Migalhas de Peso

Esquecer e Ser

Direito ao esquecimento não é restrição; é a exceção a confirmar a liberdade; é direito que não olha o retrovisor e visa proteger em especial as gerações futuras, que estarão muito mais expostas à velocidade e perpetuação das informações nas malhas de uma virtualidade com efeitos cada vez mais concretos.

24/8/2020

Qualquer canto é menor que a vida de qualquer pessoa.” (Belchior)

Li com muita atenção o texto publicado pelo Migalhas sobre o direito ao esquecimento (4.919), e sempre é interessante – e necessário para melhor interpretar – conhecer a opinião editorial dos veículos que informam e influenciam a imensidão de internautas interessados em temas jurídicos.

Estudo o tema por interesse pessoal e missão profissional, esta por advogar para a família Curi, vítima de uma tragédia familiar em 1958, quando a jovem Aída Curi, após uma tentativa de estupro, foi arremessada viva do alto de um edifício na orla de Copacabana, rumo à morte, dando ensejo a uma das maiores e mais longas coberturas jornalísticas que se tem notícia.

O escritório ao qual pertenço (Algranti e Mourão Advogados Associados) advoga há muitos anos para a família, e ajuizou a ação que gerou o tema de repercussão geral sobre o direito ao esquecimento (tema 786), na qual jamais pedimos qualquer espécie de liminar para impedir a veiculação do programa Linha Direta Justiça, que explorou comercialmente este profundo trauma familiar de forma sensacionalista, grosseira, desumana, marrom.

Foi este patrocínio que me levou a criar a espécie direito ao esquecimento da vítima, talvez um leading case mundial, na expectativa pretenciosa de auxiliar na consolidação de um instrumento jurídico apto a impedir o crescimento exponencial do drama e da dor de quem é vitimado por uma tragédia (em geral um crime), por força de sua exploração massiva pela mídia/imprensa, que se por um lado é lícita e inevitável enquanto o assunto se faz contemporâneo, por outro se torna desarrazoada e ilegal após transcorrido tempo suficiente para retirar ou diminuir substancialmente a relevância social e o interesse público quanto aos fatos lutuosos.

Nosso ordenamento não tolera as punições perpétuas (art. 5º, XLVII, b, C.F.), conforme pontuado oportunamente pelo min. Gilmar Mendes em seu voto divergente, neste mesmo julgamento noticiado pelo sempre atento e informativo Migalhas (RE 593.818).

O tema é enorme e não cabe inteiro em texto curto (vale assistir à audiência pública realizada pelo STF sobre o tema, disponível no Youtube), mas pontuo a minha convicta opinião de que este seu recente entendimento, no sentido de que os antecedentes criminais podem ser considerados sem limite de tempo, influenciará em nada, ou em quase nada, o veredicto a ser proferido pela nossa Corte Constitucional sobre o direito ao esquecimento, em gênero e espécie.

A despeito da resistência de muitos, o direito ao esquecimento deve ser compreendido e aplicado em um viés interdisciplinar, incluindo-se menos ou nada essa sua fonte remota no direito penal, e mais, muito mais, uma reflexão a respeito da saúde e da dignidade humana de quem o invoca.

Na exposição que fiz na audiência pública realizada no STF, em 2017, tive a oportunidade de ressaltar uma obviedade amiúde ressaltada na sua jurisprudência, de que as liberdades não são absolutas e terão sempre sua limitação no ilícito, mesmo as (caríssimas) de expressão e imprensa.

Naquela mesma oportunidade, li trecho de um estudo técnico da Revista de Psiquiatria sobre o estresse pós-traumático, doença que atinge fortemente as vítimas de tragédias. Este estudo mostra que estas vítimas muitas das vezes se transformam em “mortos para a vida”; perdem a capacidade de se socializar, amar, estudar, trabalhar; ficam “desconectadas de si mesmas” e não conseguem ser felizes – lembre-se que ser feliz é direito constitucional reconhecido pelo STF.

Com esta nuance médica em mente, imagine-se o sentimento de quem teve uma irmã cruelmente assassinada em 1958 ao ter seu drama explorado comercialmente em rede nacional meio século depois, com o uso descuidado de fotos dramáticas (como a de um dos irmãos, aos prantos e inconsolável, abraçado ao corpo sem vida de Aída sobre a calçada da Avenida Atlântica), com encenações chocantes do próprio assassinato, uso da sua fotografia como pano de fundo para pesquisas de opinião, tudo sem absolutamente nenhum cuidado com o sentimento da família.

Há de se aceitar por inelutável o noticiário quando os fatos são contemporâneos, históricos e de interesse (verdadeiramente) público; ou quando, a depender das circunstâncias, se referem a pessoas que, em menor ou maior grau, renunciaram a parte de sua privacidade beneficiando suas carreiras – políticos, artistas, etc.

