Migalhas de Peso

A arbitragem e a irracionalidade racional (ou vice-versa)

Uma troca de ideias com o meu amigo ET.

19/8/2020

– Vocês terráqueos são loucos. E eu me pergunto se há método em sua loucura.

Quem assim falou foi ***º§'**, meu amigo ET, que vocês já conhecem de outras conversas1. De vez em quando nos visitamos para bater um papo sobre diversos assuntos, especialmente o da arbitragem que é de interesse mútuo, encontrando-se ele em fase de pesquisa comparativa sobre esse tema, que abrange sua utilização pelos povos dos planetas integrantes da Federação das Galáxias, da qual a terra ainda não é membro, não cabendo fazer considerações agora sobre o motivo dessa exclusão.

– Por que você diz isso, caro ***º§'**?

– Professor Verçosa, o que eu percebo em alguns pontos do instituto da arbitragem em uso na terra é a discussão sobre certos temas que não combinam precisamente com o objetivo pretendido pelas partes na escolha desse caminho. As discussões que correm são tão estranhas para mim, que não entendo qual a racionalidade que elas apresentam. Na verdade, trata-se a meu ver de uma irracionalidade tão frequente, que parece ser racional. Ou precisamente o contrário, isto é, seria uma racionalidade irracional. Não sei se me fiz claro.

– Eu não entendi nada. Explique melhor, por favor.

– Vamos lá, disse ***º§'**. Um dos pontos que vejo frequentemente discutidos é o da quebra do sigilo nas arbitragens, este, pelo que eu sei, um dos fundamentos desse meio de solução privada de conflitos, ainda que não seja um elemento essencial e que não conste expressamente da lei do seu país, por exemplo. Mas corresponde naturalmente ao desejo das partes e é recolhido pelos regulamentos das câmaras de arbitragens.

– Eu sei disso, mas ainda não vi a razão de seu descontentamento, prezado ***º§'**.

– Professor Verçosa, digamos que eu seja um empresário e que tenha uma pendência com um fornecedor em relação à qual não tenhamos conseguido resolver por acordo. Então nós nos encaminhamos para uma arbitragem. Um dos nossos interesses nesse caso é no sentido de que ninguém de fora fique sabendo do nosso desentendimento e muito menos a que ele se refere. Não desejamos tanto que terceiros estejam cientes de que as nossas empresas estão envolvidas em um processo arbitral quanto, muito menos, qual o foco da pendência, pois tal conhecimento pode prejudicar nossos legítimos interesses, por exemplo, fornecendo informações internas aos nossos concorrentes. 

– Em compactuo plenamente com a sua posição.

– Observo, claro, que existem casos nos quais estão presentes interesse externos às partes, como é o caso das arbitragens que envolvem entes públicos. Há interesse público igualmente quanto às empresas que buscam recursos no mercado, colocando-se a transparência como parâmetro a ser observado em favor dos acionistas e dos investidores. Mas em qualquer dessas situações não se deve impor uma transparência absoluta, pois sempre poderá estar presente a necessidade de se resguardar alguma informação que não deva se tornar absolutamente generalizada.

– Afinal de contas, ***º§'**, tudo é relativo, disse o grande físico.

– Pois é, Professor Verçosa, mas essa relatividade do princípio da confidencialidade tem sido relativizada demais. E o ataque não é direto, mas travestido de outras razões, o que no fundo dá no mesmo.

– Posso ter alguma ideia, mas diga lá.

– Alguns defensores dessa abertura aí no planeta terra apresentam a necessidade de transparência na arbitragem como fator necessário para a redução dos custos sociais desse procedimento. Foi então que eu embatuquei, como vocês dizem em sua linguagem coloquial.

– Meu caro ***º§'**, essa ilação é fruto de uma confusão dos termos em que se apresenta esse tema. Primeiro, o que é transparência na arbitragem, considerando-se o já referido princípio do sigilo? Eu a vejo primordialmente como um elemento interno ao processo arbitral, ou seja, as partes e os árbitros devem ser transparentes durante o seu percurso, apresentando as primeiras os seus argumentos e provas de maneira aberta; enquanto os segundos não devem se manifestar em declarações sob reserva mental, a não ser que algum ponto seja guardado pelas partes e/ou pelos árbitros para um momento oportuno no decorrer do feito. Isso pode ser considerado um jogo lícito.

