A pandemia fez com que muita coisa nas nossas vidas tivesse que passar por mudanças. Afetou nossa forma de nos relacionar com as pessoas, com a universidade e com o trabalho, fazendo com que precisássemos readaptar todos os nossos planos. Na Sanfran, em específico, a aproximação de um outubro ainda permeado pelas consequências do covid-19 trouxe um debate inevitável: o que fazer com as eleições do C.A. XI de Agosto?
Essa questão complexa, que envolve a discussão entre adiar as eleições para 2021 ou fazê-las online, será decidida por todos os alunos em uma assembleia no dia 29/09. A posição que defendo, em conjunto com uma aliança inédita entre chapas adversárias e diversos estudantes, é a do adiamento da eleição para 2021, com a realização de um pleito presencial e participativo.
Juridicamente, acredito que existem argumentos plausíveis que justificam tanto o adiamento quanto a realização de eleições online. No entanto, a questão jurídica, embora importante, não é a centralidade do debate. Dar à essa discussão um foco jurídico serve apenas para ocultar o que ela realmente é: uma decisão política. Decisão essa que nos confronta acerca do que entendemos por democracia.
Enquanto estudantes de Direito, é comum refletirmos sobre a democracia apenas com base em seus aspectos formais e procedimentais. No entanto, as regras de nossa democracia, embora necessárias para garantir a estabilidade do sistema, sozinhas não promovem uma esfera pública inclusiva e participativa. Basta olhar para o nosso próprio país: embora sejamos formalmente uma democracia, na prática há grupos da população que são historicamente excluídos da política brasileira.
Em um artigo publicado em 1989, um ano após a promulgação de nossa Constituição, o cientista político José Álvaro Moisés1 já alertava que apenas os procedimentos formais não garantiriam que nossa sociedade fosse plenamente democrática. Ainda que estivéssemos passando por um importante processo de redemocratização, a cultura política brasileira ainda era permeada por elementos anti políticos, que excluem da esfera pública grande parte da população. Fatores como esse colocam nosso sistema diante de uma possibilidade de ampla deterioração, com a perda de legitimidade conforme o passar dos anos.
Afirmo isso para demonstrar que, formalmente, realizar eleições online ou presenciais pode não aparentar grandes diferenças. Uma democracia, porém, não é construída apenas com aspectos procedimentais, mas também com materialidade política. E, nesse sentido, existe uma grande disparidade entre um processo eleitoral presencial e um online.
A realização de eleições online em meio a uma pandemia como esta reduziria as eleições do XI de Agosto a uma mera enquete. O debate político seria centrado ao grupo da faculdade no Facebook, grupo este que é acompanhado por uma minoria de alunos - só para exemplificar, um dos posts mais interagidos do grupo não chega nem a 550 interações, em um contexto em que o quórum eleitoral das eleições para o XI de Agosto ultrapassa mil estudantes.
Não raro, é apenas no pátio das arcadas que muitos estudantes conseguem acompanhar as eleições e conversar com as chapas concorrentes. É no pátio que os candidatos contrapõem suas ideias, demonstram seus programas aos estudantes, dialogam olho a olho com cada um. Virtualmente, o estudante, já sobrecarregado com as tarefas acadêmicas e domésticas, teria que acompanhar de maneira precária os vários "textões" na internet para minimamente se situar nas discussões concernentes à disputa.
Para além disso, por não conseguirmos enxergar a pessoa que está do outro lado da tela, não conseguirmos ouvir seu tom de voz e as nuances do discurso falado, uma eleição online será marcada pela má interpretação e hostilidade, o que mina qualquer possibilidade de discussão saudável. E isso não é trivial: estamos falando de uma eleição que discute programas políticos que podem vir a interferir na vida de 20 funcionários e com um patrimônio milionário, imprescindível para a permanência estudantil e para o financiamento de diversas atividades de pesquisa e extensão. O ambiente virtual reduziria um dos poucos momentos de vivência democrática na graduação a um mero espetáculo digital.
A realização de eleições virtuais em um contexto extremamente complexo como esse se daria, portanto, em detrimento de um debate público participativo e popular. Se daria a pretexto de se garantir a "validade" do estatuto, ainda que existam normas legais que permitam a realização de eleições presenciais em 2021. Abriríamos mão de uma política presencial quando calouras e calouros pouco tempo tiveram para conhecer a faculdade. Tudo isso para quê? Para garantir um suposto "novo normal" para quem?
Há outro aspecto relevante a ser considerado nesta discussão: a política se faz com gente e com contato. Todavia, o processo virtual seria um processo eminentemente solitário e individual. A própria estrutura das redes sociais, feita para que tenhamos contato apenas com aquilo que gostamos, faria com que o processo ficasse restrito às “bolhas” de pessoas que já estão conectadas com as chapas que gostam. Além disso, iríamos discutir e militar com pessoas que talvez sequer tenhamos visto na vida. E aqueles que já vibraram e choraram durante um processo eleitoral para o XI de Agosto sabem que é apenas a força da presença e apoio mútuo, que cada companheiro e companheira compartilhou, que faz com que essa luta valha a pena de ser vivida.
E se estamos falando de política com "gente", de pessoas que, independente da chapa em que estão, dão um pouco de suas vidas pela transformação da Faculdade de Direito da USP, estamos falando de pessoas que merecem uma eleição com o cuidado do outro; com o conselho do outro nos debates eleitorais; com o ombro do outro no momento da derrota, com o abraço fraterno do outro no momento da vitória. Estamos falando de presença, afetividade e humanidade. É esse o caminho para uma democracia realmente democrática.
É por isso que a discussão sobre democracia não pode estar apenas no âmbito das normas e procedimentos - e aqueles que são historicamente excluídos da política brasileira sabem disso muito bem. Se queremos um processo eleitoral de fato, há uma decisão a ser tomada: adiar a eleição do XI e fazê-la de verdade, em 2021.
Entretanto, para aqueles que legitimamente possuem dúvidas e incertezas sobre a presente discussão, faço um convite para aprofundarmos o debate sobre o que é a construção da legitimidade e da democracia na eleição do XI, bem como a participarem da campanha "Sanfran Contra as Eleições Online".
Já para aqueles que querem se apossar do XI a qualquer custo e independente de qualquer coisa - pugnando, erroneamente, que isso seja a defesa de um "valor democrático" -, sugiro que reflitam sobre se vale a pena ter o XI sem a mão suja de tinta, sem o panfleto em punho, sem o aplauso das falas nos debates, sem a voz rouca da disputa de voto no pátio, sem o diálogo com o estudante.
É por isto que dois grupos opostos, que ao longo dos últimos anos têm travado uma série de batalhas, hoje se unem em torno de um objetivo comum: a gente quer um processo eleitoral de fato, não uma enquete.
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1 MOISÉS, José Álvaro. Dilemas da consolidação democrática no Brasil. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, [s.l.], n. 16, p. 47-86, mar. 1989. FapUNIFESP (SciELO).
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