Questão tormentosa que se descortina nos Juízos de Família é quando a beligerância dos antigos parceiros de vida descamba para as mútuas agressões e denúncias, maculando a integridade física e psicológica dos filhos.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, é comum o uso do termo high conflict divorce para falar dos “divórcios de alta litigiosidade”, em que ao natural desgaste da demanda jurídica é acrescido, de forma exponencial, o desgaste psicológico do chamado “gozo do litígio”: quando o processo judicial serve à finalidade de prorrogar o contato e o vínculo entre as partes que, não preparadas para o adeus definitivo, tornam o Judiciário palco de suas mágoas e expectador de suas intimidades.
Quando, porém, existem filhos em comum, não raro o gozo do litígio se transfere aos imbróglios sobre o cotidiano da prole. De repente, alguém se torna o vilão daquela história em quadrinhos, alguém a ser temido, não respeitado. De repente, um pai amoroso e uma mãe responsável são atingidos pelo vírus do divórcio e se tornam um pai abusador e uma mãe negligente. De repente, a avó tão carinhosa e o tio tão divertido se transformam em entidades autoritárias e violentas – qual foi o bicho que os mordeu?
Dois fatos devem ser levados em consideração: primeiro, o fato de que, às vezes, a fala da criança, relatando abusos, só é realmente ouvida pelo pai/mãe depois que o encantamento pelo antigo parceiro se desfaz, e a criança volta a ocupar o centro das atenções. Mas, em segundo lugar, também é fato que um fato inverídico de abuso ou negligência pode ser inventado por alguém que, no auge de sua dor ou frustração, quer causar dor e frustração no outro.
O que fazer, diante da notícia de que uma criança ou adolescente está sendo abusado / negligenciado / exposto a risco por membro de sua própria família? A solução é simples: investigar com a máxima prioridade e celeridade. A pedra no caminho: na prática, os juízos Criminal (onde tramita a investigação do abuso) e de Família (onde tramita a ação de divórcio / guarda / alienação parental) pouco se comunicam, proferindo decisões contraditórias ou, como sói acontecer, o juízo de Família suspende o curso da demanda aguardando o resultado da ação criminal. Ponto para o alienador. O tempo consolida a alienação.
É muito importante que se reconheça o duplo risco envolvido: se o abuso for comprovado como real, é uma violência sexual que deve ser combatida com a máxima rapidez e eficiência; mas se o abuso não existiu e a notícia foi falsa, é uma violência psicológica que deve ser igualmente combatida com a mesma rapidez e violência. O ato de Alienação Parental é uma violência, já expressamente reconhecido como violência psicológica pela Lei nº 12.318/2010.
Minha proposta é simples: que seja reunida a competência para apuração do ato de Alienação Parental e para a apuração da notícia de abuso contra criança ou adolescente no mesmo Juízo, e que seja no Juízo de Infância e Juventude, por meio das leis de organização judiciária de cada Tribunal de Justiça, para evitar a fragmentação da prestação jurisdicional.
É salutar que a Vara de Infância e Juventude possa reunir as competências de apuração do ato de Alienação Parental e da denúncia de abuso físico/sexual contra a criança e o adolescente, especialmente diante da nítida relação de prejudicialidade existente entre as demandas, observando-se as seguintes vantagens: a) segurança jurídica, pela redução da possibilidade de decisões conflitantes; b) maior celeridade, pela tramitação conjunta das ações e o aproveitamento de atos e provas entre as demandas, além de ser evitar a suspensão de uma das ações por prejudicialidade; c) redução da revitimização da criança e do adolescente, com a concentração dos atos de perícia e oitivas; d) prestação jurisdicional e forense de maior capacitação e sensibilidade dos atores quanto as peculiaridades do microssistema jurídico de Infância e Juventude.
