Migalhas de Peso

Leniência anticorrupção e a (in)segurança jurídica na tutela da moralidade administrativa

Os acordos de leniência – inspirados no direito norte americano, na seara dos crimes antitruste –, podem ser considerados uma natural evolução dessa tendência de utilização da consensualidade para a ordenação da atividade sancionadora.

1/9/2020

Tem se tornado cada vez mais crescente a busca por instrumentos de consensualidade na Administração Pública, em substituição à histórica rigidez decorrente do atributo da imperatividade dos atos administrativos, notadamente no exercício de sua atividade sancionadora.

Com efeito, tal espécie de fenômeno vem se intensificando desde a previsão, pela Lei da Ação Civil Pública, da possibilidade de compromissos de ajustamento da conduta do particular às exigências legais do Poder Público, por meio dos denominados Termos de Ajustamento de Conduta – TAC’s, sendo também exemplo os Acordos Substitutivos, no âmbito das Agências Reguladoras, e os Termos de Cessação de Conduta (TCC’s), mecanismos esses que acabaram por revelar sua importância em razão da economia de tempo e recursos para uma adequada reparação, pelo particular, de danos causados a bens públicos.

Em que pese a existência de um aparente conflito axiológico entre a ideia de uma prevenção geral negativa baseada no (esperado) caráter dissuasório da sanção legalmente prevista e a de uma composição entre o poder sancionador e o particular infrator, pode-se perceber a prevalência de uma nova concepção voltada à adoção, pelo particular, de comportamentos em conformidade com o próprio interesse público1.

Nesse contexto, os acordos de leniência – inspirados no direito norte americano, na seara dos crimes antitruste –, podem ser considerados uma natural evolução dessa tendência de utilização da consensualidade para a ordenação da atividade sancionadora, na medida em que tais acordos são considerados instrumentos bilaterais celebrados estre a Administração Pública e um particular, pelo qual o primeiro oferece mitigações ou isenções das penalidades aplicáveis ao segundo, em troca da sua colaboração no processo sancionador.2

Justamente em razão da mencionada importação do modelo estadunidense, os acordos de leniência foram inicialmente previstos em nossa legislação apenas para ilícitos contra a ordem econômica, através da medida provisória 2.055/00, convertida na lei 10.149/00, com posterior aperfeiçoamento da tutela dos ilícitos concorrenciais pela lei 12.529/11 e pelo próprio Regimento Interno do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, quando então estabeleceu-se um efetivo Programa de Leniência3, sob a competência do CADE.

Importante registrar-se, a propósito, o fato dessa experiência de aprimoramento da leniência antitruste ao longo das duas últimas décadas ter proporcionado a racionalização do instituto, tanto sob o aspecto de sua evolução normativa, quanto de sua aplicação prática, apresentando-se como bom exemplo de eficiência na defesa do sistema concorrencial pátrio4 – ante o interesse despertado no infrator em aderir ao acordo e as informações e provas por este ofertadas em colaboração ao ente sancionador –, a revelar que a efetividade de um programa de leniência demanda uma dosimetria de incentivos que vai além da mera prescrição normativa do instituto.5

Como exemplo de incentivo capaz de atrair o interesse do infrator em aderir a um acordo de leniência no âmbito do CADE, está a possibilidade de adesão conjunta ao acordo da pessoa jurídica e da pessoa natural, responsável pela infração, inclusive com repercussão positiva na esfera penal – mediante a extinção da punibilidade dos crimes reportados –, ainda que, nesse particular, tenha a lei sido falha ao não precisar exatamente quais tipos penais estariam albergados em tal repercussão.6

Com a entrada em vigor da lei federal 12.846/13, a chamada Lei Anticorrupção, houve uma significativa ampliação da previsão legal de celebração de acordos de leniência em nosso ordenamento, vez que inserida no âmbito da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional ou estrangeira, alargando-se, pois, o alcance do instituto da leniência para muito além dos ilícitos concorrenciais.

