Dia 23 de Setembro é o dia dos conciliadores e mediadores por legislação paulista, aderida pelo Brasil como sendo data memorativa, que serve não apenas de forma simbólica, mas período que nos faz pensar a respeito de todo cenário, com ênfase na pessoa de cada um destes profissionais, tenho várias dúvidas se realmente temos algo a celebrar este ano.
A conciliação sempre esteve presente no Brasil, na Constituição de 18241 a tentativa de reconciliação era fase obrigatória, antes de instauração de litígio, sendo o juiz de paz a pessoa responsável para cumprir a exigência constitucional nas freguesias.
Somente com a prática forense, iniciada pela atuação junto aos juizados, que os conciliadores começaram a saga pelo pertencimento a uma categoria e reconhecimento profissional. Na esfera extrajudicial a figura do facilitador também é antiga, estes mediadores geralmente eram profissionais de origem jurídica, empresarial e política, ativos e aposentados, por este fato não havia qualquer preocupação quanto a enquadramento ou condições de trabalho e remuneração.
Em 2010, pela Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, houve o início de um movimento nacional que padronizou diversos assuntos sobre a conciliação judicial, inclusive foi a primeira previsão normativa sobre a mediação extrajudicial. Seguindo, em 2015 tivemos nossa lei da Mediação (13.140/15), que cuidou de constar na letra legal princípios basilares, mesmo antes do atual CPC, que elevou os conciliadores e mediadores judiciais ao posto de auxiliares da justiça2, com previsão dos requisitos mínimos para ser conciliador, garantida a remuneração de acordo com as tabelas de cada Tribunal.
Ainda no CPC, temos a parceria com câmaras privadas de mediação, as quais podem ser cadastradas nos Tribunais para facilitar a homologação judicial dos acordos, em contrapartida as câmaras privadas fariam sessões de conciliação ou mediação em processos que foi deferida gratuidade da justiça.
Pelo aspecto histórico e legal devemos muita gratidão, os conciliadores e mediadores estão em grande destaque normativo, havendo inegável importância na ressignificação dos conflitos, verdadeiros agentes transformadores e construtores da cultura da paz, são facilitadores que vem atuando inclusive de forma sistêmica, por vezes resolvem a lide sociológica que muito dificilmente chega a ser atingida pela sentença judicial. Nestes pontos temos muito a comemorar.
Entretanto, embora notório que a mediação e a conciliação funcionam como instrumentos fundamentais na solução dos conflitos, os profissionais carecem de sentirem pertencidos, reconhecidos e valorizados.
Primeiramente, não se tem notícia dos tribunais estarem enviando o percentual de audiências não remuneradas para as câmaras privadas cadastradas, conforme determina o §2º do art. 169 do CPC, o que foi projetado para haver engajamento do setor privado e alivio do setor público, um ganho mútuo previsto na lei.
Com exceção do conciliador concursado, a remuneração pelo trabalho destes auxiliares da justiça é prevista em tabela fixada pelo tribunal, conforme parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, mas na prática a maioria dos conciliadores judiciais estão sem recebimento efetivo.
Recentemente, o CNJ publicou o diagnóstico da remuneração elaborado pela Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos3, apontando uma leitura preocupante do cenário nacional. Primeiramente, destaca-se que vários Tribunais de Justiça não regulamentaram o uso da mediação, com alguns que regularam apenas o uso da conciliação:
Espantosamente, os Tribunais de Justiça de Acre, Pernambuco, Sergipe e no TRF da 5ª Região não há mediadores, embora o próprio CNJ afirme que houve inconsistências no repasse das informações, pois alguns Tribunais informaram que utilizam de mediadores voluntários ou servidores efetivos para realizarem as sessões.
Incoerências também são observadas no diagnóstico da remuneração em si, o grande problema da falta dos pagamentos nos processos da assistência judiciária está embutido como despesa do Tribunal, sem esclarecimentos. Destacamos também que a realidade de alguns Tribunais é outra, na prática os pagamentos quase não vem ocorrendo, a maioria das sessões estão ocorrendo de forma voluntária4 e aquelas em que há expectativa de recebimento a remuneração não é efetivada, quer seja quando deveria ser paga pelo particular jurisdicionado ou quando a responsabilidade foi transferida para o ente público, nos casos de justiça gratuita.
A bem da verdade, muitos conciliadores e mediadores judiciais estão sem remuneração mesmo após as audiências já realizadas, quando há previsão legal e valor certo em tabela, tratando de incontestável crédito de natureza alimentar a ser pago. Estes membros diretos da equipe do Judiciário estão sendo ignorados dentro da própria casa.
