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A recriação do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor: o que o mercado deve esperar?

O primeiro Conselho Nacional de Defesa do Consumidor - CNDC, criado por Sarney, teve papel atuante na formulação de propostas à Assembleia Constituinte, além de participar da elaboração do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, em período histórico em que o cenário político, econômico e jurídico era completamente diverso do atual.

28/8/2020

No dia 8 de julho de 2020 foi publicado o decreto federal 10.417/20, que instituí o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, com finalidade de assessorar a elaboração e condução da Política Nacional de Defesa do Consumidor, e, ainda, formular e propor recomendações aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

Referido órgão terá composição mista, devendo ser integrado pelo Secretário Nacional do Consumidor, que o presidirá; por um representante indicado pelo Ministério da Economia; por um representante indicado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); por um representante indicado pelo Banco Central do Brasil; por quatro representantes de agências reguladoras, indicados pela Agência Nacional de Aviação Civil, pela Agência Nacional de Telecomunicações, pela Agência Nacional de Energia Elétrica e pela Agência Nacional de Petróleo; por três representantes de entidades públicas estaduais ou distritais destinadas à defesa do consumidor de três regiões diferentes do País; por um representante de entidades públicas municipais destinadas à defesa do consumidor; por um representante de associações destinadas à defesa do consumidor com conhecimento e capacidade técnica para realizar análises de impacto regulatório; por um representante dos fornecedores com conhecimento e capacidade técnica para realizar análises de impacto regulatório; e por um jurista de notório saber e reconhecida atuação em direito econômico, do consumidor ou de regulação.

Além de não haver a participação da ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres, da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, chama a atenção não ter sido incluído um representante da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar, sobretudo em razão da excessiva judicialização envolvendo o setor, podendo se destacar pesquisa realizada pelo Insper, a requerimento do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, que identificou que entre os anos de 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde registrou um aumento de 130%1.

Verifica-se ainda que a constituição do Conselho será bem heterogênea, contribuindo para uma visão mais aprofundada acerca das peculiaridades do mercado de consumo nacional, assim como das dificuldades estruturais e regulatórias enfrentadas pelos diversos setores econômicos atuantes no País, o que não significa, contudo, que a representação dos consumidores e fornecedores no referido Conselho seja paritária, pelo contrário, ela é predominante formada por representantes do poder público ou de representantes dos órgãos de proteção e defesa do consumidor.

Também merece destaque o formato do Conselho e seu papel, tratando-se de uma recriação do modelo existente a época do governo do então presidente José Sarney, que havia criado esse mesmo Conselho por meio do decreto federal 91.469, de 24 de julho de 1985, posteriormente editado pelos decretos federais 92.396/86 e 94.504/87, o qual além de possuir a mesma denominação, também tinha escopo de atuação e composição semelhantes, ou seja, “reeditou-se” uma norma de 35 (trinta e cinco) anos atrás.

O primeiro Conselho Nacional de Defesa do Consumidor - CNDC, criado por Sarney, teve papel atuante na formulação de propostas à Assembleia Constituinte, além de participar da elaboração do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, em período histórico em que o cenário político, econômico e jurídico era completamente diverso do atual.

Criado o Código de Defesa do Consumidor e com ele o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor - SNDC, o Conselho em questão “perdeu” a razão de ser, privilegiando-se em seu lugar a atuação da Senacon, dos Procons, das associações de proteção e defesa do consumidor, do Ministério Público, além das próprias agências reguladoras, formadas a partir da década de 90 (noventa).

Esse arranjo evolutivo encontra algumas explicações, a primeira é que o CNDC criado por Sarney se deu em momento anterior à criação do SNDC, apesar de já existirem à época alguns Procons e algumas ferramentas jurídicas para solução de demandas de interesse coletivo, como a Lei da Ação Civil Pública. Acrescenta-se ainda que o Código de Defesa do Consumidor foi criado em período em que as relações de consumo se concretizavam em âmbito local, de modo que as interações jurídicas e econômicas eram mais simplificadas, pois sequer havia internet até a primeira metade da década de 90. Assim, elaborada a Constituição Federal e estabelecido o SNDC por meio do Código de Defesa do Consumidor, o CNDC cumpriu seu papel institucional naquele período.

Assim, nos parece que esse foi um caminho evolutivo natural naquele momento histórico, que encontra no aprimoramento da harmonização das relações de consumo, por meio do maior diálogo entre representantes de consumidores e fornecedores, um passo necessário na busca da maior satisfação na experiência de consumo e na redução de custo para as empresas.

Ocorre que com o advento da internet, do e-commerce, da crescente circulação de dados, com diversas formas de interação de consumo, não restrita a âmbito local, as relações de consumo passaram a ser transnacionais, o que exige tanto uma solução jurídica adequada aos interesses de consumidores e fornecedores, como uma relação harmônica entre os diversos atores do setor público, ou seja, entre os órgãos de proteção e defesa do consumidor, Poder Judiciário, agências reguladoras e poder público de forma geral.

A complexidade dessas relações aumentou a assimetria informacional entre consumidores e fornecedores, assim como entre os diversos representantes da administração pública, que nem sempre falavam a mesma linguagem e por vezes não respeitavam diretrizes estabelecidas por meio de políticas públicas, causando insegurança jurídica, incertezas no mercado, aumento do custo de transação das empresas e consequente impacto no preço final de produtos e serviços.

É diante dessa conjuntura político-econômica, que demanda melhoria dos canais de diálogo entre entidades de defesa do consumidor e setor produtivo, aperfeiçoamento e integração do arcabouço regulatório com a legislação consumerista, revigoramento e maior representatividade das instituições já existentes, que se optou pela recriação do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, a quem incumbirá coordenar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, aproximando os diversos setores da administração e interatuando com as políticas públicas estabelecidas.

Logo, a expectativa do Conselho é que haja melhor coordenação do SNDC com os demais atores sociais, privilegiando-se a perspectiva econômica do direito, para que se proporcione soluções jurídicas mais inovadoras, que se atentem as diversas peculiaridades do mercado, realizando direitos ao consumidor, sem que se perca de vista as perspectivas regulatórias e concorrenciais, essenciais para o fortalecimento do mercado nacional.

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*Douglas dos Santos Ribeiro é especialista em Direito do Consumidor e Processos Cíveis Empresariais, do escritório Pires & Gonçalves - Advogados Associados.

 

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