Muito tem se falado e noticiado sobre as queixas/reclamações que estão sendo enviadas ao Tribunal Penal Internacional contra o presidente Jair Bolsonaro, por supostos crimes contra a humanidade em razão de suas ações ou omissões durante a pandemia do coronavírus.
Nossa pretensão não é analisar o mérito dessas queixas, mas sim trazer uma breve explanação sobre um novo conceito de soberania, mais elástico e, também, como funciona esse importante órgão jurídico internacional sediado em Haia.
Deixando de lado as questões políticas em torno do tema, o debate que está sendo travado é de suma importância, pois nos traz novamente em evidência esse órgão que atua como última racio na apuração de crimes contra a humanidade, inclusive podendo ser acionado em tempos de covid-19.
É sabido que desde o início dos tempos o controle do poder estava baseado no controle da informação. Nos tempos mais recentes pode-se citar como importante marco no controle da informação como canal para atingir e permanecer no poder o domínio da radiodifusão na Alemanha do início do nazismo, quando deu origem à Deutsche Welle, vale dizer, “a onda alemã”, que cuidava das emissões de cunho “educativo” naquele País.
Com o surgimento do nazismo a utilização do meio de comunicação/informação, na época o rádio, como instrumento político para atingir e permanecer no poder chegou ao ápice.
Para tanto, iniciou-se um controle sistemático das estações de radiodifusão passando a controlar totalmente os meios de comunicação/informação e chegando-se mesmo a criar o volksempfanger, um receptor de rádio do povo, cuja capacidade possibilitou receber informações de outras localidades fora da Alemanha.
Veja-se que o controle da informação no governo nazista possibilitou o controle das massas que recebia, diariamente, propaganda nazista e cultura alemã.
Dando-se um salto no tempo, com o advento da televisão, os detentores do poder ficaram fascinados na imagem dentro das casas de cada “eleitor” e na possibilidade, ainda maior, de controle das massas e permanência no poder.
Neste sentido Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2000, p. 164) adverte que este controle, por parte do Estado, principalmente em se tratando do espectro eletromagnético, teve grande importância para a manutenção do poder e citando Jean-Noel Jeanneney na obra “Uma história da comunicação”, afirma:
[...] no centro de tudo estava a forte convicção do ‘poder total da tela’. Os políticos passaram a sonhar em decorrência de uma ‘certeza’ que julgavam ter a partir do poder total da televisão. Dominá-la significava apoderar-se do poder diante de uma construção psicológica que o político profissional passaria a ter e a manter com a televisão: ‘não é apenas seu discurso que é transmitido, é o seu narcisismo que está implicado, a sua imagem aos olhos dos outros, numa atividade feita de permanente sedução. [...]
A televisão, então, passou a ter importante papel como elemento de reflexão do novo conceito de soberania, na medida em que divulga e transmite imagens de guerra, genocídios, atrocidades, terrorismo, servindo como fator decisivo para o fortalecimento ou enfraquecimento dos Estados.
Com o surgimento da rede mundial de computadores, a democratização da informação começa um novo ciclo e ascensão. O Estado, então, perde, em termos, o controle desse meio sendo, portanto, mais fiscalizado e cobrado não somente pela sua população, mas também pelos povos de outros países e por outros Estados. É o fim da soberania sobre a informação, hoje mais do que nunca não é o governo quem diz o que o povo deve fazer, mas, ao contrário é o povo quem está dizendo o que os seus governantes devem fazer.
Uma das consequências dessa escalada democrática da informação é que o Estado não pode mais tomar decisões que lhe aprouver, olhando somente para seu “próprio umbigo”, pois hoje o Estado, ainda que seja soberano em alguns aspectos, deve, diante da tomada de determinadas decisões, satisfação não somente à sua população, mas também aos demais Estados soberanos e aos diversos órgãos supranacionais.
