Migalhas de Peso

A incompatibilidade entre a participação e a representatividade feminina na OAB

Na contemporaneidade, as mulheres estão cada vez mais participativas e protagonistas em seus campos de atuação, buscando a inserção e equidade no mercado de trabalho. Essa postura tem repercutido, também, na política de classe da OAB, com a disseminação de novos pensamentos e vozes que ecoam na defesa firme da feminização da advocacia.

26/8/2020

O número de mulheres inscritas na Ordem dos Advogados do Brasil tem aumentado de forma exponencial, alcançando quase 50% de sua integralidade. Em alguns estados, como é o caso de Bahia, Espírito Santo, Pará, Rio de Janeiro e Rondônia, este número já é superior. Apesar da participação maciça da figura feminina na composição dos quadros da OAB, isto não se reflete em representatividade na ocupação de cargos superiores e diretivos.

Na contemporaneidade, as mulheres estão cada vez mais participativas e protagonistas em seus campos de atuação, buscando a inserção e equidade no mercado de trabalho. Essa postura tem repercutido, também, na política de classe da OAB, com a disseminação de novos pensamentos e vozes que ecoam na defesa firme da feminização da advocacia. A OAB tem tido uma postura importante e ativa para combater as barreiras estruturais e oportunizar à ascensão da Mulher Advogada, valorizando o seu trabalho e a sua competência. Estamos caminhando cada vez mais para um futuro inclusivo com a participação legítima e decisiva da advocacia feminina nos rumos da Ordem.

No Brasil, os cursos jurídicos surgiram no século XIX, em 11 de agosto de 1827, através de lei promulgada por Dom Pedro Primeiro, que determinava a criação do curso de ciências jurídicas e sociais nas cidades de São Paulo e Olinda. Por muitos anos, a carreira jurídica foi um espaço eminentemente machista, ocupado apenas por homens. Somente em 1906 é que se tem registro da participação feminina no mundo jurídico, com o ingresso da advogada Myrthes Gomes de Campos no Instituto dos Advogados Brasileiros1.

A revolução feminina do século XX, com a reivindicação de direitos iguais para homens e mulheres, foi a maior transformação desta época, modificando substancialmente a relação entre os sexos e propiciando uma verdadeira revolução social, com valores que influenciaram na elaboração de nossa Carta Magna e que repercutem até os dias atuais. A Constituição de 1988 consolidou o tratamento isonômico entre os gêneros e coibiu a discriminação, representando um grande marco na proteção dos direitos das mulheres.

Embora tenhamos assegurada a igualdade em seu sentido formal, o seu aspecto substancial ainda se revela uma construção diária e com um progresso lento. Ainda que o número de mulheres, no País, seja superior ao de homens2, que representem majoritariamente o eleitorado brasileiro3 e constituam quase 50% dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)4, isso não repercute de forma fidedigna e autêntica nos cenários políticos no tocante à participação feminina. Alguns dados ainda impressionam. Desde a sua fundação, em 1930, a OAB Nacional nunca foi presidida por mulheres.

No atual triênio, a título de exemplo, não há Mulher Advogada à frente de nenhuma Seccional da federação e na composição do Conselho Federal apenas 16 das 81 vagas disponíveis são ocupadas por mulheres. Desde meados de 2013, a OAB, imbuída pelo espírito de instituição democrática e garantidora do exercício da cidadania, passou a ter um olhar mais atento e sensível à necessidade de se promover e suscitar - através de instrumentos efetivos - o espaço para que as mulheres possam ocupar os postos de protagonistas, com legitimidade e liberdade, como forma de promover a igualdade de gênero. Neste mesmo ano foi criada a Comissão Especial da Mulher Advogada – CNMA, com o objetivo de fortalecer a figura da mulher na sociedade brasileira, especialmente no exercício da advocacia, pugnando pelo respeito ao princípio da igualdade entre os sexos e incentivando à mulher advogada a assumir posição de autonomia em todas as frentes de trabalho. No ano seguinte, em 2014, o Conselho Pleno aprovou mudanças no sistema eleitoral da OAB para determinar que a composição das chapas dirigentes conte com, pelo menos, 30% de representação de gênero, oportunizando a participação feminina de forma mais ativa na política da Ordem. Já em 2015, a Comissão, até então provisória, foi transformada em permanente, consolidando o papel institucional da OAB de defesa e valorização das pautas da Mulher Advogada e do pleno e irrestrito exercício profissional sem qualquer discriminação.

É perceptível que as medidas vêm sendo apresentadas internamente pela OAB, que as portas estão sendo abertas e a luta das mulheres por conquistar o seu espaço já é uma realidade. Mas, sem dúvidas, ainda existem muitas barreiras para superar e avançar e isso requer uma postura cada vez mais firme e proativa da Ordem, promovendo uma mudança de mentalidade e uma maior conscientização de oportunidades. A participação feminina vem sendo ampliada, mas ainda é preciso romper barreiras e superar muitas questões, aumentando o espaço de visibilidade e voz das Mulheres Advogadas, a fim de se alcançar, verdadeiramente, o conceito de uma Ordem plural, democrática e com auto representação.