Porém, a meu ver, não é aceitável permiti-lo fora destas circunstâncias e em caráter perpétuo, mantendo o estigma e o insuportável peso da tragédia sobre uma família para sempre, impedindo-a de amainar a dor pelo sistema nativo e humano do esquecimento, talvez a melhor arma para sobreviver a situações extremas – sobre esta correlação entre memória, saúde e direito, vale a leitura da tese de doutorado da Prof. Júlia Maurmo.

É claro que, à luz do direito ao esquecimento em gênero, se soma à proteção à saúde o propósito de ressocialização do criminoso, e ambos são próximos um do outro.

Todavia, o direito ao esquecimento não é binário, e sempre haverá muitos fatores a serem considerados pelo juiz ao se deparar com ele, como tem ocorrido mundo afora há quase um século com outros nomes, e como tem acontecido na Europa há quase meio século (vide os casos Lebach e Google Spain), onde já pertence ao passado o ato de ignorar o poder excessivo das empresas de mídia e as suas consequências eventualmente danosas para pessoas, e sistemas legais e econômicos. As democracias avançadas já se rendem a ele.

Há de se ter muito cuidado para não se propagar a incompreensão, uma visão rasa ou o medo irrefletido deste instituto, sob pena de se obstaculizar o avanço da ciência jurídica quanto aos problemas que o mesmo pretende amainar, até porque, com este ou outro nome, com estes ou outros contornos, e independentemente do que se decidirá no STF a seu respeito, o direito ao esquecimento se tornará cada vez mais inexorável diante da forma com que as informações atualmente circulam e influenciam pessoas, eleições e economias, sem respeitar fronteiras e jurisdições.

Limites não são inconstitucionais, mormente quando se trata de atividades que visam o lucro (as empresas de jornalismo e de mídia não escapam disto), e sobretudo quando a proteção de pessoas especialmente frágeis ou fragilizadas o exige, como ocorre com a vedação à divulgação do nome e da imagem de menores (nenhuma reportagem deixa de ser feita por conta desta limitação).

A liberdade total, ao contrário do que a expressão sugere, está mais próxima à autocracia do que à democracia.

Pontuo, para colocar traços de realidade a este texto, que há não muito tempo uma pessoa cujos pais foram assassinados cruelmente pela própria filha e comparsas foi encontrada desconcertada pelas ruas de São Paulo, numa crise psiquiátrica diretamente relacionada à triste “coincidência” de ser irmão da assassina e filho dos assassinados. Ele já disse que deseja sair do país para ser esquecido, pois se sente “ferido” a cada vez que a mídia explora o crime.

Um detalhe importante para se compreender o quanto as tragédias se propagam no tempo e na mídia: o programa televisivo sobre Aída Curi foi veiculado meio século depois do crime. Quanto ao exemplo mencionado no parágrafo acima, o assassinato ocorreu 15 anos antes do momento em que ele foi encontrado desorientado, e o caso foi reportado por uma conhecida revista dois anos depois deste ocorrido, ou seja, 17 anos após o crime.

Ora, seria lícito e constitucional, somente para manter a liberdade absoluta dos órgãos de mídia e imprensa, condená-los perpetuamente a não ter mais direito à saúde? Condená-los a não ter o direito de usar os recursos que suas próprias mentes dispõem para esquecer a tragédia e viver uma vida minimamente normal?

Não está em discussão a evidente imprescindibilidade da atividade jornalística para a democracia, mas além dela também cometer seus abusos, como qualquer atividade humana, não deixará de ser exercida em sua plenitude por conta do direito ao esquecimento, assim como não deixa de noticiar fatos relacionados a menores por não poder divulgar seus nomes, ou por não poder caluniar. Criada a referência, segue-se a vida com toda a liberdade, limitando-a somente quando ultrapassar o limite da legalidade. Basta ser responsável, como deve ser qualquer atividade profissional.

Fatos não serão apagados, como retoricamente dizem alguns. O que juízes poderão fazer, sob a revisão das instâncias superiores, é limitar a sua divulgação ao público, salvo se configurada alguma das exceções referidas mais acima.

Já se disse que somente a mãe do soldado morto saberá se a guerra valeu a pena. Famílias dizimadas por eventos lutuosos têm direito a reagrupar as cinzas de suas vidas, sem ter sempre alguém que as sopre e espalhe, mesmo transcorrido muito tempo, no caso da família Curi mais de meio século.

Direito ao esquecimento não é restrição; é a exceção a confirmar a liberdade; é direito que não olha o retrovisor e visa proteger em especial as gerações futuras, que estarão muito mais expostas à velocidade e perpetuação das informações nas malhas de uma virtualidade com efeitos cada vez mais concretos.

Encerro lembrando que o Papa Francisco, em 2018, emitiu forte alerta ao comparar a mídia e imprensa pouco responsáveis às arenas onde gladiadores e/ou mártires lutavam até a morte.

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P.S. - por certo o direito ao esquecimento foi inventado, assim como toda regra jurídica o é, por se originar da atividade humana. A nossa Constituição Federal é uma belíssima invenção.

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*Roberto Algranti Filho é advogado do escritório Algranti e Mourão Advogados Associados.

 

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