No campo dos direitos humanos isso é cada vez mais sentido, pois o conceito de soberania está pautado por uma nova visão da proteção e garantias dos direitos humanos como sendo universais e sem fronteiras. Essa concepção também foi ratificada pela Convenção de Viena que no seu parágrafo quinto afirma que todos os direitos humanos são universais devendo a comunidade internacional tratar desses direitos de forma globalizada.
Portanto, até este momento tem-se como novos elementos constitutivos da soberania, a democratização da informação sem fronteiras e uma nova visão de proteção e garantia dos direitos humanos como sendo universais e, também, ausente de fronteiras.
No dizer de Flávia Piovesan, a ideia de internacionalização dos direitos humanos atrelada à “globalização, por implicar nesse desmanche de fronteiras, nessa pulverização de fronteiras, impõe uma revisão sobre o conceito de soberania absoluta”. E, continua, no mesmo artigo, afirmando que no processo de globalização os direitos humanos deixaram de ser tema de jurisdição doméstica, pois “as fronteiras passaram a ser questionadas”.
Tem-se, assim, um resgate ao jusnaturalismo por meio de instrumentos do positivismo jurídico em virtude de uma nova concepção de direitos humanos, provocando uma ruptura do conceito clássico de soberania absoluta dos Estados.
O indivíduo, então, passa a ser sujeito de direito internacional e não somente os Estados de modo que a relativização do conceito de soberania admite a intervenção em favor dos direitos humanos. A globalização fomentou a democratização das informações e uma nova visão de proteção e garantias dos direitos humanos colocando o indivíduo como sujeito de direito internacional, provocando, em razão disso, “a desconcentração, a descentralização e a fragmentação do poder”. (FARIA, 1999, p. 17).
Com efeito, atualmente os Estados são mais interdependentes de modo que a soberania não é mais absoluta, ilimitada e indivisível, sofrendo, destarte, uma elasticidade no seu conceito.
Disso decorre o surgimento de outro novo elemento constitutivo da soberania, que no dizer de Paulo Napoleão Nogueira da Silva (2000, p. 23), seria a chamada “cessão parcial interna” aos organismos supranacionais como uma expressão da vontade soberana dos Estados.
Veja-se que por essas veredas, o fato de existir uma comunidade internacional e obrigações vinculantes para os Estados-membros não se torna incompatível com a soberania de cada Estado, eis que os compromissos internacionais assumidos, em regra, derivam da própria vontade soberana daquele Estado.
Essa ideia de que o Estado ao se submeter a organismos internacionais, mediante assinatura de tratados, nada mais faz do que exercer sua soberania era compartilhada por Hans Kelsen (1969, passim) quando afirmava que os tratados não prejudicavam a soberania, pois tal limitação estava baseada na própria vontade do Estado em sofrer estes limites, de modo que sua soberania estava preservada.
Todavia, hodiernamente essa concepção não é mais usual, pois a ideia de ausência de fronteiras e de interdependência dos Estados vem demonstrando que a “vontade” de cada Estado não tem mais aquela força vinculante de outrora. Sabe-se que em determinados aspectos e diante da nova ordem internacional, alguns princípios estampados em norma supranacionais tem o poder de vincular os Estados que eventualmente não façam parte de determinada organização internacional.
Surge, com isso, um “pluralismo normativo” no dizer de José Eduardo Faria (1999, passim), com a aparição de normas jurídicas que interagem e, por vezes, se situam acima do ordenamento jurídico interno dos Estados, ou possuem o mesmo nível hierárquico da constituição do Estado. Veja-se o caso do artigo 5º, § 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que determina que “os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. (BRASIL. Constituição, 1988).
A emenda constitucional 45, de 08 de dezembro de 2004 acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º, para o fim de admitir como norma constitucional os tratados e convenções internacionais sobre de direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional. (BRASIL. Constituição, 1988).
A ideia de que as Constituições dos Estados devem incorporar decisões tomadas em foros internacionais esta cada vez mais se disseminando, até porque, na medida em que os Estados participam de tais foros, eles deliberam no âmbito interno e externo.
