Desenvolvida a partir século XVIII, no Direito Inglês, a doutrina do adimplemento substancial – também chamada substancial performance – indica que, se um contrato foi cumprido em quase sua totalidade e o credor requerer a sua resolução ante o inadimplemento de parcela ínfima deste pacto, o seu pedido deve ser rejeitado, preservando-se o contrato e a sua consecução, já que ele fora substancialmente efetivado – ficando o devedor, entretanto, sujeito à responsabilização pelos prejuízos causados ao credor.
Neste sentido, Becker (1993, p.62):
O adimplemento substancial consiste em um resultado tão próximo do almejado, que não chega a abalar a reciprocidade, o sinalagma das prestações correspectivas. Por isso mantém-se o contrato, concedendo-se ao credor direito a ser ressarcido pelos defeitos da prestação, porque o prejuízo, ainda que secundário se existe deve ser reparado.
A teoria do adimplemento substancial milita, em essência, pela manutenção dos pactos que foram cumpridos quase integralmente, a fim de que os contratantes possam alcançar os objetivos inicialmente entabulados, sendo, portanto, expressão da justiça contratual.
A referida doutrina fora importada para o Brasil, ainda sob a vigência do Código Civil de 1916, pelo Professor Doutor Clóvis Veríssimo de Couto e Silva – sobretudo por meio dos seus ensinamentos na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FERREIRA, 2015).
Na jurisprudência, data de 1995 o primeiro acórdão no qual foi citada, pelo STJ, a teoria do adimplemento substancial – trata-se do Resp. 16.362, de relatoria do Ministro Ruy Rosado de Aguiar. A partir daí, consolidou-se a aplicação do substancial performance pela jurisprudência do STJ.
A encampação da doutrina ora estudada foi ainda mais solidificada com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que expressamente previu os princípios da função social dos contratos (art. 421) e da boa-fé objetiva (art. 422) – estes postulados são, segundo a melhor doutrina, as bases axiológicas da teoria do adimplemento substancial em solo brasileiro.
Nesta toada, encontra-se o Enunciado nº 361 do Conselho da Justiça Federal, para quem “o adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.
Ultrapassado este introito, no qual resta clara a adesão do Direito Nacional à teoria do adimplemento substancial, importa registrar que até 2017, o STJ entendia que esta doutrina era aplicável aos contratos de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, regidos pelo Dec.-lei 911/69.
De acordo com Chalhub (2019), a alienação fiduciária é negócio jurídico por meio do qual o titular de um bem transmite a sua propriedade ao credor sob condição resolutiva, com objetivo exclusivo de garantia, de modo que, cumprida a obrigação que fora objeto da garantia, normalmente uma dívida, a propriedade do credor é resolvida e a coisa retorna, automaticamente, para o patrimônio do seu antigo titular.
A doutrina do substancial performance era utilizada, nestes casos, para impedir a apreensão do bem dado em garantia (via ação de busca e apreensão), devendo o credor utilizar meios mais proporcionais para perseguir o crédito que buscava adimplir.
No entanto, no REsp 1.622.555/MG, a 2ª turma do STJ alterou completamente o entendimento anterior, consignando a nova orientação no Informativo nº 0599, que é claro ao dizer que: “Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69”.
O relator do recurso especial ora discutido foi o Ministro Marco Buzzi, para quem a doutrina do substancial performance deveria ser aplicado aos contratos de alienação fiduciária em garantia de bens móveis. Segundo o relator, o adimplemento substancial atua como instrumento de equidade diante de situações fático-jurídica subjacentes, permitindo soluções razoável e sensatas, conforme as particularidades de cada caso.
Para Buzzi, quando o descumprimento contratual é ínfimo diante da obrigação como um todo, não é adequado decretar a resolução do contrato de maneira mecânica e autômata, sobretudo se isso conduzir à iniquidade ou contrariar os ideais de justiça.
O Ministro mencionou ainda que, a despeito de não existir no Dec.-lei 911/69 qualquer menção aos princípios da função social dos contratos, da boa-fé objetiva e da menor onerosidade – bases axiológicas da teoria do adimplemento substancial – tais princípios devem incidir nas relações negociais, sobretudo quando constatada a existência de parte consumidora vulnerável.
Tal posicionamento, no entanto, sucumbiu aos argumentos trazidos pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, que foi seguido pelo Ministro Antônio Carlos Ferreira e pelas Ministras Nancy Andrighi e Maria Isabel Gallotti.
No voto-vencedor, Bellizze afirmou que é descabido obstar o manejo da ação de busca e apreensão quando há um inadimplemento incontroverso – sendo irrelevante a sua extensão –, haja vista que a lei especial que rege a matéria expressamente condiciona a possibilidade de o bem ficar na posse do devedor fiduciário caso ele pague integramente a dívida pendente.
Portanto, para o Ministro Bellizze, se o dec.-lei 911/69 não faz quaisquer restrições à busca e apreensão do bem, não há que se falar em aplicação da teoria do adimplemento substancial.
