Orestes, no primeiro julgamento da história, foi absolvido por Minerva, a deusa da sabedoria, cujo voto o beneficiara, encerrando o empate havido pelo júri constituído por 12 cidadãos. Esse mesmo enredo, por ora, há de se repetir no átrio do Supremo Tribunal Federal. Todos a aguardar o voto de Minerva, deitado na pessoa de seu Presidente, a quem caberá o desfecho do julgamento da ADC nº 58, em que se discute o índice de correção monetária aplicável aos débitos trabalhistas.
A matéria não é nova e já foi exaustivamente debelada pelo órgão colegiado, por ocasião das ADIns 4357, 4372, 4400, 4425, ação cautelar 3764/MC/DF, e RE 870947 (Tema 810 da repercussão geral) a reconhecer a inconstitucionalidade da TR, como índice de atualização, por obliterar o propósito basilar de recompor a inflação. Nessa senda, viola o direito fundamental de propriedade do credor, que detém assento constitucional – tema sobre o qual tivemos oportunidade de nos pronunciar no artigo intitulado Correção monetária de débitos trabalhistas: análise da recente decisão monocrática do STF – ARE 1.247.402, estudo citado no voto do Ministro Edson Fachin na ADC 58, em 26/08/20201.
Mas, como se trata de crédito trabalhista, a discussão travada na ADC nº 58 ganhou novos ingredientes, pese embora desconexos com o objeto da ação.
Em bom mineirês, hão de dizer: “tem caroço nesse angu”. Disso não discordamos. Até o momento, oito Ministros votaram pela inconstitucionalidade do índice aplicável à caderneta de poupança. Todavia, quatro deles (Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso e Cármen Lúcia, que acompanham o Ministro Gilmar Mendes, Relator) apresentaram como solução, até que sobrevenha ato legislativo, os mesmos índices de correção monetária e de juros aplicáveis às condenações cíveis em geral, a saber: a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir da citação, a incidência unicamente da taxa SELIC, à luz do art. 406 do Código Civil, afastando-se os juros de 12% ao art. 39, § 1º, da lei 8.177/91.
Perguntamos: onde está o caroço?
O objeto da ADC visa exclusivamente à declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de aplicação da TR como índice de correção dos créditos trabalhistas. Se, por um lado, não está o STF, em ações fiscalizatórias objetivas de constitucionalidade, adstrito aos fundamentos jurídicos invocados pelo autor, a significar que todo e qualquer dispositivo do texto constitucional poderá ser utilizado como fundamento jurídico com vistas a declarar inconstitucional lei ou ato normativo (STF, Plenário, ADI 3796/PR, Ministro Relator: Gilmar Mendes; julgado em 08/03/2017), por outro, está ele subordinado ao pedido. De modo que a Corte permanece adstrita ao reconhecimento da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da TR como índice de correção monetária dos créditos trabalhistas, ainda que se valha de fundamentos jurídicos outros para justificar a enunciação decisória eleita. Aliás, nem se poderia conhecer de ADC sem “a existência de controvérsia judicial relevante” sobre o dispositivo (art. 14, III, da lei 9.868/91). O caroço, portanto, está na discussão dos juros aplicáveis, quando sequer integram o pedido da ação.
Estão a propor a redução dos juros e, por corolário, silenciosamente, a afastar a incidência da regra vaticinada pelo art. 39, § 1º, da lei 8.177/91, sem declarar sua inconstitucionalidade. Não se trata, que fique claro, de inconstitucionalidade por arrastamento, na medida em que se exige o reconhecimento expresso do vício a reprovar o ato legislativo.
Logo, por vias avessas, o STF, a levar adiante o debate da redução do percentual de juros incidentes sobre os créditos de natureza trabalhista, impedirá a aplicação de lei federal vigente sem a dialética argumentativa necessária ao expresso reconhecimento de sua inconstitucionalidade, porquanto a temática dos juros de mora incidentes sobre créditos trabalhistas, vale reiterar, não constitui objeto da ADC 58 – circunstância que, isso sim, à toda evidência, consubstanciará ofensa à sagrada cláusula do devido processo legal (CRFB, art. 5º, LIV).
