O cabimento e a conveniência em tese da adoção de ações afirmativas para a promoção específica de determinado grupo social é um debate de natureza política e ideológica.
Porém, além desse debate geral que esquenta as redes sociais, há ainda a questão da possibilidade de efetivação dessas ações afirmativas no âmbito privado, dentro do atual panorama legal, mais especificamente no âmbito das relações de trabalho.
Ou seja, a questão é saber se o Direito do Trabalho permite esse tipo de discriminação positiva, e caso permita, qual a melhor forma de concretizá-la.
A lei 12.288/10, em seu art 2º declara que é dever do “Estado e da sociedade” promover a igualdade de oportunidades “independentemente da etnia ou da cor da pele”. Não se trata, somente, portanto, de uma obrigação a ser levada a cabo pelo Estado, mas também pela sociedade civil, ou seja, pelas empresas.
Porém, tanto o art 4º, ao estabelecer os meios de participação da população negra em condições de igualdade e oportunidade na vida econômica, social, cultural e política, quanto os arts 38 a 42 do referido diploma legal, ao tratarem especificamente dessa participação no “trabalho”, referem-se a políticas públicas, e ações que têm como fomentador o Estado.
Mas não há nada que se refira diretamente ao papel das empresas privadas, obrigando-as ou autorizando-as a adotar qualquer medida. Somente o art 39 determina que o poder público promoverá ações que incentivem medidas afirmativas nas empresas privadas, similares àquelas feitas nas empresas públicas.
O STF, ao apreciar o tema, igualmente o fez sempre considerando o contexto de políticas públicas, mais usualmente, de critérios de ingresso em instituições públicas de ensino, do que é exemplo a Tese de Repercussão Geral do RE 597.285 no sentido de que:
“É constitucional o uso de ações afirmativas, tal como a utilização do sistema de reserva de vagas ("cotas") por critério étnico-racial, na seleção para ingresso no ensino superior público.”
Mas a realidade social é sempre mais veloz do que o direito ou do que os tribunais. Para além do “ingresso em ensino superior público”, para além de “incentivos públicos”, ou “políticas públicas”, para além de ações que tenham como ponto de partida decisões institucionais e administrativas do Estado, a adoção de ações afirmativas em empresas privadas começou a ser uma realidade no país.
A respeito desse tema, o Ministério Público do Trabalho publicou a Nota Técnica GT de Raça 001/18, que conclui ser plenamente admissível a adoção de ações afirmativas no âmbito das empresas privadas, destacando que devem ocorrer por meio de “a) contratação específica de trabalhadores oriundos da população negra; b) anúncios específicos; c) triagem específica via plataformas digitais”.
Contudo, a Nota Técnica do MPT, conquanto louvável, e conquanto possa ser importante no panorama das decisões a serem adotadas, não se equipara a lei, nem garante a legalidade dos procedimentos que venham a ser adotados pelas empresas privadas.
Com efeito, é inegável que existe uma certa tensão entre, de um lado, a aplicação da “discriminação positiva” – que é o fundamento das ações afirmativas – e, de outro lado, o princípio da isonomia aplicável no Direito do Trabalho, expresso, por exemplo, na regra geral do art 5º da CLT, e nas regras mais específicas dos arts 460 e art 461 da CLT1.
A aplicação da “discriminação positiva” não poderia, por exemplo, ser fundamento para pagamento de salários, prêmios, ou gratificações maiores para empregados negros, exclusivamente em razão do fato de serem negros. Os fundamentos que justificam as ações afirmativas não têm como afastar a incidência da regra da equiparação salarial.
O Direito do Trabalho valoriza a coletividade, expressa institucionalmente no conceito de categoria profissional, que é a entidade fundamental da constituição dos sindicatos, nos termos do art 511 § 2º da CLT. A categoria profissional se baseia na “similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum”, sem qualquer consideração sobre raça ou etnia, ou cor da pele. Não seria possível, portanto, constituir um sindicato de trabalhadores negros de determinada atividade profissional.