– Claro, Professor Verçosa, transparência não se quer dizer que uma parte abra todo o seu jogo para a outra ou para os árbitros, desde que não pratique alguma omissão dolosa. Mas eu penso que o termo transparência pelos seus defensores na arbitragem tem a ver precisamente com uma abertura externa, em favor de terceiros estranhos ao processo arbitral em relação aos quais o conhecimento das decisões arbitrais e de particularidades do processo possa ser usado por eles.

– Poderia ser, caro ***º§'** um tipo de aproveitamento de argumentação e de fundamentos que esses terceiros utilizariam em novas arbitragens. Um tipo de “copia, corta e cola”, como se usa dizer. Mas pela minha experiência em arbitragens eu jamais tive um caso igual ao outro, que pudesse justificar esse uso (na verdade mau uso). Não se trata de situações como acontecem no Judiciário, em que os mesmos casos se repetem nas mesmas circunstâncias milhares de vezes.

– E o pior, Professor Verçosa, é querer fazer uma ligação entre falta de transparência na arbitragem com uma elevação dos custos sociais. E aí se estaria procurando utilizar inadequadamente os princípios de law and economics para demostrar a veracidade dessa afirmação.

– Primeiro, caríssimo ***º§'**, quais seriam esses custos sociais? Brincando eu poderia dizer que seriam os custos suportados por uma sociedade empresária no curso de uma arbitragem.

– Há, há, Professor Verçosa, a piada não é tão boa assim.

– Mas ela está “ao nível de” tal afirmação, eu diria.

– Eu colocaria tais custos em termos de externalidades negativas e de efeitos de segunda ordem, que lhes foram ensinados por Ronald Coase e por outros grandes economistas terráqueos. Se é assim, que efeitos externos maléficos desbordariam pela falta de transparência nas arbitragens, em detrimento de terceiros e cujo conhecimento lhes proporcionaria condições de defesa dos seus interesses?

– Prezado ***º§'**, façamos um exercício de imaginação. A empresa A é condenada a ressarcir a empresa B a título de uma indenização por dano que tenha sido causado a esta. Eventualmente essa condenação poderá afetar o seu patrimônio de forma a lhe trazer sérias dificuldades para o prosseguimento de sua atividade econômica. Segundo penso, esse efeito seria eventualmente danoso para algum fornecedor de A ou para algum banco junto qual ela tomou um empréstimo. Inadimplente A, seus credores poderiam, por sua vez, se verem financeiramente prejudicados por eventual falta de pagamentos aos seus respectivos credores e assim sucessivamente, de maneira a se causar uma inadimplência em cadeia sucessiva. A velha “teoria do dominó”.

– Professor Verçosa, trata-se de uma mera conjectura, que poderia jamais se tornar verdadeira. Observo que esse efeito em cascata não é comum fora da atividade bancária, no qual pode se caracterizar risco sistêmico. Se assim fosse, no Brasil vocês poderiam regressar em responsabilização quanto a todos agentes econômicos em ligação direta ou indireta com A, chegando até seu descobridor Pedro Álvares Cabral. No raciocínio em apreço, ao qual eu faço impugnação, falta uma coisa fundamental, própria do seu ordenamento jurídico, a relação de causa e efeito.

– Eu vou mais além, ***º§'**. Em princípio, portanto, a confidencialidade da arbitragem é a regra normal, digamos assim, que pode ser derrubada por força de lei ou de circunstâncias excepcionais do caso concreto quando, efetivamente, custos sociais possam ser produzidos fora do âmbito de uma condenação. Suponhamos o caso de uma usina de açúcar e álcool condenada em vultosa indenização a qual, impossibilidade de pagar o valor correspondente, pede autofalência. Essa usina hipotética é sediada em um pequeno município distante dos grandes centros e será negativamente afetada pela sua quebra toda a economia da região, a decorrer desde logo pela demissão dos seus empregados porque não haverá como dar seguimento à atividade por ela exercida. Seria essa, portanto, uma situação de custo social do qual resultaria o efeito da quebra do sigilo da arbitragem, segundo a visão que temos considerado aqui na nossa conversa.

– Mestre Verçosa, que diferença faria nesse caso a tal transparência? Mantido ou não o sigilo, os efeitos da sentença arbitral - que seria a origem próxima da falência - se tornariam conhecidos de qualquer maneira por esse fato, que é público. Não existe pelo que eu saiba falência em segredo de justiça.

– Devagar, meu prezado ***º§'**, não dê a ideia para algum desavisado

- E veja que, prosseguiu o meu amigo, dar-se conhecimento da existência de uma arbitragem desde o seu início provocaria uma corrida dos credores dessa usina imaginária, em grande escala, o que tão somente agravaria ainda mais a situação da empresa. Ou seja, um tiro no pé.