Não obstante, o que se quer ressaltar é que por força da ordem jurídica internacional e da comunidade internacional o Estado contemporâneo deve rever seu conceito de soberania, adaptando, na medida do possível e de acordo com os preceitos democráticos, as normas internas e a sua própria constituição em busca do bem comum internacional.
No mesmo sentido tem-se Norberto Bobbio (1994, p. 1.187), para quem a “nova soberania” está sendo moldada pela comunidade internacional:
[...] o golpe maior veio das chamadas comunidades supranacionais, cujo objetivo é limitar fortemente a soberania interna e externa dos Estados-membros; as autoridades ‘supranacionais’ têm a possibilidade de conseguir que adequadas Cortes de Justiça definam e confirme a maneira pela qual o direito ‘supranacional’ deve ser aplicado pelos Estados em casos concretos [...].
E essa interferência supranacional na soberania dita interna dos Estados, se origina exatamente da democratização da informação sem fronteiras, o sofrimento de seres humanos diante de atrocidades cometidas pelos seus próprios governos, pode ser visto em questão de minutos no mundo todo. As fronteiras, diante da velocidade da informação, tornaram-se cada vez mais artificiais, a ingerência em assuntos, que antes eram vistos como “internos”, hoje é mais efetiva e visa precipuamente assegurar a proteção e garantias dos direitos humanos que são universais.
O filósofo Roberto Romano (2004, p. A3) em excelente artigo publicado em jornal intitulado “Covardias”, deixa bem claro que “os pensadores resumem toda a questão ao seguinte: o tirano parece terrível e suas garras surgem, ameaçadoras, quando ele deseja impor um desejo ao coletivo.”
Pode-se concluir que, de fato, houve uma nova limitação no conceito de soberania, seja no aspecto interno, seja no externo, em razão da democratização dos meios de comunicação e da informação em tempo real, bem como da nova feição universal dos direitos e garantias da pessoa humana. Um resgate, pode-se dizer, do jusnaturalismo, como forma de tentar proteger e impedir o indevido e equivocado uso da força “tirânica” de determinados Estados sobre seus governados.
E é nesse cenário que surge o Tribunal Penal Internacional. Mas esse conceito de tribunal supranacional não é novo.
A primeira notícia que se tem de um tribunal criminal internacional remonta os longes de 1474, sendo que a primeira pessoa processada por crime de guerra foi Sir Peter von Hagenbach, por atos de violência sexual cometidos por seus comandados contra civis.
Posteriormente, em 1872, o suíço G. Moynier, esboçou a primeira ideia de um tribunal internacional. Deve-se ter em linha de conta que o final do século XIX foi um período com inúmeras revoluções no plano social e econômico de modo que a comunidade internacional começou a se mobilizar para que esses conflitos fossem solucionados no plano internacional.
Saltemos, então, para os idos de 1919. Com o final da Primeira Guerra Mundial e a derrota da Alemanha, entrou em cena o Tratado de Versailles em 10 de janeiro de 1920, o qual previa punição para crimes de guerra.
Em 1937, às portas da Segunda Guerra Mundial, a Liga das Nações elaborou uma convenção sobre terrorismo, denominada “Convenção para a Criação de uma Corte Internacional Penal” a qual somente a Índia houve por bem ratificá-la, de modo que sequer vigorou.
Somente ao final da Segunda Guerra Mundial tem-se um verdadeiro despertar para a criação de uma jurisdição internacional. Foi preciso, então, anos de crimes e atrocidades para que o homem, enfim, despertasse e percebesse a necessidade de criar mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos quando estes, muitas vezes, têm o próprio Estado como seu maior algoz.
Dessa forma uma luz no fim do túnel foi avistada com a assinatura do Acordo para Persecução e Punição dos Principais Criminosos da Guerra do Eixo Europeu, a Carta de Londres e a criação do famoso Tribunal Militar Internacional, mais conhecido como “Tribunal de Nuremberg”, juntamente com o acordo para a criação e instalação do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente e o seu Tribunal de Tóquio.
Tem-se, assim, importante marco na jurisdição internacional relacionado com os direitos humanos.
