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Ingresso do Brasil no GPA/OMC: os próximos passos

O processo de aproximação do Brasil ao GPA começou com a obtenção do status de observador, em outubro de 2017. O Brasil é o primeiro país da América Latina a adotar medidas para a sua acessão como Estado membro.

16/9/2020

1             Introdução

Em 18 de maio de 2020, o Brasil apresentou ao Comitê de Compras Governamentais da OMC – Organização Mundial do Comércio a sua proposta de iniciar as negociações para fazer parte do GPA – Government Purchase Agreement, acordo plurilateral vinculado à OMC.

O processo de aproximação do Brasil ao GPA começou com a obtenção do status de observador, em outubro de 2017. O Brasil é o primeiro país da América Latina a adotar medidas para a sua acessão como Estado membro.

A relevância deste momento tem levado a diversas iniciativas públicas de reflexão sobre as implicações do iminente ingresso do Brasil no GPA e as medidas preparatórias em curso. A Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia lançou em 21 de agosto de 2020 consulta pública para colher, até 22 de outubro de 2020, informações do setor privado. O IBDA – Instituto Brasileiro de Direito Administrativo constituiu comissão especial, sob a presidência do professor Edgar Guimarães, para debater e formular suas contribuições à audiência pública. O Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e a Universidade de Nottingham realizaram, de 2 de julho a 15 de setembro de 2020, uma série de onze webinars com especialistas internacionais para tratar dos vários aspectos em que se desdobra o processo de ingresso do Brasil no GPA.

2             Checklist e oferta

Como primeiro passo, o Brasil deve observar um checklist de demonstração da compatibilidade entre sua legislação de compras públicas e os requisitos mínimos do GPA. A multiplicidade de diplomas normativos – leis e decretos federais e locais, regulamentos especiais de empresas estatais – e de fontes interpretativas, como a jurisprudência do Poder Judiciário e as orientações adotadas por órgãos de controle torna complexa a demonstração realista do contexto brasileiro e do atendimento dos requisitos necessários.

A despeito da complexidade da legislação brasileira, nela se encontram os critérios fundamentais de objetividade e transparência promovidos pelo GPA. O GPA admite que adaptações procedimentais necessárias, como a adoção de medidas destinadas a assegurar o acesso de informações por fornecedores internacionais, sejam realizadas até que o GPA entre em vigor em relação ao Brasil.

O exercício de identificação de eventuais pontos de compatibilidade duvidosa provocará, de imediato, meditações acerca de aprimoramentos possíveis, especialmente em momento de tramitação final do PL 1.295/95 no Senado. Dadas as dificuldades próprias do processo legislativo, a dimensão e as implicações do passo que o Brasil se dispõe a dar ao buscar ingressar no GPA justificam nova reflexão sobre a conveniência de levar adiante uma reforma legislativa que ignora os padrões do GPA em sua concepção.

O segundo aspecto do processo diz respeito à oferta de cobertura do GPA – tipos de bens, serviços e obras que estarão cobertos pelos compromissos do GPA e valor mínimo dos contratos para que se apliquem tais compromissos. A estrutura da acessão de cada Estado signatário inclui sete anexos. 

O processo de negociação se inicia por uma oferta inicial de conteúdo dos vários anexos, o qual será então negociado com cada um dos atuais Estados participantes do GPA. Essa negociação pode ser mais ou menos longa. No histórico dos processos recentes de acessão, há casos concluídos em três ou quatro anos (Nova Zelândia e Austrália) e processos que já se desenvolvem há mais de dez anos desde a primeira oferta (China). O processo de negociação em geral é iniciado com rapidez após a manifestação inicial, mas tende a prolongar-se no tempo e pode envolver múltiplas revisões da primeira oferta.

3             Consulta Pública (Circular SECEX 55/20): interesse do setor privado

Como a primeira oferta envolve a manifestação de disposição inicial do Estado brasileiro de assegurar o acesso não-discriminatório de fornecedores internacionais dos demais Estados signatários às compras públicas brasileiras, sua construção é de interesse geral.