Ainda mais recentemente, a lei federal 13.506/17, que disciplinou o Processo Administrativo Sancionador no âmbito do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, não obstante tenha se utilizado do termo “Acordos Administrativos”, ampliou a previsão legal do instituto da leniência – considerando-se a inferência ontológica de tais acordos –, constando-se, assim, uma considerável expansão dessa moderna forma de consensualidade no campo do processo administrativo sancionador.

Essa expansão, todavia, sobretudo no que pertine à Leniência Anticorrupção, introduzida que foi pelo art. 16 da lei federal 12.846/13 – a qual é objeto de nossa pontual análise no presente e despretensioso artigo –, deu-se, lastimavelmente, de maneira absolutamente disforme pelo legislador, certamente em razão do açodamento na aprovação de legislação “transplantada” do direito alienígena, no afã do governo de então em apresentar algum tipo de resposta aos pretensos reclames contra a velha chaga da corrupção, no contexto das manifestações de junho de 20137.

Com efeito, o tratamento dispensado pelo legislador à Leniência Anticorrupção foi de tal forma deficiente que sequer chegou a prever a possibilidade de adesão conjunta da pessoa natural ao termo de acordo firmado pela pessoa jurídica, conforme expressamente previsto na Leniência Antitruste, circunstância esta que, como afirmado, revela-se na prática como um dos grandes atrativos para o infrator pretendente a colaborador, em razão da segurança jurídica de todos os envolvidos no processo de negociação, máxime em relação à repercussão penal, de modo a permitir o que se convencionou identificar na práxis desses acordos pela expressão “virar a página”.

Causa profunda espécie, portanto, o fato de que não se tenha tido o mínimo cuidado em se emprestar um tratamento uniforme a instituto já presente em nosso ordenamento para as infrações concorrenciais há mais de uma década, quando da edição da lei 12.846/13, tendo passado por ampla reforma na lei 12.529/11, também anterior, razão pela qual deveria ter sido o ponto de partida para uma expansão da leniência à tutela de novos bens jurídicos.

Em reforço à crítica ora expendida, os próprios Acordos Administrativos em Processo de Supervisão no âmbito do Sistema Financeiro Nacional (BACEN e CVM), de que trata a lei 13.506/17 – os quais, como afirmado, a despeito da nomenclatura utilizada pelo legislador, têm natureza de leniência –, também fizeram constar a previsão de celebração do acordo com as pessoas físicas ou jurídicas relacionadas à infração8, acentuando-se a apontada anomalia e disfuncionalidade da Leniência Anticorrupção, nesse particular.

Para além desse incompreensível tratamento disforme, com a indevida limitação dos efeitos da leniência exclusivamente à pessoa jurídica, no âmbito da Lei Anticorrupção, tornando extremamente insegura e, por isso mesmo, desestimulante, a adesão de infratores representantes – e sobretudo empregados9 – das empresas em tese beneficiárias do acordo, existem outros dois grandes problemas que dificultam a consolidação do instituto, também relacionados aos efeitos dos acordos – ou ao que se espera deles, na visão do infrator aspirante a colaborador.

O primeiro diz respeito à multiplicidade de órgãos sancionadores no âmbito da Administração Pública, tendo a operação Lava Jato demonstrado a existência de uma plêiade de autoridades que poderiam ser competentes para analisar a mesma prática ilícita.10

 É bom que se diga, a propósito, que a existência de um sistema multifacetado de sancionamento foi opção expressa do constituinte, cuja intenção parece ter sido a de conferir a diversos órgãos a tarefa de zelar pelo bom uso de bens e poderes públicos, de modo a proteger-se os próprios órgãos de controle de corruptos e corruptores, numa espécie de blindagem da atuação administrativa no enfrentamento de situações de afronta à moralidade.11

Nada obstante, o fato é que, relativamente aos acordos de leniência, é preciso reconhecer-se que a presença de diversos atores independentes no cenário sancionador, sem uma atuação coordenada, pode gerar profunda insegurança ao candidato a colaborador, ante a ausência de transparência e previsibilidade, dois dos grandes pilares dos Programas de Leniência.12

