A despeito do que o senso comum pode levar a acreditar, o neoliberalismo não é uma característica intrínseca ao sistema capitalista. Muito pelo contrário, cada vez mais se nota que a premissa dos livres mercados como ambientes naturalmente competitivos nada tem de natural: os mercados são estruturados por escolhas humanas, motivadas por política e poder.
Se determinados mercados são competitivos e conseguem, portanto, maximizar o bem-estar social, é porque escolhas humanas foram tomadas e idealizadas para que assim o fossem. Apesar da constante tentativa do mainstream econômico em criar abstrações em torno dos mercados, praticamente assimilando-os como entidades ininteligíveis, os agentes econômicos que neles participam e os formuladores das suas estruturas são, agora sim, inexoravelmente compostos por humanos, ainda que representados através de entidades criadas a partir de ficções jurídicas.
Nesse contexto, surgem algumas perguntas importantes como: os mercados devem priorizar e atender agentes específicos? e, quais finalidades eles devem atender? Esses questionamentos se mostram de extrema importância na medida em que as suas respostas serão responsáveis por moldar não apenas as estruturas dos mercados, como também os objetivos que serão buscados através deles, os quais poderão privilegiar ou não todos os agentes atuantes nesses mercados.
Observando rapidamente alguns dados do cenário econômico brasileiro, é possível concluir que as atuais estruturas de mercado privilegiam alguns agentes em desfavor de outros. Explica-se.
Segundo pesquisa do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil ocupou, em 2019, a posição de 8ª maior economia do mundo no que se refere à participação no PIB (Produto Interno Bruto) global em dólares1. Por outro lado, o Brasil ocupou, no mesmo ano, a posição de 7º país mais desigual do mundo, segundo o relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) levantado com base no coeficiente de Gini, que mede desigualdade e distribuição de renda2.
Esses dados levam à conclusão de que os mercados brasileiros estão sendo estruturados de modo a priorizar e atender o êxito de agentes específicos, tendo em vista a desigualdade social gritante do país. As finalidades de tal estruturação podem ser questionadas, mas o que se pode concluir, de pronto, é que a redução dos níveis de desigualdade não está entre as finalidades da economia de mercado brasileira. O que, vale destacar, vai de encontro com o previsto pela ordem econômica constitucional3.
Nesse contexto, torna-se urgente a superação do atual paradigma neoliberal, focado na dualidade entre regular ou não, para que se desenvolva um novo marco teórico voltado para como a regulação deve ocorrer e como o Estado pode contribuir nessa regulação. Conforme pontua Stigler, a não regulação pode ser pior que a falta desta, afirmação esta que tem se confirmado com a acentuação das desigualdades e da concentração econômica.
Nesse sentido, o relatório de janeiro de 2020 realizado pela economista Felicia Wong do Roosevelt Institute, intitulado de: “The emerging worldview: how new progressivism is moving beyond neoliberalism”4, tentou compilar o conjunto de ideias consonantes de economistas ao redor do mundo voltadas para o desenvolvimento de novas alternativas para a compreensão das relações entre direito, estado e economia.
O relatório, partindo da noção de que as ideias neoliberalistas precisam ser superadas para que possa haver a criação de sistemas econômicos mais justos, sistematiza a análise de cerca de 150 pesquisadores que buscam desenhar novos caminhos a partir de características em comum. O pensamento dos “novos progressistas” convergiria em 4 (quatro) pontos:
1. Os mercados não constituem sistemas que vão se estruturando livremente, mas são estruturados por políticas, escolhas e poder;
2. Essas escolhas podem guiar inclusive as maiores forças, e as mais disruptivas, como a mudança tecnológica ou uma maior integração global, no sentido de melhores resultados para a população;
3. Os valores importam, de modo que é preciso definir a forma que a nova economia irá funcionar e o sucesso desta será definido, baseado no rol de valores que respondam às questões de ‘uma economia com que fins, e uma economia para quem?; e
4. Definir as premissas da reforma das políticas é insuficiente. Um novo paradigma político é necessário, e deve ser construído sobre a base de uma mudança transformadora, estrutural.
Essa nova visão de mundo tem como base a importância do papel do Estado na regulação econômica para a existência e funcionamento regular dos mercados, voltado para a criação de soluções de combate à desigualdade e à concentração de mercado. Ladislau Dowbor, ao analisar o relatório do Instituto, concluiu que:
"a análise propõe New Progressivism, ou seja, somos progressistas, mas não como os de antigamente. Busca-se algo novo. A que corresponde isso em termos políticos? Eu chamaria de capitalismo civilizado. Mas se trata, explicitamente, de uma visão de novas estruturas a desenvolver, não de uma volta a algum tipo de capitalismo mais democrático."5
Na compilação desses novos referenciais, o Relatório identifica 4 (quatro) grupos que focam em diferentes caminhos de como a atuação do Estado poderia ocorrer, dividindo-se da seguinte forma:
- Os “novos estruturalistas”, que focam o sistema existente e sugerem regras do jogo para o mercado, com reforma tributária, transparência dos fluxos, controle dos paraísos fiscais e semelhantes, tendo como expoente as propostas do economista Thomas Piketty;
- Os “provedores públicos”, que focam no potencial do Estado como provedor direto de bens e serviços, em particular nas áreas sociais, pesquisa tecnológica, infraestruturas, tendo como expoente as propostas da economista Mariana Mazzucato;
- Os “transformadores econômicos”, que focam na ideia de que é um Estado que define estratégias de longo prazo, políticas estruturantes de grande escala, políticas de industrialização e semelhantes, tendo como expoente as propostas ganhador do prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz; e
- Os defensores da “democracia econômica”, que focam na dimensão institucional, envolvendo o processo decisório da sociedade, buscando resgatar a dimensão democrática das transformações econômicas, inclusive a importância do poder local.
Apesar de incipiente, a nova visão econômica proposta pelos novos progressistas se mostra como um importante ponto de partida para se repensar as atuais estruturas do mercado no Brasil. Para isso, será necessário questionar a forma de atuação do Estado na regulação jurídica dos mercados, a fim de que ele possa exercer um papel de destaque na construção de uma economia medida com base no bem-estar de pessoas reais e não no puro crescimento econômico baseado em números.
Afinal de contas, há apenas mais 6 posições que o Brasil pode almejar na classificação de maiores economias do mundo, enquanto na de países menos desiguais há quase uma imensidão.
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1 Disponível em: Clicando aqui.
3 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
4 Disponível em: Clicando aqui
5 Disponível em: Clicando aqui
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*Marina Souza Leão Araujo é estudante da Faculdade de Direito do Recife (UFPE).