Interessa às várias esferas da Administração Pública, nos diversos níveis da Federação, da Administração direta ou indireta. Em especial, Estados, Distrito Federal e Municípios devem refletir sobre a possibilidade de obter maior participação internacional em suas compras e as eventuais adaptações normativas e práticas necessárias – como avisos aptos a divulgação internacional e estruturação de dados estatísticos. Cabe ainda refletir sobre outros pontos, como os tipos e valores de contratos a serem compreendidos na primeira oferta, ou se as contratações das empresas estatais estarão nela abrangida e em que medida.

Além disso, interessa ao setor privado, tanto sob o ângulo da ampliação e alteração qualitativa do universo de competidores nas compras da Administração Pública brasileira quanto o de acesso das empresas brasileiras a mercados de compras públicas dos demais Estados participantes do GPA – inclusive mercados tradicionais de produtos e serviços brasileiros em outras áreas, como Estados Unidos e União Europeia.

Para informar a elaboração da primeira oferta, a SECEX/Ministério da Economia publicou em 21 de agosto de 2020 a Circular nº 55/2020 , abrindo consulta pública para receber contribuições dos setores interessados, tanto dos possíveis afetados como fornecedores como de contratantes, doutrinadores e especialistas. A consulta tem perguntas estruturadas e outras abertas, focada nos seguintes pontos: (i) interesse do participante no aumento da concorrência nas licitações nacionais e, em caso afirmativo, em relação a quais bens, serviços ou setores; (ii) se o participante considera “que há bens e/ou serviços sensíveis do ponto de vista das contratações pela Administração Pública Direta e Indireta” e, neste caso, quais esses bens ou serviços e as razões para essa preocupação; (iii) se o participante atua ou tem interesse em atuar em licitações ou compras públicas de outros países que integram o GPA ou estão em processo de ingresso no GPA, especificando os países de interesse (dentre os de uma lista de membros atuais ou potenciais), bem como os bens ou serviços que pretende fornecer e – o que é fundamental – “se houver, barreiras que dificultem ou impeçam a sua participação nessas licitações para fornecer os bens e/ou serviços de interesse”.

A consulta pública objeto da Circular SECEX nº 55/2020 é uma iniciativa fundamental para colher informações estruturadas, especialmente do setor privado, acerca das bases que o Estado brasileiro deve considerar na construção da sua primeira oferta de negociação.

Para informar a reflexão dos possíveis interessados, cabe retomar algumas características do GPA e do que deverá ser tomado em conta durante o processo de acessão do Brasil.

4             O acordo revisado

A versão atual do GPA entrou em vigor em 2014, embora a versão anterior, de 1994, ainda se aplique em determinadas situações.

A OMC estima que, em sua configuração atual, o GPA implique a abertura de mercados no valor de 1,7 trilhão de dólares para as empresas dos países signatários, correspondentes a entre 10 e 15% dos respectivos Produtos Internos Brutos (PIBs). Há 48 países signatários, entre eles os integrantes da União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos. A China, tal como o Brasil e dez outros, está em processo de acessão.

O propósito do GPA é assegurar a abertura e a ausência de discriminação das empresas dos países signatários em determinadas licitações e compras governamentais dos demais signatários. Não se trata de pura e simples admissão de licitantes estrangeiros em condições de igualdade com os nacionais. Há processo detalhado de negociação das condições de cobertura do acordo em relação às compras governamentais de cada países.

5             Características fundamentais

O GPA é composto basicamente por uma série de regras mínimas de transparência, objetividade e integridade na condução dos processos licitatórios. As empresas de cada país signatário têm a segurança de que, ao participar de uma licitação em outro país signatário, estarão sujeitas a regras já certificadas como alinhadas com os parâmetros exigidos pelo GPA.

O GPA também exige tratamento não-discriminatório dos fornecedores originários de outros países signatários no que se refere aos contratos cobertos pelo GPA.

Este será um grande ponto de evolução na legislação e prática brasileiras. Embora aparentemente não-discriminatório, ressalvadas regras editadas especialmente a partir de 2010 no sentido da preferência por produtos nacionais em determinadas circunstâncias, o sistema brasileiro consagra barreiras não evidentes à participação efetiva de licitantes estrangeiros. Esses pontos deverão ser enfrentados, assegurando-se aos brasileiros que pretendam fornecer no exterior e aos estrangeiros que venham participar de licitações no Brasil efetiva igualdade de tratamento com os respectivos nacionais, no âmbito de cobertura do GPA.