O Supremo Tribunal Federal, julgando a constitucionalidade de uma lei dessa natureza do TJRS, entendeu que os Tribunais de Justiça podem atribuir a competência para o julgamento de crimes sexuais contra crianças e adolescentes ao juiz da Vara da Infância e Juventude, por agregação, ou até mesmo a qualquer outro juiz que entender adequado, dentro dos limites da auto-organização e divisão judiciária, in verbis:
HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. LEI ESTADUAL. TRANSFERÊNCIA DE COMPETÊNCIA. DELITOS SEXUAIS DO CÓDIGO PENAL PRATICADOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. JUIZADOS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE. VIOLAÇÃO DO ART. 22 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - A lei estadual apontada como inconstitucional conferiu ao Conselho da Magistratura poderes para atribuir aos 1º e 2º Juizados da Infância e Juventude, entre outras competências, a de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes, nos exatos limites da atribuição que a Carta Magna confere aos Tribunais. II - Não há violação aos princípios constitucionais da legalidade, do juiz natural e do devido processo legal, visto que a leitura interpretativa do art. 96, I, a , da Constituição Federal admite que haja alteração da competência dos órgãos do Poder Judiciário por deliberação dos Tribunais. Precedentes. III - A especialização de varas consiste em alteração de competência territorial em razão da matéria, e não alteração de competência material, regida pelo art. 22 da Constituição Federal. IV - Ordem denegada. (HC 113018, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, segunda turma, j. 29/10/2013, DJe-225, DIV. 13/11/2013, PUB. 14/11/2013)
Atribuir à Justiça da Infância e Juventude a competência de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes tem sido também acompanhado pelo Superior Tribunal de Justiça diante da necessidade de obediência ao princípio da segurança jurídica, existindo inúmeros precedentes nesse sentido: AgRg no HC 492073 / RO, AgRg no HC 441298 / AC, AgRg no HC 411639 / RO:
PROCESSUAL PENAL. COMPETÊNCIA DA VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. CRIMES SEXUAIS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO NÃO CONFIGURADO. AGRAVO DESPROVIDO. 1. É facultado aos Tribunais nacionais atribuir à Justiça da Infância e Juventude, entre outras competências, a de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes. 2. Agravo regimental desprovido.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. COMPETÊNCIA PARA JULGAR CRIMES DE NATUREZA SEXUAL. INSTALAÇÃO DENTRO DO LIMITE LEGAL. LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL. NULIDADE ABSOLUTA. NÃO OCORRÊNCIA. 1. A Sexta Turma desta Corte, ressaltando a necessidade de obediência ao princípio da segurança jurídica, decidiu acompanhar o entendimento assentado nas duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser possível atribuir à Justiça da Infância e Juventude, entre outras competências, a de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes (REsp 1.498.662/RS, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Min. ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 12/2/2015, DJe 26/6/2015). 2. Como esclarecido pelo Tribunal estadual, não houve criação nem aumento do número de varas na Jurisdição Acreana, instalando-se, em observância ao art. 230, § 1º, da Lei Complementar Estadual n. 161/06 e, outrossim, à Resolução n. 134/2009, editada pelo Pleno do TJAC, a 2ª Vara Especializada da Infância e Juventude dentro do limite numérico de 29 varas previstas na Lei Complementar, inexistindo aumento quantitativo de unidades judiciárias, não havendo falar-se em nulidade absoluta. 3. Agravo regimental improvido.
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. INEXISTÊNCIA DE NOVOS ARGUMENTOS APTOS A DESCONSTITUIR A DECISÃO IMPUGNADA. REITERAÇÃO DE PEDIDOS EM WRIT. QUESTÕES JÁ ENFRENTADAS PELO COLEGIADO. MANDAMUS NÃO CONHECIDO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Agravo regimental interposto contra decisão monocrática que não conheceu de habeas corpus que objetiva a declaração de nulidade ab initio de ação penal sob a alegação de incompetência absoluta do Juízo de Primeiro Grau em razão da matéria. O presente recurso não traz argumentos novos capazes de alterar o entendimento anteriormente firmado. 2. O acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, que fora impugnado no habeas corpus impetrado nesta Corte Superior, encontra-se harmonizado com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF e do Superior Tribunal de Justiça - STJ, segundo a qual é facultado aos Tribunais Estaduais estabelecer competência às Varas da Infância e Juventude para processar e julgar delitos praticados contra criança e adolescente, de acordo com o disposto no art. 96, inciso I, alíneas a e d e inciso II, alínea d, da Constituição Federal - CF. Precedentes. 3. Ademais, não há ilegalidade no fato de a competência da Vara da Infância e Juventude ter sido esmiuçada por Resolução. Diferentemente do alegado pelo agravante, o Código de Organização Judiciária do Estado de Rondônia estabelece, no art. 98, a competência do Juizado da Infância e Juventude para processar e julgar assuntos disciplinados no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA "e legislação afim ", o que é o caso dos autos, tendo em vista que foi imputado ao paciente a prática do delito descrito no art. 218-B, § 1º, do Código Penal - CP (favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável). Em resumo, é inegável a conduta criminosa descrita na denúncia oferecido contra o paciente - capitulada pelo orgão acusador como infração ao art. 218-B do CP - guarda estreita relação com os objetivos precípuos do ECA de proteção à criança e adolescente. Precedentes. 4. A decisão agravada não merece reparos, porquanto a tese levantada no presente agravo não foi acolhida por esta relatoria com amparo na jurisprudência do STJ. Precedentes. 5. Agravo regimental ao qual se nega provimento.