Essa a razão pela qual ganha cada vez mais força a ideia de um “balcão único”13 para a firmação de acordos de leniência, pelo qual se poderia garantir, aos pretendentes a colaborador, maior segurança jurídica, mediante a negociação com todos os órgãos de controle envolvidos, num acordo único que lhes garantiria imunidade, ou redução de sanção, permitindo, ao fim e ao cabo, “virar a página” em relação ao histórico de infrações praticadas.14

O segundo problema remanescente a ser apontado em matéria de acordos referentes à Leniência Anticorrupção revela-se na transcendência ou transversalidade dos ajustes entre as esferas penal, civil e administrativa, problema esse agravado pela interpretação inflexível que se tem dado à independência funcional do Ministério Público, em conflito com a própria unidade da instituição.

Isto porque, não raro, pela ausência de previsão na Lei Anticorrupção, conforme já abordado, de uma adesão das pessoas naturais aos acordos de leniência firmados pelas pessoas jurídicas, os fatos reportados por representantes e empregados dessas empresas são utilizados contra estes para instrumentalizar a persecução penal, como, também, a persecução cível, por meio das ações civis por ato de improbidade.

O mesmo contrassenso pode ser observado pela via inversa, isto é, quando acusados ou investigados no âmbito criminal realizam acordos de colaboração premiada, previstos na lei 12.850/13, e os fatos ali confessados são utilizados para instauração das referidas ações de improbidade, no âmbito cível, ou Tomadas de Contas, junto ao TCU.15

Tais empecilhos a esses novos espaços de consensualidade na atividade sancionadora do Estado, diante da lacuna legislativa, têm sido objeto de enfrentamento pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na tentativa de evitar o descrédito, que, em última análise, poderá levar até mesmo à inocuidade do instituto.

Nesse sentido merece destaque o voto conjunto do ministro Gilmar Mendes nos Mandados de Segurança de números 35.435 e 36.496, em busca de um equilíbrio institucional calcado na comunicação entre os diversos órgãos sancionadores, asseverando que “uma perspectiva punitiva não coordenada dos regimes de responsabilidade cível e administrativa gera riscos à própria efetividade do sistema anticorrupção”.

De destacar-se, ainda, na esteira do apontado vácuo legislativo, a recente nota técnica 01/20, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que tratou justamente das adesões de pessoas físicas aos acordos de leniência firmados com base no referido art. 16 da Lei Anticorrupção, com enfoque nos efeitos sobre a Lei de Improbidade Administrativa, agora sem o óbice do antigo art. 17, que vedava a realização de qualquer espécie de acordo nas ações de improbidade, alteração esta levada a efeito pelo chamado Pacote Anticrime16, instituindo-se os Acordos de Não Persecução Cível.17

Percebe-se, à guisa de arremate, que a falta de um tratamento uniforme dos programas de leniência existentes no ordenamento, especialmente em relação à Leniência Anticorrupção, tem gerado problemas de sobreposição institucional na tutela da moralidade administrativa, fazendo com que as omissões legislativas sejam supridas pela jurisprudência do STF e pelos normativos internos dos órgãos de orientação do Ministério Público, em busca de uma melhor comunicação institucional, a bem da própria salvaguarda do instituto, o que efetivamente se espera.

Nesse caminho, sugere-se a aplicação analógica da tutela legal da Leniência Antitruste como forma de integração da lacuna legislativa evidenciada em relação à Leniência Anticorrupção, até que sobrevenha legislação mais consentânea com a era da consensualidade que estamos a vivenciar.18

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1 Nesse sentido ver: TOJAL, Sebastião Botto de Barros; TAMASAUSKAS, Igor Sant'Anna. A leniência anticorrupção: primeiras aplicações, suas dificuldades e alguns horizontes para o instituto. In: MOURA, Maria Thereza de Assis Moura; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. (Org.). Colaboração Premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 240.