Irrefutável relembrarmos das solenes etapas para ser conciliador e mediador judicial5, diante de critérios extrínsecos como ter graduação em curso superior há pelo menos dois anos, os candidatos ainda fazem um curso longo, com várias etapas e com dois formatos de prática supervisionada, tratando de pessoas gabaritadas, verdadeiros profissionais auxiliares da justiça, equiparando ao chefe de secretaria ou um oficial de justiça.
Considerando os requisitos de ingresso e a tarefa de figurar como um terceiro facilitador e imparcial em conflitos judicializados, manter-se como conciliador e mediador judicial só é possível quando há remuneração justa e paga de forma antecipada, desvinculando de qualquer resultado da sessão (com ou sem acordo), mas o que se observa é uma desproporção nos valores expostos nas tabelas dos Tribunais, havendo ainda uma burocracia defensiva para travar os pagamentos de responsabilidade do ente público.
Esta busca por direito de profissionais que atuam dentro do Poder Judiciário, nos faz relembrar Ihering6, que ponderou que “o fim do direito é a paz”, mas “o meio de que se serve para consegui-lo é a luta (...) Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça - e isso perdurará enquanto o mundo for mundo -, ele não poderá rescindir da luta. A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos”. O mesmo filósofo deixa registrado que todo aquele que vê seu direito torpemente desprezado não sente em jogo apenas o objeto desse direito, mas também sua própria pessoa.
Existe a remuneração privada, prevista inicialmente pela Lei de Mediação, que entrou em vigou no final do ano de 2015 (lei 13.140/15), a qual em seu art. 13 prevê que a remuneração devida aos mediadores judiciais será fixada pelos tribunais e custeada pelas partes. E existe a remuneração pública, prevista no novo Código de Processo Civil em seu art. 169, em que o poder público se responsabiliza a pagar aos conciliadores e mediadores judiciais suas remunerações em casos de ações guarnecidas pela assistência judiciária gratuita, conforme parâmetros estabelecidos pelo CNJ7.
É necessário que sejam feitos todos os esforços para padronizar o procedimento de pagamento da remuneração privada pelas partes. Ainda existem magistrados que não compreendem nem determinam o pagamento, além de formas não convenientes de realização desse pagamento, sendo mais comum ocorrerem no primeiro momento da audiência, de forma pouco ortodoxa. Um arquétipo deve ser criado.
Embora já tenhamos levantado vários problemas quanto a remuneração paga pelas partes (privada), é na remuneração paga pelo poder público, em casos de gratuidade da justiça, que estamos enfrentando entraves burocráticos na efetivação dos pagamentos aos auxiliares da justiça.
No Estado de Goiás, a questão da remuneração foi estabelecida por Lei estadual que alterou o regimento de custas e emolumentos do TJ/GO. Quanto a remuneração pública, em caso de conciliação ou mediação sob o pálio da gratuidade da justiça, os respectivos atos serão remunerados pelo Estado de acordo com a tabela publicada pelo Tribunal de Justiça. Assim, a remuneração do conciliador e mediador judicial nos procedimentos pré-processuais e processos judiciais com deferimento da gratuidade da justiça ficou definido que será paga pelo Estado nos seguintes valores: audiência de conciliação, R$ 7,98, e a audiência de mediação, R$ 23,96. Importante destacar que a lei goiana grifa que a remuneração publica dar-se-á mediante previsão da lei Orçamentária Anual, segundo proposta do Poder Judiciário.
A associação CONAME – Conciliadores, Arbitralistas e Mediadores, após várias negociações infrutíferas junto a poder público, como última alternativa, ajuizou ações judiciais distribuídas para a 4ª Vara da Fazenda Pública Estadual à juíza Drª. Zilmene Gomide, pleiteando o pagamento imediato da remuneração aos seus associados. A associação obteve liminarmente a liberação imediata das remunerações, tendo como argumento principal da decisão judicial tratar de verba de caráter alimentar.
Tendo verba orçada para remunerar auxiliar da justiça, oportuno que os Tribunais façam termo de cooperação junto aos Estados para padronizar os pagamentos da remuneração pública, com data programada. Momento ideal para também ser negociado as remunerações dos anos anteriores junto aos conciliadores e mediadores que não receberam pelas audiências nos processos de assistência judiciária.