Há, porém, divergências, de que “a competência estabelecida no art. 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente não pode ser elastecida” (EDcl no AgRg no AREsp 134767 / RS) e que “No rol inserido no artigo 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente não se encontra inserido qualquer permissivo para julgamento de feitos criminais no âmbito do juízo da infância e juventude” (RHC 34742 / R).
Rossato, Lepore e Sanches (2016), não obstante, entendem que o rol contido no artigo 148 do ECA é meramente exemplificativo, prevendo o mínimo de causas que deverão ser processadas perante a Vara da Infância e Juventude, pois há outros procedimentos que também serão nela processados, como os pedidos de autorização para viagem e expedição de alvarás.
Ainda que o rol do artigo 148 do ECA não arrole, especificamente, a competência para apuração de crime sexual contra a criança e o adolescente, não se afasta essa hipótese da previsão do inciso IV, que diz ser competência da Justiça de Infância e Juventude “conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209”, no que perfeitamente se enquadra a ação civil do Ministério Público para denunciar crimes sexuais contra vulneráveis (artigo 225 do Código Penal1).
E porque a competência da Justiça de Infância e Juventude, e não da Vara de Família?
Entende Nucci (2015) que a Alienação Parental trata-se de nítido abuso do pai ou mãe em relação ao filho menor de 18 anos, portanto, a competência para apurar e tomar as providências é da Vara da Infância e Juventude. Defende o autor, porém, que será da Vara de Família, quando os pais estiverem, de algum modo, litigando e a Alienação Parental tratar-se de procedimento incidente.
Em sentido aproximado, embora não se referida ao problema da Alienação Parental, Bordallo (2013) defende em linhas gerais que, estando a criança ou adolescente sob a responsabilidade de qualquer parente, afastadas estão as hipóteses do artigo 98, sendo competente para conhecer da ação o Juízo de Família.
Ousa-se discordar do pensamento de que basta estar a criança ou adolescente sob a proteção de algum parente, para retirá-la da situação de risco. No caso específico da Alienação Parental, a situação de risco existe em virtude da própria violência intrafamiliar e doméstica a que é submetida.
Não basta a presença de outro adulto para fazer cessar a situação de risco – pelo contrário, o ato de Alienação Familiar Induzida é praticado em virtude do outro adulto, contra o outro adulto, sendo a criança ou adolescente a vítima reflexa dessa prática – mas, apesar de ser vítima reflexa, mediata, é a criança ou adolescente a principal pessoa prejudicada.
Estas reflexões fazem parte da minha tese de doutorado, defendida em Agosto de 2020 junto ao Centro Universitário de Brasília, e que espero em breve promover a publicação. Outras questões de ordem material e processual foram por mim abordadas, mas este é assunto para um próximo artigo.
Por ora, fica a esperança de que essa solução tão simples, mas tão eficiente, possa ser adotada pelos Tribunais de todo o país, como compromisso de concretização da Proteção Integral, célere e eficaz a nossas crianças e adolescentes.
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1- “Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I [Dos crimes contra a dignidade sexual] e II [Dos crimes sexuais contra vulnerável] deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.”
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BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. As regras gerais de processo. In Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. Katia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel (coordenação). 6.ed. rev. e atual. conforme Leis n. 12.010/2009 e 12.594/2012. São Paulo: Saraiva, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
ROSSATO, Luciano Alves. LEPORE, Paulo Eduardo. CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente: Lei n. 8.069/90 comentada artigo por artigo. 8.ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.
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*Bruna Barbieri Waquim é doutora e Mestre em Direito. Assessora Jurídica no TJMA. Diretora Cultural do IBDFAM/MA. Professora universitária.