Julgamento de Saddam Hussein: exemplo de “justiça” primitiva
Luiz Flávio Gomes*
O primeiro modelo (Justiça internacional primitiva) caracteriza-se não só por configurar uma Justiça de exceção (visto que o Tribunal é constituído após o delito para julgar determinados fatos), senão sobretudo por ser instituída pelos vencedores contra os vencidos. O Tribunal de Nuremberg, criado pelos aliados em agosto de 1945, no final da II Guerra Mundial, retrata um exemplo histórico desse modelo de Justiça. Condenou vários líderes nazistas à pena de morte (doze, no total). Todos foram enforcados em Nuremberg, em 16 de outubro de 1946, com exceção de um deles que se suicidou.
Esse modelo de Justiça é primitivo porque não respeita os princípios garantistas mais elementares: princípio do juiz natural, proibição da criação de tribunais de exceção, julgamento imparcial, irretroatividade da lei penal etc. Lamentável é que, passados mais sessenta anos desde Nuremberg, praticamente todas essas mazelas e anomalias estiveram presentes no julgamento de Saddam, que foi condenado por um tribunal de exceção, constituído pelos EUA em 2003. Durante o processo três advogados foram assassinados, um expulso, um juiz foi substituído, as testemunhas não tinham nenhuma segurança etc. A interferência política no julgamento foi evidente, a ponto de seu resultado ter sido “antecipado” em dois dias, para “tentar” beneficiar Bush nas eleições gerais norte-americanas.
Sabe-se que é a pessoa humana que viola os direitos humanos, de qualquer modo, mesmo depois do delito, ela não deixa de ser uma pessoa humana, dotada de direitos e garantias fundamentais. Mesmo quando se trata de um Saddam Hussein, é inconcebível que qualquer pessoa seja submetida a um julgamento tão desqualificado e parcial, que não retrata nada mais do que ele mesmo fazia contra seus inimigos (xiitas). Em outras palavras: os EUA promoveram em 2006 um julgamento com o mesmo nível técnico e desqualificação ética dos que eram celebrados, no Iraque, no tempo de Saddam!
O segundo modelo de Justiça internacional (Justiça de exceção) é o desenvolvido pela ONU: seu Conselho de Segurança (constituído de 15 países), na década de noventa, criou dois tribunais de exceção para julgar crimes macro-políticos ocorridos na ex-Iuguslávia (Milosevic) e Ruanda. Embora sejam tribunais de exceção, não há dúvida que contam com mais independência e imparcialidade que os tribunais primitivos (do primeiro modelo).
O TPI espelha o terceiro modelo de Justiça internacional. Nasceu (em julho de 2002) com a pretensão de ser uma Justiça universal e permanente. Não há dúvida que a criação do TPI representou uma importante evolução no plano do Direito Internacional Público, porém, ainda está longe do modelo ideal de Justiça, que é o garantista. De outro lado, sabe-se que o Estatuto de Roma (1998) gerou (e vem gerando) muitos conflitos normativos (ainda não devidamente solucionados) com as constituições internas dos países soberanos.
Uma das várias faces da crise do Direito na atualidade (consoante Ferrajoli) reside precisamente na relativização da soberania dos Estados. O mundo se globalizou, as entidades supranacionais estão cada vez mais fortes e o Direito internacional vai ganhando proeminência nunca imaginada. Na visão piramidal kelseniana a Constituição de cada Estado gozaria de supremacia normativa absoluta. A ela, unicamente, competiria reger os destinos dos Estados e dos seus cidadãos.
O Direito internacional público, especialmente o dedicado à proteção dos direitos humanos (que foi inaugurado com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948), entretanto, procura em cada momento vincular e subordinar os Estados “soberanos” aos seus mandamentos. O conflito normativo (entre o direito externo e o interno) tornou-se inevitável.
Exemplo patente do que acaba de ser descrito é o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. Nem todas as garantias asseguradas pelas constituições internas foram contempladas no Estatuto. Aliás, mais do que isso, vários dispositivos do Estatuto contrariam as Magnas Cartas dos países que o subscreveram. A pena de prisão perpétua, por exemplo, colide com praticamente todas as modernas constituições.
O Estatuto prevê a “entrega” do nacional para o TPI. Entrega não se confunde com extradição: na primeira quem solicita o criminoso é um órgão supranacional; na segunda quem o pede é um outro Estado soberano. Na eventualidade de que um dia venha a ser necessário, irá o Brasil “entregar” um nacional para se sujeitar à pena de prisão perpétua, que é proibida pela Constituição brasileira?
De outros vícios ou anomalias padece o Estatuto de Roma. Por exemplo: descreveu o delito de genocídio de forma muito aberta, ampla. É patente a violação ao princípio da taxatividade da lei penal. O mesmo Estatuto contempla a possibilidade de violação da coisa julgada, ou seja, mesmo que o criminoso tenha sido julgado no seu país, pode o caso ser reaberto pelo TPI, em algumas situações. Como se vê, a garantia da coisa julgada foi relativizada. Paralelamente também foram criados alguns problemas técnicos: ao se referir o Estatuto à dimensão subjetiva dos delitos falou em intenção e consciência, o que praticamente elimina a possibilidade de se admitir o dolo eventual que, diferentemente do dolo direto, não é constituído de consciência e vontade (saber e querer o que se faz), sim, de representação, aceitação do resultado e indiferença frente ao bem jurídico.
Que o TPI representou um avanço extraordinário no Direito público internacional parece não haver nenhuma dúvida. Mas são muitas ainda as interrogações, as aporias, as discrasias. A utopia governante nessa área nos conduz, principalmente os que somos professores, a lutar por pelo menos duas coisas: (a) que no futuro venhamos a contar com o quarto modelo de Justiça internacional (Justiça inteiramente garantista) e (b) que prontamente todos os países, a começar pelos EUA, que nem sequer aprovaram até hoje o TPI, apóiem esse modelo de Justiça, que tende a se universalizar e se legitimar na medida em que o homem vai se tornando mais racional, ou seja, na medida em que vai abandonando a lógica da guerra para promover a paz.
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* Fundador e presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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