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Paternidade post mortem

O conhecimento científico, além de postergar a maternidade, cria condições para solucionar problemas de infertilidade humana, mesmo após a morte de um dos cônjuges ou companheiros

20/9/2020

A vida, em muitos casos, imita a ciência. Foi noticiado que um casal, com diagnóstico de esterilidade, buscou auxílio em clínica de Reprodução Assistida (RA) e realizou fertilização in vitro com a consequente criopreservação dos embriões. Um período após o procedimento, o marido veio a falecer. A esposa havia prometido a ele que faria uso dos embriões congelados e, antes de completar 10 anos da morte do companheiro, dirigiu-se até a clínica, que foi proibida de fazer a transferência embrionária porque o Conselho Regional de Medicina não permitiu, por ausência de autorização do marido quando em vida. Ingressou na justiça e obteve a tutela jurisdicional favorável.1 O procedimento foi realizado com sucesso e a gravidez tem seu curso normal.

No caso em questão, trata-se de fecundação homóloga, utilizando os componentes genéticos do casal para a formação dos embriões, que poderão ser implantados no útero da companheira ou de terceira pessoa. A intenção era realmente a procriação que seria realizada em momento futuro. A morte do marido, no entanto, fez com que a mulher realizasse o objetivo proposto, com a utilização dos embriões criopreservados.

Fato semelhante ocorreu na cidade de Santos com uma mulher que, após várias tentativas para engravidar, conseguiu, realizar o sonho de ser mãe de um casal de gêmeos. com a utilização de embriões congelados há uma década. Na época a gestante contava 61 anos de idade.2 Hoje, no entanto, a idade máxima das candidatas à gestação por técnicas de RA é de 50 anos.

A evolução da engenharia genética e os progressos científicos na área da reprodução e embriologia têm solucionado a contento o problema da infertilidade, criando várias formas de procriação assistida, com a manipulação dos componentes genéticos dos dois sexos. As técnicas de procriação assistida, por meio da inseminação artificial e fecundação in vitro, culminando com a gestação de substituição, conhecida como barriga de aluguel, trazem grande esperança para os casais que pretendem a procriação, mas não atingem pela via natural.

Apesar de a Constituição do Brasil3 estabelecer que o planejamento familiar é livre e que o Estado deverá proporcionar recursos científicos direcionados ao exercício desse direito para aqueles que não conseguem atingir a procriação, não há ainda legislação ordinária que estabeleça todos os pressupostos e requisitos exigidos na reprodução assistida. Mesmo assim, o Código Civil Brasileiro, em vigor a partir de 2002, em iniciativa exemplar, ensaiou os primeiros passos na regulamentação das inseminações e fecundações homóloga e heteróloga.4

Supletivamente, por outra banda, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.168/17, que considerou a infertilidade problema de saúde e estabeleceu as normas técnicas e éticas do procedimento. No item V, 3, é taxativa ao afirmar: “No momento da criopreservação os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões criopreservados, quer em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los”.

Ora, fica claro que somente o casal, compreendendo a inequívoca manifestação de vontade do homem e da mulher, poderá determinar o destino a ser dado aos embriões, produzidos in vitro por não haver a obrigatoriedade do aproveitamento reprodutivo de todos eles. E, mesmo no caso de ausência de embriões, mas com a reserva de sêmen do marido falecido, a mulher poderá utilizá-lo e se submeter a uma das técnicas de reprodução humana, desde que haja documento expresso autorizando o procedimento visando à realização de um projeto parental post mortem, nos termos do inciso III do art. 1597 do Código Civil.

Além do que os pacientes, assim tratados os genitores na Resolução citada, poderão expressar por documento a vontade de descartar os embriões após três anos de criopreservação. E há, também, o caso de descarte de embriões abandonados, compreendendo aqueles em que os responsáveis descumpriram o contrato pré-estabelecido e não foram localizados pela clínica. Por fim, deve ser rigorosamente observado o número de embriões a serem transferidos, que será regulamentado pela idade: mulheres até 35 anos, 2 embriões; mulheres entre 36 e 39 anos, 3 embriões; mulheres com 40 anos ou mais, até 4 embriões, o máximo permitido.

Desta forma, o conhecimento científico, além de postergar a maternidade, cria condições para solucionar problemas de infertilidade humana, mesmo após a morte de um dos cônjuges ou companheiros.

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1 Clique aqui 

3 Artigo 226 § 7º da Constituição da República Federativa do Brasil.

4 Artigo 1.597, III, do Código Civil.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.

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