paralisou o andamento de seus trabalhos, mesmo quando possuía sistema e meios eletrônicos, que a permitia prosseguir de forma segura dos trabalhos apuratórios?

________________

1 CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. e aum. Belo Horizonte: Fórum: 2016.

2 DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sergio. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 24.

3 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998. P.72-73.

4 COSTA, Nelson Nery. Processo Administrativo e suas espécies. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 216.

5 MS 9677/DF, MANDADO DE SEGURANÇA 2004/00556744-0.

6 Nesse sentido, a própria Controladoria-Geral da União, Órgão Central do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal, possui a Instrução Normativa n. 12, de 1 de novembro de 2011, que dispõe sore a adoção de vídeo conferencia na instrução de processos e procedimentos disciplinares, e a Instrução Normativa n. 9, de 24 de março de 2020, que regulamenta o uso de recursos tecnológicos para realização de atos de comunicação em processos correcionais”.

________________

*Vládia Pompeu Silva é doutoranda em Ciencias Juridicas y Politicas pela Universidade Pablo de Olavide. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB (2015). Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrolo pela Universidade Pablo de Olavide (2015). Procuradora da Fazenda Nacional desde 2006. Atual Corregedora-Geral da Advocacia da União. 

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