Interessante notar que nessa época, em 1945, uma Lei do Conselho do Controle Aliado, estabeleceu de forma expressa a tipificação de crimes contra a humanidade, contra a paz e de guerra, como verdadeiras atrocidades que merecem punição seja qual for a nacionalidade ou capacidade do agente, conforme Rodrigo Fernandes More (2002, passim).
Todavia, eram de tribunais “ad hoc”, não permanentes. Tal concepção somente tomou forma palpável em 1948, com a Convenção para Repressão e Prevenção do Crime de Genocídio por meio da Organização das Nações Unidas – ONU, mas também não vingou.
Outra tentativa, que também não deu certo, foi em 1980 quando a Assembleia Geral das Nações Unidas propôs um estatuto para criação de uma jurisdição penal internacional para punição de crimes de “apartheid”.
Posteriormente, entre 1989 e 1990, a ONU, por meio de sua Assembleia Geral retomou os estudos para a criação de um tribunal criminal internacional relacionado a crimes de tráfico de entorpecentes, o qual também não entrou em vigor.
No início da década de 90, tem-se a explosão de vários conflitos étnicos armados na Europa Oriental, com a Iugoslávia se fragmentando, Croácia e Eslovênia tornando-se independentes, bem como a Bósnia-Herzegovina.
Indigitados conflitos desencadearam a intervenção oportuna, ainda que tardia, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com embargo militar na Iugoslávia e posterior intervenção e criação do Tribunal “ad hoc” para a Antiga Iugoslávia, sendo o primeiro tribunal internacional não-militar criado com a finalidade de julgar crimes cometidos contra a humanidade.
Posteriormente, em 1994, mais um tribunal penal internacional foi estabelecido para fins de apurar e julgar crimes de genocídio em Ruanda, por meio da Resolução 955 de 8 de novembro de 1994.
Com efeito, isso tudo somado, vale dizer, os acontecimentos que decorreram ao final da 2ª Guerra Mundial, as várias violações aos direitos humanos que se seguiram, sendo perpetradas pelos Estados contra seus próprios cidadãos, a criação de vários tribunais especiais para apuração destes crimes cometidos contra a humanidade, germinou a criação de uma corte penal permanente, com a finalidade de processar e julgar crimes contra a humanidade, principalmente quando o Estado falha, e por vezes, é o maior violador.
O Tribunal Penal Internacional foi então criado na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas que se realizou entre os dias 15 de junho a 17 de julho de 1998 na cidade de Roma, sendo que a sua criação se deu no último dia da conferência.
Aprovou-se, então, aquilo que ficou conhecido como o Estatuo de Roma do Tribunal Penal Internacional, cuja natureza jurídica é de tratado internacional, entrando em vigor após o consentimento expresso de 60 Estados que estão vinculados ao mesmo. Entrando efetivamente em vigor em 1º de julho de 2002.
O grande sonho de muitos então foi realizado, já no preâmbulo do Estatuto de Roma tem-se o espírito da criação do Tribunal, quando afirma que os Estados Partes estão conscientes de que os povos são unidos por laços comuns, suas culturas formam um patrimônio comum, cujo mosaico corre o sério risco de ser quebrado. Tem-se, também, a menção às milhares de crianças, homens e mulheres mortos no decorrer do século XX em razão das mais diversas atrocidades inimagináveis cometidas pelo próprio homem. Tais crimes são de tamanha gravidade que atingem toda a comunidade internacional, não podendo ficar impunes, de modo que os Estados Partes se declaram determinados a pôr fim nessa impunidade e também contribuir para prevenir novos crimes com a criação do Tribunal Penal Internacional, de forma a complementar e jurisdição interna dos Estados Partes, visando, com isso, garantir a efetividade da jurisdição internacional.