– Vamos além, prezado ***º§'**. Outro argumento em favor da transparência está em que a falta dela equivaleria a denegação da justiça. Aqui eu fiquei completamente perdido. Mais uma vez, o que tem uma coisa a ver com a outra? As partes interessadas na solução de um litígio escolhem livremente o caminho da arbitragem e a perdedora sujeita-se de boa vontade ao cumprimento da decisão ou para tanto será executada judicialmente em vista da força executiva que é peculiar àquela. E se a sentença não for cumprida voluntariamente as obrigações dela decorrentes serão exigidas no Judiciário. De que denegação da justiça então se trataria?

– Eu digo o mesmo. Não consigo imaginar.

– Antes de passar para outro ponto, eu me pergunto, disse ***º§'**, de onde surgiu essa questão da necessidade de transparência que implica em quebra da confidencialidade da arbitragem. Lá, do Centro de Arbitragem da Federação das Galáxias jamais conseguimos apurar que tal demanda tenha se originado dos empresários, que são os usuários do instituto. Nuca vimos qualquer abaixo assinado em tal sentido, feito pelas categorias representativas dos empresários. Me perdoe dizer, mas isso parece coisa de dentro do meio arbitral.

Concordo inteiramente, disse eu.

– Mais um ponto, professor Verçosa, fala-se na construção de uma jurisprudência arbitral, que decorreria do conhecimento das decisões correspondentes. Isso, por sua vez, implicaria na construção de precedentes vinculantes para novas decisões arbitrais, proporcionando a previsibilidade das decisões e a consolidação do entendimento a respeito do destino de determinados litígios. Na minha experiência galáctica isso nunca aconteceu.

– Penso da mesma forma, ***º§'**. Isso, além de uma impossibilidade jurídica, implicaria em reconhecer uma linha de ligação historicamente hierárquica a partir de uma decisão que fosse considerada como precedente, implicando em dizer que os tribunais arbitrais posteriormente constituídos perderiam a sua liberdade decisória, passando a aplicar automaticamente o mandamento jurisdicional correspondente, em termos tanto de direito processual arbitral, como do direito material. Mas cabe uma indagação preliminar, o que são precedentes?

– Precedente é aquilo que precede, ou que vem antes, diria o seu famoso Conselheiro Acácio, disse o meu amigo.

– Há, há, caro ***º§'**. Essas palavras poderiam ter saído também da boca de certa ex governanta deste país. Pelo que eu sei é um instituto próprio do direito anglo-norte-americano, cuja introdução no nosso ordenamento jurídico tem a cara de um verdadeiro importibando, pois ele não se ajusta perfeitamente ao nosso sistema, com grande risco incompatibilidade e rejeição. Eu me lembro de um filme estrelado por Michael Douglas, Danny DeVito e Kathleen Turner, chamado “A Guerra dos Roses”. DeVito era um advogado que, em meio a uma terrível batalha, travada pelo casal representado pelos outros dois atores, lá pelas tantas descobriu uma sentença judicial muito antiga, considerada um precedente, que resolveria a questão. Sua aplicação se revelava obrigatória. O tal precedente não foi usado porque as partes terminaram se matando.

– Foi um bom filme, sim. Mas sobre os precedentes o seu Novo CPC cuida deles não muito diretamente nos artigos. 926, § 2º e 927, § 5º, Mas pelo que eu sei o CPC não se aplica obrigatoriamente à arbitragem.

– Dileto ***º§'**, se entrarmos na discussão sobre esse tema é melhor organizarmos um simpósio.

– Pois é, Professor Verçosa, mas eu me pergunto qual seria o fundamento jurídico aplicável a essa orientação, nos termos da lei brasileira, por exemplo. Ela diz que a arbitragem pode ser de direito ou de equidade. Se for de direito, cabe ao árbitro identificar qual seja a lei relativa ao caso concreto e aplicá-la. Isso não teria lugar sequer quanto aos precedentes emitidos pela Judiciário e muito menos no plano da arbitragem. Quem diz o direito é o árbitro em cada arbitragem, modelada a sentença segundo a sua avaliação para uma situação determinada. O limite seria a ilicitude. E já falamos aqui que na arbitragem não existem casos homogêneos, aos quais um precedente pudesse ser aplicado, a não ser para uma probabilidade situada na casa do impossível.

E o meu amigo continuou.