Por certo, a falta da remuneração é um dos motivos para a diminuição dos números de acordos no Brasil, sendo o índice das homologações de acordos o dado estatístico que mais deve interessar a Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ. Atesta o Conselho em seu relatório da Justiça em Números 2019 e 2020 - leituras dos anos-base de 2018 e 2019 - a redução da quantidade de processos finalizados por meio da autocomposição, uma verdadeira surpresa a todos, principalmente pelas esperanças e expectativas de aumento progressivo dos acordos por influência da lei da mediação e do filtro processual que praticamente obriga a tentativa de autocomposição pelo art. 334 do CPC.
E ainda, com o crescente aumento dos CEJUSCs, pode-se afirmar que o número de audiências e sessões de conciliação e mediação também sofreram considerável aumento. Uma falha não constar no relatório do CNJ a quantidade de audiências realizadas para se ver com mais clareza o índice de acordos por número de tentativas.
Assim, com apoio nos próprios relatórios apresentados, pode-se afirmar que o número de audiências autocompositivas aumentou mais de 50% nos últimos 3 anos na Justiça brasileira, mas esprememos nas quantidades de acordos, apesar da imensa quantidade de tentativas, em praticamente 90% das audiências não há autocomposição, um panorama de verdadeira derrocada da mediação.
O ordenamento jurídico voltado a mediação foi criado para que esta realidade fosse diferente. Por certo, éramos para estar retratando uma realidade oposta, com aumento significativo de acordos, pelo menos proporcionais ao aumento das sessões, principalmente por conta da audiência prévia de conciliação e mediação judicial, praticamente como etapa obrigatória com o advento do CPC de 2015.
Conjecturas apontam que a redução dos acordos não tem influência direta na quantidade de mediações realizadas, é a falta de estímulo pelo problema na remuneração dos profissionais, grande causadora também da queda da qualidade da mediação e como ela é apresentada aos interessados.
Tentativas vazias e descompromissadas de mediação/conciliação vêm se demonstrando infrutíferas, ainda mais em casos em que há necessidade de prova mínima e/ou imprecisões dos fatos. Ora, é inequívoco que a “indefinição fática muitas vezes impede a realização de uma conciliação porque leva uma das partes a crer que tenha direitos que na realidade não tem”8.
O trabalho do mediador é deveras um martírio, mas o advogado na autocomposição enfrenta tarefa de mesma complexidade. Infelizmente, não se observa com frequência um advogado que saiba das técnicas de mediação ou tenha espírito colaborativo durante uma sessão. Os colegas da advocacia que atuam em conflitos de família são os que mais compreendem a dimensão e a nobreza da porta da mediação, não só porque traz mais satisfação aos seus clientes, mas por ser um ato envolvido por emoção e sentimentos, típicos combustíveis para o bom mediador realizar seu trabalho.
Sem emoção na mesa da mediação, o ato torna-se naturalmente sem importância para todos os envolvidos. Até o velho e sistemático mediador vai, aos poucos, deixando de fazer o discurso de abertura e se tornando um “escrevente de ata”, considerando a assoberbada agenda judicial, ainda mais porque o resultado da sessão não altera a remuneração do auxiliar da justiça.
O trabalho do mediador não é uma atividade finalística, não é o mediador que resolve o conflito, são as partes, entretanto enfatiza-se que este facilitador leva os interessados a atingirem não só o conflito judicial, contribuindo efetivamente na pacificação social de forma mais suave do que as soluções terceirizadas ao juiz, devido a empatia, sensibilidade e conhecimento técnico do profissional.
Sendo uma atividade de meio desvinculada de resultado (com ou sem acordo), um grande desafio é a valorização profissional dos conciliadores e mediadores dentro do próprio Poder Judiciário no Brasil. Quando forem enxergados como são, verdadeiros agentes pacificadores da sociedade nas soluções dos conflitos, estes auxiliares da justiça serão respeitados.
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1- CF/1824 - Art. 161. Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum.
2- Art. 149 do Código de Processo Civil.
4- A mediação e a conciliação também podem ser realizadas como trabalho voluntário, conforme o §1º do art. 169, a exemplo temos os tribunais do Distrito Federal, que optaram para que o trabalho seja presumidamente gratuito, o que merece nossa atenção, podendo atingir negativamente na valorização do facilitador.
5- Anexo I da resolução nº 125/2010 do CNJ.
6- IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. Tradução de J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. - 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
7- CNJ – Resolução nº 125/10, emenda nº 02, de 08 de março de 2016.
8- Cf. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. ob. cit. p. 677.
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*Fernando Sousa é mediador, presidente da associação de conciliadores, arbitralistas e mediadores – CONAME. Doutorando em ciências jurídicas processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor universitário e em pós-graduações de processo civil, negociação, mediação, conciliação e arbitragem.