Vivemos em um país cuja cultura machista ainda não foi superada e, apesar dos esforços, essa contenda ainda é exclusiva de mulheres. Por isso, enquanto a luta pela participação feminina for apenas de mulheres, caminharemos a passos lentos. É imprescindível a participação dos homens nesta demanda. Somos mais da metade da população brasileira e metade dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, contudo, a mulher está longe de alcançar o mesmo patamar quando se trata de cargos de liderança, gestão e direção. É de bom alvitre destacar, então, que as mulheres são mães, irmãs, tias, esposas, namoradas e amigas dessa outra metade composta por homens e, mesmo assim, não estão conseguindo vencer a barreira do machismo, exatamente porque o homem não é parte integrante disso. Somente se estivermos todos juntos conseguiremos vencer definitivamente essa cultura tão retrógrada.

Ao analisarmos a posição da Advogada nos escritórios de advocacia é bastante perceptível sua posição de coadjuvante, mormente nos quadros societários, em que o quantitativo de mulheres detentoras de quotas sociais ainda é muito pequeno. Ainda vivemos em um Brasil em que mulheres recebem menores salários que homens por ocuparem as mesmas funções e, muitas vezes, maiores responsabilidades. As Advogadas, por mais competentes que sejam, precisam fazer uma demonstração de forma extraordinária do seu saber jurídico, apenas pelo fato de ser mulher. Se são leves em suas palavras, são incompetentes. Ao contrário, se são duras e assertivas, são autoritárias. Diferentemente do homem que já tem sua posição firme entendida sem questionamentos, a mulher precisa fazer verdadeiro malabarismo jurídico para comprovar sua capacidade e a firmeza da sua tese.

Nestes mesmos escritórios, a mulher em idade fértil é excluída. Sim! É uma realidade dura e que não pode ficar restrita às rodas de conversas, ao contrário, é necessário enfrentar esse problema e buscar formas de resolução ou, ao menos, de equilibra-lo. A época da maternidade é a mais difícil para a mulher, porquanto ela precisa, primeiro, decidir o momento, prepará-lo, e, somente após um planejamento, poder vivencia-lo de forma tranquila, de modo a conciliar com a vida profissional e, muitas vezes, institucional. Na maternidade, a mulher acumula mais uma responsabilidade e, muitas vezes, não encontra no seu companheiro a parceria para dividir mais essa atribuição e, em razão disso, o retorno à atividade profissional se torna muito mais difícil, assim como a inclusão às questões institucionais se torna cada vez mais distante. Hodiernamente, as mulheres optam pela maternidade cada vez mais tarde e, muitas mulheres simplesmente recusam a ideia de ter filhos para investir em suas carreiras profissionais e, assim, possibilitar a carreira institucional, com participação ativa nas diversas demandas da OAB. Quando não há o apoio do homem, é praticamente impossível conseguir conciliar as atividades domésticas, da maternidade, profissionais e institucionais sozinha. É, de fato, extremamente necessária uma rede de apoio e uma estrutura para que todos esses setores consigam um desempenho profícuo.

É exatamente por isso que as mulheres são praticamente metade dos inscritos na OAB, mas não ocupam nenhuma das presidências das Seccionais e são minoria nos cargos diretivos, ocupando, muitas vezes, as suplências. Na tentativa de valorização e destaque das Advogadas, estas passaram a ter nomenclatura redundante de “Mulher Advogada”, inclusive, ratificada pela OAB quando da criação da Comissão Nacional da Mulher Advogada e não apenas Comissão Nacional da Advogada, apesar de não ser utilizada a expressão “Homem Advogado”.

Em 2014, com o fulcro de incentivar a participação da Advogada, a OAB Nacional implantou a política de quotas, e, assim, o provimento 161/14 alterou o artigo 7º do provimento 146/11, para obrigar a participação de, no mínimo, 30% de mulheres na composição das chapas no pleito eleitoral da OAB. Não apenas isso, a fim de buscar melhorias, apoio e soluções para as Advogadas, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em 2015, editou o Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, por meio do Provimento 164/2015, com diversas diretrizes nas áreas de educação jurídica, dos direitos humanos da mulher, das prerrogativas e saúde, bem como com propostas de apoio a mulher no exercício da advocacia, o qual é executado, em sua maioria, pelas Caixas de Assistência dos Advogados, com implantação de creches, espaços kids, auxílio maternidade, espaços de amamentação, cursos específicos e atendimento médico especializado à mulher. Demais disso, buscou junto ao Poder Legislativo a aprovação de prerrogativas para a Mulher Advogada e obteve pleno êxito com a sanção da lei 13.363, de 25 de novembro de 2016, a qual trouxe direitos e garantias à advogada gestante e lactante.