Por outro lado, sempre que se entendeu por diferenciar, dentro da coletividade dos empregados, ou dentro do panorama isonômico dos trabalhadores, alguns grupos sociais específicos, a lei foi expressa e clara. É o caso, por exemplo, do art 7º, XX, da Constituição, que prevê a “proteção do mercado de trabalho da mulher”.
E é o caso, ainda, e notavelmente, dos empregados com deficiência, reabilitados e aprendizes, que têm direito às cotas previstas nos art 93 da lei 8.213/90 e 429 da CLT – e que se constituem exemplos típicos de ações afirmativas, ainda que não baseadas em etnia ou cor da pele, mas que ilustram o caráter precursor do Direito do Trabalho também ao instituir discriminações positivas muito antes de ser moda: a redação do art 429 da CLT que instituiu a cota de aprendizes é de 1975.
Portanto, a despeito do forte valor que a isonomia tem no Direito do Trabalho, e a despeito da ideia da categoria profissional como uma entidade que se constitui, do ponto de vista jurídico, sem referência a credo, etnia ou raça, mas que deve ser protegida como um todo qualquer que seja a sua cor, apesar disso tudo não é de todo estranho ao Direito do Trabalho o conceito de ações específicas que podem ser desenvolvidas em prol de grupos específicos, sem que isso represente uma quebra do conceito de isonomia ou uma ameaça ao conceito de categoria profissional.
Assim, esse novo sistema de valores sociais, que o STF expressamente entende plenamente compatível com a Constituição, e conforme a Lei 12.288/2010, não pode deixar de ser albergado também pelo Direito do Trabalho.
Ou seja, a questão não é se as ações afirmativas são possíveis no âmbito os empregados de empresas privadas. A questão é como realizar ações afirmativas no âmbito das empresas privadas sem ferir a lei e o princípio da isonomia.
A meu ver, para concretizar ações de discriminação positiva em empresas privadas, devem ser observadas as seguintes regras:
- Que essas ações sejam feitas no âmbito de convênios, dos quais participem, se possível, o MPT, sindicato, e organizações sociais com reconhecido papel na atuação em prol de minorias raciais, étnicas, etc., ou mesmo por meio de acordos ou convenções coletivas, aproveitando-se do art 7º, XXVI da Constituição e art 611 da CLT, ou ainda por meio de compromisso previsto no art 26 da LINDB;
- Que os convênios ou normas coletivas prevejam os benefícios a serem concedidos pela ação afirmativa, de forma mais detalhada e discriminada possível, atestando os fundamentos sociais e jurídicos, bem como as finalidades que se busca alcançar, com prazo limitado de vigência[2];
- Que essas ações, uma vez celebradas nos termos acima, sejam proporcionais e razoáveis em relação ao objetivo pretendido, ou seja, que busquem equilibrar o acesso e a oportunidade com a realidade racial e social local. Nesse sentido, por exemplo, os sistemas de acesso por cotas das universas públicas poderia servir como parâmetros para efeito de políticas de admissão em empresas privadas, lembrando que o art 39 da lei 12.288/90 menciona expressamente a possibilidade ações “similares” entre entes públicos e empresas privadas.
- Que as ações afirmativas busquem benefícios e incentivos indiretos como bolsa de estudos, cursos, para os próprios empregados ou familiares, evitando afetem parcelas salariais ou remuneratórias que podem vir a ser objeto de equiparação salarial, ou qualquer benefício existente ou previsto indistintamente para a coletividade, e que podem ser no futuro pretendidas pelos não destinatários.
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1 Art. 460 - Na falta de estipulação do salário ou não havendo prova sobre a importância ajustada, o empregado terá direito a perceber salário igual ao daquela que, na mesma empresa, fizer serviço equivalente ou do que for habitualmente pago para serviço semelhante.
Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade
2 O prazo de vigência é elemento fundamental nas ações afirmativas de âmbito público, conforme STF ADPF 186 Relator Ministro Lewandowski
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