Migalhas de Peso

Os entraves à restituição de indébito tributário reconhecido pela Receita Federal e a recente decisão do STF no RE 917.285

A sistemática da compensação de ofício não deixa de ser coerente, na medida em que não faria sentido autorizar a Receita Federal a efetuar a restituição de valores (ainda que plenamente reconhecidos e devidos) a contribuintes devedores do Fisco.

27/8/2020

Ao pleitear a restituição de indébito tributário na via administrativa, por meio do programa PER/DCOMP, não é incomum que as empresas sejam surpreendidas ao receber, além do despacho decisório, deferindo total ou parcialmente o crédito requerido, o comunicado para compensação de ofício do valor reconhecido com débitos federais que estejam em cobrança perante a Receita Federal ou a Procuradoria da Fazenda Nacional.

Isso se dá, pois, o caput do artigo 73 da lei 9.430/961 prevê que “a restituição e o ressarcimento de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ou a restituição de pagamentos efetuados mediante DARF e GPS cuja receita não seja administrada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil será efetuada depois de verificada a ausência de débitos em nome do sujeito passivo credor perante a Fazenda Nacional”.  

A sistemática da compensação de ofício não deixa de ser coerente, na medida em que não faria sentido autorizar a Receita Federal a efetuar a restituição de valores (ainda que plenamente reconhecidos e devidos) a contribuintes devedores do Fisco. Fosse assim, teríamos situação em que dinheiro sairia dos cofres da União para restituir contribuinte que o utilizaria para quaisquer outros fins e permaneceria indefinidamente devedor da União. É dizer, a União financiaria os seus próprios devedores.

Entretanto, não é possível impor a compensação de ofício sobre débitos tributários que estejam com a exigibilidade suspensa por qualquer uma das hipóteses do artigo 151 do Código Tributário Nacional. Em outros termos, a compensação de ofício só deve recair sobre débitos “em aberto”, isto é, plenamente e imediatamente exigíveis ao sujeito passivo, tal como já decidiu em 2011 o Superior Tribunal de Justiça, sob a sistemática dos recursos repetitivos, no REsp 1.213.082/PR.

Ao receber tal comunicado, a empresa tem duas opções: concordar com a compensação de ofício imposta, bastando permanecer silente, ou, discordar, devendo então apresentar a cabível manifestação de discordância à Receita Federal no prazo de 15 dias2, na qual a apresentará suas alegações quanto à inexigibilidade ou suspensão da exigibilidade dos débitos, nos termos do citado artigo 151 do Código Tributário Nacional.

Aliás, vale pontuar que na prática é bastante comum nos depararmos com comunicados expedidos pela Receita Federal em que todos os débitos elencados estejam com a sua exigibilidade devidamente suspensa. Isso se dá por diversos motivos, especialmente por desatualização dos sistemas da Receita Federal, que muitas vezes não contam com as informações mais atualizadas sobre a real situação dos débitos em questão.

Assim, pode ocorrer de um determinado débito constar como devedor nos controles da Receita Federal, porém na realidade ele é objeto de medida liminar favorável ao contribuinte; ou está garantido judicialmente por seguro garantia ou carta-de-fiança; etc. Uma vez atestada pelo contribuinte a suspensão da exigibilidade dos débitos apontados no comunicado, o correto seria então a Receita Federal liberar o andamento da restituição, mediante a emissão de ordem bancária, ou autorizar que o crédito seja utilizado em compensações próprias pelo PER/DCOMP.

Contudo, a prática nos demonstra que nem tudo é tão simples assim. Estamos acostumados a presenciar casos em que a Receita Federal sequer se manifesta sobre a manifestação de discordância apresentada, travando, assim, a devida restituição dos valores já reconhecidos. Tal situação força muitos contribuintes a buscar o Poder Judiciário, especialmente via Mandado de Segurança, para ter reconhecido o seu pleno direito à restituição ou compensação do crédito.

Já não bastasse toda essa problemática de ordem prática e operacional, há ainda uma questão de ordem legal, sanado apenas agora pelo Supremo Tribunal Federal, que é a redação do parágrafo único do artigo 73 da lei 9.430/96 (dada pela lei 12.844/13), a qual autoriza a compensação de ofício sobre débitos “parcelados sem garantia”.

Com efeito, quase todos os programas federais de parcelamento, sejam especiais ou ordinários, não exigem a apresentação de garantias pelo sujeito passivo. Ou seja, muitas empresas em situação fiscal regular que aderiram a parcelamentos ordinários ou aos diversos parcelamentos especiais abertos pelo Governo Federal (REFIS, PRT, PERT etc.) ficam obstadas de receber a restituição3 até que o parcelamento seja definitivamente liquidado.