Não bastasse, pelo quórum de julgamento, sinaliza-se também patente violação da diretriz normativa constante do art. 97 do texto constitucional, hospedeira da cláusula de reserva do plenário, da qual consta: “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
Anote-se que a cláusula epigrafada se estende aos pronunciamentos judiciais em sede de controle concentrado de constitucionalidade, como, a propósito, reflete a decisão proferida em ADI nº 4.066, de relatoria da Ministra Rosa Weber, cujo trecho segue abaixo reproduzido para melhor elucidação:
[...] Quórum de julgamento constituído por nove ministros, considerados os impedimentos. Cinco votos pela procedência da ação direta, a fim de declarar a inconstitucionalidade, por proteção deficiente, da tolerância ao uso do amianto crisotila, da forma como encartada no art. 2º da lei 9.055/1995, em face dos arts. 7º, XXII, 196 e 225 da Constituição da República. Quatro votos pela improcedência. Não atingido o quórum de seis votos (art. 23 da lei 9.868/99), maioria absoluta (art. 97 da Constituição da República), para proclamação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo impugnado, a destituir de eficácia vinculante o julgado. [ADI 4.066, rel. min. Rosa Weber, j. 24-8-2017, P, DJE de 7-3-2018.]
Coloca-se, pari passu, a Súmula Vinculante nº 10, cuja redação reforça a premissa ontológica do art. 97 da CRFB/88. Nessa senda, caberia ao STF dizer claramente o se e o porquê de considerar inconstitucional o mencionado art. 39, §1º, e fazê-lo apenas por maioria absoluta.
Finalmente, veja-se que temos oito votos reconhecendo que a TR afronta o direito fundamental de propriedade do credor trabalhista por não propiciar a recomposição do valor da moeda, mas quatro votos que, contraditoriamente, suprimem os juros de 1% ao mês, substituindo-os pela taxa SELIC, hoje em seu menor patamar na história, 2% ao ano. Em outras palavras, à guisa de proteger o direito de propriedade do credor judicial trabalhista, estariam reduzindo drasticamente o percentual somado de juros e atualização que sempre incidiu. O impenetrável logos de tal raciocínio apresenta incoerência entre os fins declarados (proteger a garantia constitucional de propriedade do credor trabalhista, mal atendida pela TR) e os meios (reduzindo percentual total incidente, por uma eliminação reflexa dos tradicionais juros trabalhistas). Lúcida a afirmação do Ministro Marco Aurélio quando, em seu voto, lembrou que “a corda sempre estoura no mais fraco” – já que a situação acima reduzirá em aproximadamente 80% o custo da inadimplência e da procrastinação, com o efeito colateral de dilatar ainda mais a espera do trabalhador pelo pagamento dos seus créditos alimentares.
Fosse seguir a coerência necessária à sanidade do sistema de precedentes obrigatórios, a ADC 58 viria tão-somente a referendar as decisões pronunciadas pelas ADIns 4357, 4372, 4400, 4425, ação cautelar 3764, e RE 870947 (Tema 810 da repercussão geral). Em Brasil, contudo, ao que parece, o espírito de coerência, integridade e estabilidade permanece como categoria deontológica.
É certo, de todo modo, que tudo dependerá do voto de Minerva. Como deusa da sabedoria, esperamos, genuinamente, que sabedoria não falte ao nobre Ministro Presidente, Dias Toffoli, e que, ao fim e ao cabo, o processo seja apreciado dentro dos objetivos limites discursivos em que instaurado e o angu, enfim, chegue à mesa dos trabalhadores – inteiro, devidamente recomposto.
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1- PRITSCH, Cesar Zucatti; JUNQUEIRA, Fernanda Antunes Marques; MARANHÃO, Ney. Correção monetária de débitos trabalhistas: análise da recente decisão monocrática do STF – ARE 1.247.402. Revista Migalhas, 6 de março de 2020. Disponível em: Clique aqui.
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*Cesar Zucatti Pritsch é Juris Doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), Juiz do Trabalho, Membro da Comissão de Jurisprudência e Conselheiro da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.
*Fernanda Antunes Marques Junqueira é Doutoranda em Direito e Processo do Trabalho Contemporâneo pela Universidade de São Paulo. Visiting Scholar pela American University Washington College of Law. Mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais. Juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.
*Ney Maranhão é Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Pará. Juiz Titular de Vara do TRT da 8ª Região (PA-AP). Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.