Os parâmetros do GPA deverão ser observados também em relação aos instrumentos de revisão (impugnação) dos atos praticados no curso da licitação ou do procedimento de contratação.

Como o GPA consagra a adoção de meios eletrônicos de licitação, a combinação entre igualdade de tratamento e procedimentos eletrônicos pode ser muito produtiva na abertura de mercados a licitantes brasileiros. Será possível a qualquer empresa, com a segurança da não-discriminação e da adoção de procedimentos compatíveis com o GPA, participar remotamente de licitações em qualquer dos países signatários, observadas as condições de cobertura.

Por outro lado, o GPA não ignora as circunstâncias especiais dos países em desenvolvimento ou outras diretrizes nacionais. Admite especificamente que, no processo de negociação, se estabeleçam ressalvas destinadas a possibilitar, nas condições e pelos prazos negociados, a adoção de políticas nacionais de desenvolvimento, ou que se atendam outras políticas públicas. Por exemplo, o artigo IV(6) do GPA não autoriza a exigência de offsets (compensações comerciais) pelos signatários nos contratos cobertos – exceto se se estiver diante de um país em desenvolvimento, para o qual a previsão de offsets é admissível nos termos do artigo V(3)(b). A abertura do artigo V permite uma variedade de exceções destinadas a promover o desenvolvimento nacional.  A efetividade da previsão de um regime excepcional (SDT) é relativa diante do caráter negocial da acessão: o resultado final da cobertura dependerá muito mais da negociação efetiva do que de tais previsões normativas excepcionais.

Por fim, o GPA consagra um regime de cobertura negociada, em que cada país negocia com todos  os demais signatários atuais quais contratos serão abertos para a concorrência internacional segundo as regras do GPA. As compras governamentais serão submetidas ao GPA apenas se ultrapassarem um determinado valor mínimo. A negociação também pode excluir ou restringir o acesso a compras dos Estados, Distrito Federal ou Municípios, ou compras feitas por empresas estatais. Outra possibilidade é preservar os estímulos às micro e pequenas empresas ou à sustentabilidade. Todas estas são práticas adotadas por outros signatários a partir das condições inicialmente negociadas.

Um último aspecto importante é o que diz respeito à publicidade. Há regras e procedimentos para que as oportunidades de fornecimento sejam divulgadas internacionalmente. Com isso, empresas brasileiras também passarão a ter acesso simplificado a informações sobre possíveis licitações em uma multiplicidade de países com graus variados de desenvolvimento.

6             Próximos passos: ainda a Consulta Pública SECEX (Circular 55/20)

Em sua manifestação de interesse em iniciar o processo de acessão, o Brasil ressalva a situação atual provocada pela pandemia da covid-19 e informa que iniciará o processo de atendimento do checklist do GPA e a negociação efetiva tão logo estas dificuldades estejam superadas ou controladas.

O ingresso no GPA é uma oportunidade para a evolução do sistema brasileiro de compras públicas, com a simplificação e a extinção de práticas ineficientes ou discriminatórias que se consolidaram com o tempo. É também um caminho para a abertura de novos mercados para as empresas brasileiras.

Disso decorre a importância fundamental da ampla participação na Consulta Pública objeto da Circular SECEX 55/20, especialmente por parte do setor produtivo e das empresas interessadas no mercado brasileiro e internacional de compras governamentais. Há uma variedade de instrumentos para que o setor privado se faça ouvir, como a atuação das entidades empresariais e a promoção de publicações e discussões abertas sobre o tema. Nada afasta a importância da Consulta Pública como oportunidade estruturada de diálogo. Trata-se de munir os negociadores brasileiros com os elementos necessários para que o ingresso no GPA ocorra de modo amadurecido, compatível com as características de cada setor econômico, e produza para as empresas brasileiras todos os benefícios que a abertura do comércio internacional pretende promover.

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*Cesar Pereira é sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados AssociadosDoutor em Direito Administrativo (PUC/SP). FCIArb. Professor do IDP (Brasília)

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