– Desculpe-me pela minha crítica, Professor Verçosa, mas parece que o seu Código Adjetivo, ou Novo CPC, fez do tema uma salada indigesta, misturando muitas coisas. Nesse sentido anota-se o recurso a termos ou expressões como: “enunciado de súmula”, “jurisprudência”, “precedente”, “súmula vinculante”, “jurisprudência”, “jurisprudência dominante”, “jurisprudência pacificada”, “orientação do plenário ou do órgão especial” e “julgamento de casos repetitivos” (arts. 489, V e VII 926, §§ 1º e 2º; e 927). Como sabemos a lei não deve apresentar termos inúteis e, dessa forma, existiriam diferenças entre todos eles ou haveria defeito de técnica legislativa? E assim sendo, o que são precedentes, o que é jurisprudência e, se os primeiros existem no direito brasileiro, como diferenciar tudo isso?

– Eu como um modesto comercialista, cultor do direito material, confesso que fico um pouco perdido nessa situação e parece que não estou sozinho, porque há correntes diversas. Algumas defendem os precedentes entre nós; outras modus in rebus, isto é, depende; e outras ainda que não os admitem. Na arbitragem em fico com esta última porque não vejo, ainda mais quando se pensa em precedentes arbitrais, o que levaria ao resultado de que – já que não existe hierarquia entre os tribunais arbitrais – se criaria um vínculo de obediência obrigatória dos termos de alguma decisão no plano meramente temporal, isto é, manda mais quem mandou primeiro.

– Mas se fosse assim, redarguiu ***º§'**, isso seria um efeito inteiramente contrário ao cerne dos precedentes na common law, uma vez ali o juiz posterior deve verificar se a matéria está sujeita à sua decisão presente, à luz de casos julgados no passado, que apresente uma razão jurídica lógica capaz de alçar-se à categoria de um precedente obrigatório (bidindg precedentes) apto a adequar-se à decisão de casos semelhantes. Mesmo assim, o juiz pode se utilizar de mecanismos que o afastam, tal como o “distinguishing” e o “overruling”. Quer dizer, considera-se sem fundamentação a sentença judicial que não demostrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.  

– Prezado ***º§'**, trata-se de instrumentos de controle e atualização dos precedentes, mas essa discussão do ponto de vista prático é inteiramente inútil. Tomemos os precedentes (como tais) obrigatórios nas arbitragens, seja lá o que for o seu significado. Se um tribunal arbitral não o observa, por esse motivo a sentença poderia ser judicialmente anulada? Nunca e isto porque pelo que se vê em nossa Lei de Arbitragem, considerando ser a decisão insuscetível de revisão, essa hipótese de nulidade não está prevista no seu artigo 32. Punto e basta, teríamos que reconhecer.

– De pleno acordo disse ***º§'**, mas agora gostaria de abordar um último aspecto relativo à quebra da confidencialidade, consistente na alegação de que ela seria responsável pelo benefício concedido aos agentes detentores de maior poder econômico. Mais uma vez, qual a relação de causa e efeito?

– Para mim não existe, disse eu. Veja que, no fundo, estaria se dando um puxão nas orelhas dos árbitros que por alguma razão inexplicável, se submeteriam ao interesse da parte economicamente mais forte, em detrimento da outra. Para mim tal ponto de vista equivale a atacar a honestidade dos árbitros, que, em última palavra, teriam se vendido à parte mais forte. E isso representaria, na verdade, a confissão da existência de um vício presente em decisões arbitrais, protegido pela falta de transparência. A afirmação se revela, bastante deselegante no tocante a quem atua como árbitro.

– Professor Verçosa, nossa conversa está sendo muito gratificante para mim, mas tenho um compromisso a atender ali em Andrômeda. O que eu acho é que se as coisas evoluírem por esse caminho, adeus arbitragem. Até breve.

– Até breve, ***º§'**. E o meu amigo, que não era dado a despedidas longas e efusivas. Até então presente diante de mim em um corpo holográfico materializado em 3D, desvaneceu-se em um instante como fumaça.

E, afinal das contas, pensei comigo mesmo, estamos diante de uma irracionalidade racional ou de uma racionalidade irracional?

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1 “Entrevista com um ET sobre arbitragem”, Migalhas de 13/2/19.

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Agradeço aos colegas Mayara Isfer e Antonio Carlos Fernandes Deccache os subsídios que retirei na preparação deste artigo de nossas apresentações no webnar sobre arbitragem, ocorrido no dia 13 deste mês, sob os auspícios de DVAA, GIDE e Universidade Positivo.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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