A OAB tem feito muito pela Mulher Advogada, porque entendeu que ela precisa da rede de apoio para poder desempenhar seus multipapéis, porque compreendeu que a igualdade de direitos conquistada pelas mulheres foi agregada com o acúmulo de diversas outras responsabilidades que não foram compartilhadas com os homens, em decorrência da cultura ainda bastante enraizada do machismo. Por outro lado, enquanto o homem não for parte integrante desta luta, sempre se avançará dois passos, todavia, se regredirá um, tornando a caminhada mais lenta. É preciso que o homem compreenda que não se trata de um discurso de “mimimi”, mas de uma necessidade de apoio e estrutura para poder viver a igualdade de direitos.

Não podemos ser hipócritas e acreditar que uma mulher com filhos conseguirá participar daquelas reuniões de negócios, que somente possuem hora de começar sem previsão de término, da mesma forma que um homem. Não se pode imaginar a participação dessa mulher nas longas e intermináveis Sessões do Conselho da OAB, sem uma rede de apoio para que ela possa desenvolver suas diversas atribuições de forma tranquila e saudável. Viver a ascensão profissional e institucional conciliada com um lar equilibrado e acompanhando o desenvolvimento dos filhos não requer apenas capacidade, mas sim uma estrutura e uma rede de apoio.

Há muitos anos, por meio de uma união de forças, as mulheres conquistaram direitos, poder e espaço. Contudo, juntamente com estes direitos, estão as já existentes responsabilidades domésticas e com os filhos, que estão caminhando a passos lentos para serem compartilhadas com os homens e que são a causa do distanciamento dessa mulher da ascensão profissional e da participação nos quadros e atividades da OAB.

Ciente desse cenário, a OAB tem trabalhado incansavelmente para conseguir promover a inclusão da Mulher Advogada no âmbito institucional, bem como para tornar a vida profissional mais saudável, tranquila e equânime. Muito já foi feito, com destaque ao Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, amplamente trabalhado pelas Caixas de Assistência dos Advogados, mas há também muito a ser realizado, mormente no tocante à conscientização da necessidade de uma real união entre homens e mulheres para avançar ainda mais nesta temática.

Além das ações positivas já existentes é preciso a inclusão do homem nesta demanda, pois é imprescindível que o homem seja parte integrante do movimento de inclusão da Advogada na atividade institucional e no livre e tranquilo desenvolvimento profissional da mulher. Conclamamos todos a fazer a seguinte reflexão: o que estamos fazendo para possibilitar a inclusão da Mulher Advogada nas atividades institucionais e profissionais? Façamos mais até alcançar a verdadeira igualdade.

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1 O surgimento da Ordem dos Advogados do Brasil remonta ao século XX, em meio aos anseios de mudanças e transformações após a revolução de 1930, o que culminou com a assinatura do decreto presidencial nº 19.408, em 18 de novembro do mesmo ano, assinado por Getulio Vargas.

2 As mulheres compõem 51,7% da população brasileira (IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2018).

3 52% do eleitorado brasileiro, em 2018, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

4 A OAB tem, hoje, mais de 580 mil mulheres inscritas em seus quadros contra 592 mil inscrições masculinas.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL, Provimento nº 164, de 21 de setembro de 2015. Cria o Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 29 set. 2015. Disponível: Clique aqui Acesso em: 28 de dezembro de 2019.

Coleção das Leis do Império do Brasil, 1854, Decreto Nº 19.408, em 18 de novembro de 1930.

Coleção das Leis do Império do Brasil, Lei de 11 de agosto de 1827.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), 2018.  Disponível: Clique aqui. Acesso em: 28 de dezembro de 2019.

OAB-SP. A criação da OAB.  Disponível: Clique aqui Acesso em: 28 de dezembro de 2019.

Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O início da caminhada. Disponível: Clique aqui. Acesso em: 28 de dezembro de 2019.

Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Quadro de Advogados – Quantitativo por Gênero. Disponível: Clique aqui. Acesso em: 28 de dezembro de 2019.

Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Estatísticas do eleitorado – Por sexo e faixa etária, 2018. Disponível: Clique aqui. Acesso em: 28 de dezembro de 2019.

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*Ana Laura Rêgo é advogada. Assessora Consultiva da Assembleia Legislativa do RN. Pós-graduanda em Direito Eleitoral pela PUC. Presidente da Comissão de Apoio à Advocacia Iniciante da OAB/RN. Membro da Comissão de Acompanhamento Legislativo da OAB/RN.

*Monalissa Dantas Alves da Silva é advogada. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Médico e da Saúde. Presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Rio Grande do Norte. Membro do CONCAD Mulher e CONCAD Jovem. Membro do Conselho Gestor do FIDA. Membro da Comissão de Gestão, Empreendedorismo e Inovação do Conselho Federal da OAB.

 

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