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Cabe ao Estado socorrer o Setor Aéreo?

Encarar o Estado como um garantidor universal, responsável último por assegurar o bom funcionamento de todas as coisas e a fruição de todos os direitos recorrentemente é a visão do senso comum, reforçada ainda pelo contexto da pandemia de covid-19.

10/9/2020

O coronavírus causou impactos catastróficos num setor crescente e promissor. Como consequência, os agentes econômicos que atuam nesse mercado (players) vêm suportando prejuízos elevados, chegando a enfrentar, por vezes, o risco da recuperação judicial ou falência. Diante desse cenário, são ventiladas iniciativas do governo para amparar o setor e mitigar tais impactos, razão pela qual parece prudente indagar: cabe ao Estado socorrer as empresas do setor aéreo?

Encarar o Estado como um garantidor universal, responsável último por assegurar o bom funcionamento de todas as coisas e a fruição de todos os direitos recorrentemente é a visão do senso comum, reforçada ainda pelo contexto da pandemia de covid-19. Usualmente, esse entendimento vem acompanhado da ideia de que o Estado seria igualmente responsável por todos os setores ou categorias, não só da economia, mas da própria vida em sociedade, culminando na conclusão - aparentemente precipitada e equivocada - de que a destinação de recursos públicos para o socorro de determinado setor, em detrimento de outros, seria uma decisão meramente política.

Neste breve artigo, especificamente, trataremos de analisar nuances relevantes para companhias aéreas e administradores de infraestrutura aeroportuária, empresas especialmente afetadas pelas medidas recentes que visaram reduzir a circulação e a aglomeração de pessoas.

Após certos acontecimentos históricos ocorridos no início do Séc. XX (grandes guerras, crise de 1929, globalização, etc.), vimos a figura do Estado acumular uma série de expectativas e responsabilidades. Hoje, contudo, já não se concebe mais que o Estado além de cumprir seu papel essencial, de assegurar o bem-estar da coletividade, acumule também os papéis de empresário e agente econômico. Até mesmo as grandes corporações, dotadas de profundos conhecimentos de gestão e mercado, escolhem nichos de atuação. O Estado, contudo, muitas vezes quer se iludir com a capacidade de executar e gerir os mais diversos setores, do hospitalar ao aéreo.

No Brasil, a emenda constitucional 19/98 (Reforma Administrativa) pavimentou a mudança de perfil de um Estado “agente econômico” para um Estado “regulador-fiscalizador”, que em lugar de atuar diretamente na economia, limita-se a intervir nesta seara apenas quando justificável e conveniente. Sendo a lógica da intervenção, nesses casos, a de concretizar a “ordem econômica”, eliminando falhas de mercado, promovendo a expansão do consumo e o bem-estar geral da população.

No exercício desta intervenção, o Poder Público conta com diferentes espécies de instrumentos, como o monopólio, a participação, a direção e a indução – sendo as intervenções concorrencial, regulatória e sancionatória subespécies da intervenção por direção.

A Constituição estabelece como regra1 que o Estado se dedicará aos serviços públicos, enquanto a iniciativa privada atuará na exploração direta de atividades econômicas. A mudança de perfil experimentada pelo Estado brasileiro, contudo, provocou ainda a utilização da figura das concessões, ou seja, da transferência do exercício de serviços públicos de competência do Estado para as mãos de particulares. As razões básicas para essa transferência seriam: a) a falta de recursos do Estado - capacidade de investimento; e b) a não detenção pelo Poder Público de técnicas adequadas para a prestação do serviço - expertise.

A outorga de ativos públicos (portos, aeroportos, rodovias, etc.), portanto, é uma forma de reduzir o esforço do Estado no desempenho de atividades econômicas, ao atrair a expertise e a agilidade da iniciativa privada tanto nos investimentos quanto na gestão destes ativos. Diante da adoção deste novo perfil, a atuação estatal passa a se concentrar integralmente na regulação e fiscalização dessas atividades.

Conforme fixado no texto constitucional2 compete à União explorar, diretamente ou mediante outorga, os serviços públicos de navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária. Na mesma linha do que ocorreu em outros setores, foi criada em 2005 a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)3, ente regulador autônomo integrante da administração pública federal, cujo propósito é regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.