Na prática, a depender da quantidade de parcelas escolhida pelo contribuinte, o parcelamento pode se estender por vários anos, há casos também em que o parcelamento especial é quitado pelo contribuinte com créditos de Prejuízo Fiscal de IRPJ e Base Negativa de CSLL, cabendo à RFB homologar (ou não), no prazo de cinco anos, os créditos utilizados para liquidar o parcelamento.

Veja assim que, embora esteja em situação fiscal regular e plenamente adimplente no programa de parcelamento aderido, o contribuinte pode ser obstado por anos a receber a sua restituição.

 Do ponto de vista jurídico a problemática é ainda maior, já que o parcelamento (com ou sem garantia) é expressamente elencado no artigo 151, inciso VI, do Código Tributário Nacional, como causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário. Destarte, os débitos incluídos em qualquer tipo de parcelamento não deveriam ser, em hipótese alguma, objeto de compensação de ofício por parte da Receita Federal.

Nesse sentido, o Código Tributário Nacional, lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com natureza de lei complementar, é o instrumento constitucional cabível, nos termos do artigo 146 da Carta Magna, para estabelecer normas gerais em matéria tributária, dentre as quais as hipóteses em que ocorre a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

Assim, ao impor a compensação de ofício a débitos parcelados sem garantia, o parágrafo único do art. 73 da lei 9.430/96 (com redação dada pela lei 12.844/13), não só tratou de norma geral em matéria tributária (o que, como dito, só é possível por meio de lei complementar), como também limitou indevidamente o conteúdo do art. 151, inciso VI, do Código Tributário Nacional.

Finalmente, em sessão virtual dos dias 07/08 a 17/08 de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, em sede de repercussão geral, nos autos do RE 917.285, sob relatoria do Ministro Dias Toffoli, a inconstitucionalidade4 do termo “parcelamento sem garantia” previsto no mencionado dispositivo da Lei nº 9.430/96.

A corretíssima decisão do Supremo Tribunal Federal assegurará aos contribuintes, que tenham débitos incluídos em parcelamentos ordinários ou especiais, o direito à imediata restituição do indébito. A decisão abrange também os contribuintes que porventura já tenham em curso discussões administrativas sobre a matéria, tendo em vista que os conselheiros do CARF estão vinculados às decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral5.

Por fim, infelizmente ainda há enormes percalços, sobretudo de ordem prática e operacional, para o exercício do direito à restituição de indébito tributário reconhecido pela Receita Federal. Todavia, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 917.285 corrige grave inconstitucionalidade, a qual impedia a plena e imediata restituição de indébito a contribuintes com situação fiscal regular que aderiram a programas de parcelamento ordinário ou especial da União.

_________

1 Vide art. 7º do Decreto-lei nº 2.287, de 23 de julho de 1986.

2 Vide art. 89, §3º, da Instrução Normativa RFB nº 1717/17.

3 O artigo 89, §4º, da IN RFB nº 1717/17, que disciplina os procedimentos de restituição e compensação de indébitos federais, prevê que, no caso de discordância do contribuinte, mediante a apresentação de manifestação de discordância, a unidade competente da Receita Federal reterá o valor da restituição até que o débito seja liquidado.

4 Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 874 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, mantendo-se o acórdão que declarou a inconstitucionalidade da expressão “ou parcelados sem garantia”, constante do parágrafo único do art. 73 da Lei nº 9.430/96, incluído pela Lei nº 12.844/13, por afronta ao art. 146, III, b, da Constituição Federal, e fixou a seguinte tese: "É inconstitucional, por afronta ao art. 146, III, b, da CF, a expressão “ou parcelados sem garantia”, constante do parágrafo único do art. 73, da Lei nº 9.430/96, incluído pela Lei nº 12.844/13, na medida em que retira os efeitos da suspensão da exigibilidade do crédito tributário prevista no CTN", nos termos do voto do Relator. Falaram: pela recorrente, a Dra. Luciana Miranda Moreira, Procuradora da Fazenda Nacional; e, pelo recorrido, o Dr. Silvio Luiz de Costa. Não participaram deste julgamento os Ministros Celso de Mello e Luiz Fux. Plenário, Sessão Virtual de 7.8.2020 a 17.8.2020.

5 Por força do art. 62, §2º, do RICARF (aprovado pela Portaria MF Nº 343/2015).

_________

*Rodrigo Carvalho Samuel é mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário, PUC/SP. Pós-graduado em Direito Tributário, COGEAE-PUC/SP. Bacharel em Direito, PUC/SP. Advogado do escritório TSA Advogados.

 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024