Também argumentou o autor do voto-vencedor, que a teoria do adimplemento substancial busca impedir a resolução da relação contratual em razão do inadimplemento de valor ínfimo. Nesta senda, o Ministro afirma que a via judicial combatida pela doutrina do substancial performance é a ação de resolução contratual, e não a ação de busca e apreensão.
Logo, para Bellizze, quando o credor fiduciário intenta uma ação de busca e apreensão, não pretende extinguir a relação contratual, mas cumprir os termos do contrato, na medida em que lançará mão da garantia fiduciária estabelecida para compelir o fiduciante a honrar com as obrigações faltantes.
Por fim, o Ministro também rechaçou a aplicação da teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária, pois, com isto, tem-se um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas do contrato, e um desestímulo ao credor no intento de satisfazer o seu crédito por outras vias judicias menos eficazes.
Foram estes os principais fundamentos utilizados pelo Tribunal da Cidadania para afastar a aplicação da doutrina do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária de bem móvel, regidos pelo Dec.-lei nº 911/1969.
Data máxima vênia, o decisum proferido pelo STJ no REsp 1.622.555/MG merece críticas urgentes e agudas, pois revela-se alheio à sistemática constitucional de proteção do consumidor – que alçou a defesa da classe consumerista ao patamar de direito fundamental (art. 5º, XXXII, CF/88) e de princípio da ordem econômica (art. 170, V, CF/88).
Isto porque o contrato de alienação fiduciária, regido pelo Dec.-lei nº 911/1969, por ser habitualmente entabulado no mercado financeiro, entre instituições bancárias e destinatários finais, é caracterizado como um pacto de consumo, à luz do que dispõe o art. 3º, §2º do CDC1, associado à súmula 297, do STJ2, reclamando a incidência sobre ele, não só do Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas também do arcabouço protetivo da classe consumerista previsto na Carta Magna de 1988.
Além de divergir frontalmente dos vetores axiológicos inaugurados pela Constituição Federal, constata-se também que a decisão proferida pelo STJ carece de fundamentação jurídica suficiente para sedimentar as suas malfadadas conclusões e afastar uma jurisprudência há muito tempo consolidada.
Inicialmente, não há que concordar com o fato de que, por inexistir previsão da teoria do adimplemento substancial no Dec.-lei nº 911/1969, ela não poderia ser aplicada aos contratos de alienação fiduciária regidos por esta legislação. Como já fora mencionado alhures, quando este pacto é estabelecido no mercado financeiro, reveste-se da qualidade de contrato de consumo (dada a prestação de serviço bancário e/ou creditício a ele vinculada), fazendo incidir sobre ele as normas do CDC.
O CDC, por sua vez, abraça no seu art. 7º a teoria do diálogo das fontes, que reclama uma leitura conglobante e sistemática do ordenamento jurídico. De acordo com a ideia central desta teoria, aplica-se a norma especial no que ela tem de especial, porém, permite-se a aplicação simultânea das normas gerais a fim de conferir às leis específicas um alicerce axiológico firme, capaz de direcionar a sua incidência. Tudo isto, no intuito de garantir ao consumidor que lhe seja aplicável todos os direitos provenientes do ordenamento jurídico pátrio, e não apenas aqueles elencados no Códex Consumerista.
Literalmente, o art. 7º do CDC enuncia que: “Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade” (grifo nosso).
De posse da teoria do diálogo das fontes, podemos voltar os olhos à teoria do adimplemento substancial e rememorar que ela tem como base a boa-fé objetiva e a função social dos contratos, como bem retrata o Enunciado nº 361, do Conselho da Justiça Federal. Tanto a função social dos contratos, quanto a boa-fé objetiva, importa frisar, provém do Código Civil (arts. 421 e 422, respectivamente), que é legislação interna ordinária.
Portanto, os contratos de alienação fiduciária regidos pelo Dec.-lei nº 911/1969 caracterizam-se como contratos de consumo, atraindo para si a incidência do CDC, que no seu art. 7º, garante a aplicação em favor do consumidor, de direitos previstos no ordenamento jurídico pátrio, inclusive na legislação ordinária interna, como é o caso do Código Civil, que encampa no seus arts. 421 e 422 a base axiológica da teoria do adimplemento substancial no Brasil, motivo pelo qual a doutrina do substancial performance deve ser aplicada aos contratos em comento, ainda que o Dec.-lei nº 911/1969 não faça menção à referida teoria.
O fundamento de aplicabilidade da referida doutrina, enfim, não é retirado da norma específica de regência contratual, mas do Código Civil, associado ao arcabouço protetivo do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e interesse social, que justamente por ter esta característica, deve ser aplicada a qualquer relação de consumo, independentemente do ramo do Direito em que ela esteja inserida – direito contratual, imobiliário etc. –, afastando um dos fundamentos trazidos pelo Ministro Bellizze para orientar a decisão proferida no REsp 1.622.555/MG.