2 CANNETI, Rafaela Coutinho. Acordo de Leniência. Fundamento do instituto e os problemas de seu transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. 2ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 17.

3 Arts. 86 e 87 da Lei 12.529/11 e 196 a 2010 do RICADE.

5 CANNETI, Rafaela Coutinho. Acordo...cit, p. 217.

6 Quanto aos critérios de delimitação do alcance da repercussão penal em questão, cf. ATHAYDE, Amanda. GRANDIS, Rodrigo. Programa de Leniência e Repercussões Criminais: Desafios e Oportunidades Recentes.

7 No mesmo contexto foi aprovada a Lei 12.850/13, que instituiu a colaboração premiada em nosso ordenamento.

8 Com a ressalva dos problemas que podem advir da exigência de comunicação ao Ministério Público de crimes confessados no acordo (art. 31, § 2º), o que, todavia, refoge à nossa perquirição.

9 Basta aventar-se a hipótese de uma diretoria não muito preocupada com a proteção jurídica de seus executivos.

10 Nesse sentido ver: ALVES, Marlus Santos; ROS, Luiz Guilherme. Comunicação e previsibilidade: pilares dos acordos de leniência. Acesso em: 13jul.2020.

11 Nesse sentido: TOJAL, Sebastião Botto de Barros; TAMASAUSKAS, Igor Sant'Anna. A leniência...cit., p. 240. MACHADO, Maíra Rocha; PASCHOAL, Bruno. Monitorar, Investigar, Responsabilizar e Sancionar. A multiplicidade institucional em casos de corrupção. In Novos Estudos, vol. 104. São Paulo: CEBRAP, 2016.

12 ALVES, Marlus Santos; ROS, Luiz Guilherme. Comunicação...cit.

13 Veja-se, a propósito, o Acordo de Cooperação Técnica (nota de rodapé nº 1), propondo uma coordenação interinstitucional no âmbito dos acordos de leniência.

14 Idem, ibidem.

15 Esse ponto específico, relativamente à transcendência dos efeitos de imunidade negociada no âmbito da colaboração premiada para a esfera cível, é objeto de Repercussão Geral reconhecida pelo Plenário do STF no ARE1175650, relator o ministro Alexandre de Moraes.

16 Lei 13.964/19.

17 A propósito disto, nos parece um profundo desacerto o fato de o Acordo de Cooperação Técnica (ver nota de rodapé nº 1) recentemente firmado entre alguns dos órgãos dotados de poder sancionador na atividade administrativa, sob a coordenação do STF – em busca de uma louvável atuação coordenada dos entes sancionadores –, tenha excluído das negociações dos acordos de leniência justamente o player mais estratégico nessa seara, isto é, o Ministério Público, não só pela condição de dominus litis da persecução criminal, a par da persecução cível, no campo da improbidade administrativa, mas sobretudo pelo importante contributo na construção de uma normatividade integrativa dos acordos de leniência em relação a outras espécies de consensualidade existentes no ordenamento, fruto da vasta experiência adquirida nas recentes operações de combate à corrupção, cujo exemplo maior é a Operação Lava Jato.

18 Nesse sentido ver: FERRAZ, Luciano. Acordos de leniência – a teoria do diálogo das fontes e a analogia in bonam partem. Acesso em: 14jul.2020.

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O presente artigo foi concluído antes da celebração do Acordo de Cooperação Técnica firmado no último dia 06 de agosto entre o MPF, CGU, AGU, MJSP e TCU, sob a coordenação do STF, “a ser adotado em matéria de combate à corrupção, especialmente em relação aos Acordos de Leniência da Lei 12.846/13”, razão pela qual as críticas ao ACT em questão foram feitas em notas de rodapé.

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*Ademar Mendes Bezerra Júnior é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal Econômico pela FGV/SP e presidente do Instituto Nordeste de Direito Penal Econômico – INEDIPE. Advogado do escritório Aguiar Advogados.

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