Embora as atividades empresariais exploradas pelas companhias aéreas e administradoras de aeroportos possam parecer comuns do ponto de vista econômico, não o são sob o viés jurídico. De um lado, por tratar-se de serviço público, está o transporte aéreo vinculado às condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e modicidade das tarifas; de outro, precisamente por tratar-se de mercado regulado, sujeita-se à minuciosa coordenação da ANAC, que desempenha funções de caráter executivo, normativo e judicante.

Para ilustrar a dimensão do controle exercido pelo Estado no setor, em síntese, tem-se que a ANAC estabelece regras para temas como: preço do serviço; requisitos para entrada de players no mercado; qualidade e quantidade do serviço; e fornecimento de informações obrigatórias. Diferente de outras atividades, neste tipo de mercado o arcabouço regulatório é determinante para estabelecer a viabilidade ou não do negócio.

Nesse sentido, mais do que questionar se os contratos de concessão deverão ser reequilibrados, ou se cabe ao Estado socorrer empresas do setor aéreo em um contexto de pandemia, é essencial compreender os contornos jurídicos e econômicos de um mercado que explora um serviço público de caráter essencial. Não há de se cogitar, por exemplo, retroceder ao perfil de Estado agente econômico, com o serviço sendo prestado diretamente pela Administração Pública, em geral menos eficiente.

A medida provisória 925/204, convertida recentemente na lei 14.034/20, trouxe medidas de amparo às companhias aéreas, às concessionárias de aeroportos e aos trabalhadores aeroviários durante a pandemia, além de tratar do reembolso de passagens aéreas. Dentre as medidas está a concessão de crédito oriundo do Fundo Nacional da Aviação Civil (FNAC), com juros mais favoráveis, e a renegociação das contribuições fixas e variáveis da outorga dos aeroportos.

No que se refere à possibilidade de repactuação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, de fundamento constitucional5, parece-nos não haver dúvida quanto a sua necessidade e aplicabilidade, tanto para a continuidade do serviço público quanto para afastar o enriquecimento sem causa da Administração.

Em resposta à consulta em tese formulada pelo Ministério da Infraestrutura ao seu órgão de consultoria jurídica em abril de 2020, o parecer6 elaborado por esta consultoria concluiu que a pandemia pode ser classificada como evento de “força maior” ou “caso fortuito”, caracterizando “álea extraordinária” para fins de aplicação da teoria da imprevisão e justificando o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes. A extraordinariedade da revisão, no caso, decorre do fato insuscetível de previsão.

Por tudo que foi exposto, parece-nos acertado sob uma ótica constitucional e sistêmica do ordenamento jurídico pátrio concluir pelos deveres do Poder Público de promover o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão celebrados com as administradoras de aeroportos, bem como de intervir na economia, através de medidas de amparo como as presentes na lei 14.034/20, para assegurar a viabilidade econômica das atividades exploradas e a prestação ininterrupta do serviço público, sem o comprometimento da sua qualidade.

É fato que as medidas legais e administrativas adotadas pelo Estado devem buscar oferecer segurança jurídica, transparência e previsibilidade aos contratos de concessão e ao setor. O desafio colocado pelo momento, de muitas incertezas, está em como o poder público irá analisar, quantificar e reequilibrar os prejuízos sofridos. Se algo é certo, é que a solução não será alcançada sem o diálogo e a articulação de todos os agentes envolvidos na prestação dos serviços aéreos.

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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 173 (Princípio da Subsidiariedade).

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 21, Inc. XII, “c”.

3 Disponível em clicando aqui. Acessado em 27/7/20.

4 Disponível em clicando aqui. Acessado em 27/7/20.

5 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 37, Inc. XXI. Nesse mesmo sentido, a Lei 8.666/93, Art. 65, Inc. II, “d”.

6 Parecer 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, proferido no Processo 50000.017282/2020-12.

­­­­­­_________

*Ivson C. Araújo é graduado em Direito no Brasil e na Colômbia. Advogado no escritório da Fonte, Advogados. Mestrando em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa.


 
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