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E o empregado, veste Prada? Dos cuidados necessários à aquisição pelo empregado de bens fabricados pelo empregador

Aquisição de bens fabricados pelo empregador, cuidados, inocorrência de violação da lei.

19/8/2020

A comédia dramática O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada – 20th Century Fox) conta a trama de Miranda Priestly (Meryl Streep) a poderosa chefe da revista de moda Runway e sua assistente Andrea (Anne Hathaway). A narrativa, muito focada na relação de assédio havida entre as duas principais personagens, deixa passar despercebida outra cena muito interessante.

Depois de meia hora de filme, Andrea, acompanhada por Nigel (Stanley Tucci), mergulha literalmente no universo da moda vestindo-se com as roupas que figuravam nas páginas da revista em que trabalhava, tudo ao fundo musical de Vogue interpretada por Madonna (álbum I'm Breathless, Warner Bros. 1990). Nesse momento se estabelece a sintonia entre a personagem Andrea com o universo da revista Runway.

Com as devidas proporções, uma vez que as roupas não eram produzidas na revista, não há dúvida de que empresas que abrem aos empregados a possibilidade de acesso e aquisição de bens por eles produzidos propicia a criação de uma relação de sinergia entre ambos. Tal prática é indiscutivelmente positiva; no entanto, alguns cuidados devem ser adotados para que não se incorra em ilegalidades, ou, para que isso não prejudique o ânimo existente na relação de emprego.  

Primeiramente, cabe analisar a possibilidade da aquisição de bens da empresa mediante desconto do salário do empregado.

O art. 462 da CLT dispõe que ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.

Com efeito, da leitura do dispositivo de lei se verifica que o desconto somente é possível quando previsto em lei, norma coletiva, ou quando autorizado pelo empregado. Conclui-se: a regra é o não-desconto, a exceção é o desconto, e por isso, quando não previsto em lei ou norma coletiva, é condição necessária de validade ao desconto, a autorização expressa do empregado. Ausente tal autorização, o desconto é nulo e o valor deve ser devolvido ao empregado.

Assim, em caso de aquisição de bens com desconto do salário a primeira condição é a autorização expressa do empregado.

Além da autorização expressa do desconto, também é importante que os empregados não sejam coagidos ou induzidos de nenhuma forma a comprarem produtos ou serviços da empresa. É o que dispõe o art. 462, §2º da CLT.

Ainda, a teor do art. 462, §3º da CLT, é importante que os preços praticados sejam razoáveis, sem intuito de lucro e em benefício dos empregados.

A observância de tais condições é necessária para que se preserve o princípio da liberdade da disposição do salário pelo empregado, vale dizer,  isso significa, que o empregado possa utilizar seu salário como bem lhe aprouver, comprando, ou não, produtos ou serviços da empresa para a qual trabalha.   

Como tal prática pode ser discutida em uma ação trabalhista ou ser objeto de fiscalização pela Autoridade Pública, é importante que as empresas que adotem essa conduta criem uma política clara, transparente e acessível a todos os empregados, que além de observar os pontos acima expostos ainda contemple outras condições e requisitos como: tempo na empresa por parte do empregado para acesso a tal benefício; possibilidade de pagamento de forma parcelada e respectiva correção monetária; limites de desconto no salário de acordo com as respectivas faixas salariais e considerando demais descontos, como empréstimo consignado; política de preços; pagamento em caso de rescisão do contrato de trabalho de forma motivada ou imotivada no curso do parcelamento; possibilidade de troca do produto em caso de vício ou defeito (sempre se observando os direitos do empregado, agora consumidor), etc.

Assim, se por um lado é importante para a sinergia da relação de emprego que o empregado vista Prada, por outro lado, é fundamental a observância dos cuidados acima citados, a fim de que tal prática fortaleça a relação entre ambos e, diferentemente do filme citado no começo do artigo, essa compra não se torne uma tentação do diabo, em detrimento do bom relacionamento entre as partes.

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*Antonio Giurni Camargo é advogado trabalhista militante, sócio do escritório Camargo e Camargo Advogados, pós-graduado em Direito do Trabalho pela Unitoledo e especialista em Direito Empresarial e Compliance pela FGV.

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