Também não há substância, data vênia, no argumento de que a teoria do adimplemento substancial é um incentivo ao não pagamento e um desestímulo ao credor na persecução do seu crédito. Em verdade, não há que se falar em incentivo ao não pagamento, posto que, se uma das gêneses da doutrina em comento é a boa-fé objetiva, o devedor que intencionalmente deixar de cumprir o pacto, almejando beneficiar-se do substancial performance, não será tutelado por esta teoria. Pensamento contrário desbocaria em uma deturpação da doutrina em comento.
Além disto, a doutrina do adimplemento substancial não fará desaparecer a dívida do fiduciante. Esta ainda poderá ser perseguida por outros meios, a exemplo da ação de cobrança, da ação monitória ou até mesmo da ação de execução, não havendo que se falar em suposto incentivo ao inadimplemento.
E também pelo exposto no parágrafo anterior, a aplicação da teoria não é um desestímulo ao credor na busca pelo adimplemento do seu crédito. Na verdade, esta doutrina colmata o regular exercício do direito ao adimplemento da obrigação, adequando-o à extensão do quantum debeatur. Isto porque, à luz de uma leitura conglobante do ordenamento jurídico, permitir o uso da ação de busca e apreensão para perseguir um crédito ínfimo desbandaria num abuso de direito, vedado pelo ordenamento jurídico pátrio (art. 187, do CC/02). Aqui, portanto, o que se invoca é a concretização dos postulados constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade.
Também aduziu o Ministro Bellizze, que a teoria do adimplemento substancial seria utilizada para afastar a ação de resolução contratual, e não a ação de busca e apreensão, que põe termo ao pacto na forma prevista nele mesmo e na própria lei.
Mais uma vez discordamos do Ministro, posto que, tanto a ação de resolução contratual, quanto a ação de busca e apreensão ocasionam a mesma consequência prática e jurídica: a extinção prematura e extraordinária do contrato, em que o fiduciante acaba ficando sem o bem da vida originariamente pretendido, seja porque as partes retornaram ao status quo ante (ação de resolução contratual), seja porque o bem gravado fiduciariamente será alienado e o resultado da sua venda será empregado no pagamento do quantum debeatur em favor do credor (ação de busca e apreensão).
Logo, se a teoria do adimplemento substancial é utilizada para impedir a ação de resolução contratual, que ocasionaria a extinção prematura e extraordinária de um contrato que foi quase integralmente adimplido, deve ela também ser aplicada para impedir a ação de busca e apreensão nestas mesmas condições, e que geraria as mesmas consequências práticas que a ação de resolução contratual. Partir da premissa utilizada pelo Ministro Bellizze é se ater a um jogo de palavras que não realiza a proteção constitucional consagrada em favor da classe consumerista e que esvazia o microssistema protetivo do consumidor.
Diante dos motivos trazidos alhures, é forçoso inferir que decisão exarada pelo STJ no REsp 1.622.555/MG, ao afastar a aplicação da teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária, regidos pelo Dec.-lei 911/69, não está em consonância com o prisma Constitucional do Direito do Consumidor e destoam da tendência à interpretação conglobante e harmoniosa do Direito.
Portanto, a despeito do novo posicionamento do STJ, entendemos que a doutrina do substancial performance deve ser aplicada aos pactos de alienação fiduciária sob regência do Dec.-lei nº 911/1969. Pensar diferente compromete a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e, em última instância, caminha para a fragilização do Estado Democrático de Direito, que reclama uma intepretação jurídica norteada pelos vetores axiológicos presentes Carta Magna de 1988 e também na legislação infraconstitucional.
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1- “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
2- “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
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BRASIL, Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 361. IV Jornada de Direito Civil. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 set. de 2020
BRASIL. Código Civil. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 de set. 2020.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Brasília, DF. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 de set. 2020.
BRASIL. Decreto-Lei 911, de 1º de outubro de 1969. Brasília, DF. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 17 de set. 2020.
FERREIRA, Antônio Carlos. A interpretação da doutrina do adimplemento substancial (parte 1).
CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária: Negócio Fiduciário. 6ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
BECKER, Anelise. A Doutrina do Adimplemento Substancial no Direito Brasileiro e em Perspectivas Comparativas. V.9. Porto Alegre: Ver. Da Faculdade de Direitos da UFRGS, 1993.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. nº 1.622.555 MG 2015/0279732-8. Relator: Ministro Marco Buzzi. DJ 16/03/2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 297. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2004]. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 17 de set. 2020.
LIMA, Aliciene Bueno Antocheves de. A teoria do adimplemento substancial e o princípio da boa-fé objetiva. Revista Eletrônica do Curso de Direito Da UFSM. Julho de 2007 – Vol. 2, N.2, p 75-84.
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PEREIRA, Paco Esdras Anselmo Fonseca. Adimplemento Substancial: Impacto nas Relações de Consumo. 2018. 39 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2018.
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