O Estatuto de Roma possui 128 artigos, divido em 13 capítulos com os seguintes títulos: Criação do Tribunal (artigo 1º ao 4º); Competência, admissibilidade e direito aplicável (artigo 5º ao 21); Princípios gerais de direito penal (artigo 22 ao 33); Composição e administração do Tribunal (artigo 34 ao 52); Inquérito e procedimento criminal (artigo 53 ao 61); O julgamento (artigo 62 ao 76); As penas (artigo 77 ao 80); Recurso e Revisão (artigo 81 ao 85); Cooperação internacional e auxílio judiciário (artigo 86 ao 102); Execução da pena (artigo 103 ao 111); Assembleia dos Estados Partes (artigo 112); Financiamento (artigo 113 ao 118) e Cláusulas Finais (artigo 119 ao 128).
O TPI, com sede em Haia na Holanda (“o Estado anfitrião”) e com personalidade legal internacional, tem como principal característica o seu caráter de órgão independente das Nações Unidas e de permanência, ou seja, põe fim a “arbitrariedade” da criação de tribunais “ad-hoc” que somente se originam após consumados os conflitos internacionais e são de jurisdição restrita, de modo que garante o princípio do juiz natural, ou seja, aquele juízo previamente estabelecido em lei e proíbe a criação de juízos de exceção.
No TPI serão julgados indivíduos (maiores de 18 anos) acusados de cometer violações aos direitos humanos, tais como crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. Veja-se que o traço diferencial nesta corte é que além de ser permanente, sua jurisdição estará restrita a indivíduos e não aos Estados.
A sua jurisdição será exercida de forma complementar à jurisdição penal interna dos Estados Parte, na forma do princípio da subsidiariedade. Neste sentido, o TPI atuará para fins de persecução e condenação dos mais graves crimes contra a humanidade tão somente quando a justiça interna dos Estados Parte falhar ou ser omissa.
O TPI é composto por 18 juízes que são indicados pelos Estados Parte, os quais deverão ter reconhecida competência em direito penal, processual penal e direito internacional humanitário. Seus mandatos serão de nove anos sendo vedada a eleição de mais de um juiz de cada nacionalidade e reeleição. Haverá também o promotor-chefe que também será eleito por voto secreto da maioria absoluta dos votos da Assembleia de Estados Partes, a qual terá um representante de cada Estado Parte com direito a um voto.
Importante notar que o Conselho de Segurança da ONU, os Estados Partes e o promotor chefe, têm legitimidade para noticiar crimes cometidos, sendo que qualquer pessoa poderá ser levada a julgamento perante o TPI, inclusive Chefes de Estado. É o procurador quem inicia as investigações devendo nortear o trabalho das autoridades policiais nos termos do artigo 53 do Estatuto, após, apresentará suas exposição dos fatos junto à Câmara de pré-julgamento a qual será incumbida de verificar o procedimento e uma vez comprovada as acusações o réu será levado a juízo.
O Estatuto prevê ainda as seguintes penas aplicáveis (artigo 77): pena de prisão por no máximo 30 anos, pena de prisão perpétua, multa, perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé. Há previsão, também, de um fundo em favor das vítimas dos crimes de competência do Tribunal, tal fundo poderá ser custeado com o valor arredado pelas multas aplicadas.
O crime de genocídio está previsto no artigo 6º do Estatuto, é caracterizado principalmente pela intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso por meio de homicídio dos seus membros; produção de sérios danos corporais ou mentais nos seus membros; sujeição dolosa a condições de vida que venha a provocar destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas ao controle de natalidade nestes grupos e transferência forçada de crianças de um grupo para outro.
No ordenamento jurídico interno, o crime de genocídio está previsto na lei 2.889/56, de modo que na hipótese de algum brasileiro cometê-lo, considerando o caráter principal da jurisdição interna, aplicar-se-á a lei penal brasileira.
Não obstante, poderá ser admitida a atuação do TPI consoante os critérios do artigo 17 do Estatuto, de modo que a lei material aplicável será, então, a alienígena. Fato é que tanto a aplicação da lei penal interna como a competência da Justiça pátria, orienta-se pelo princípio da Justiça universal, que tem como objetivo o compromisso perante a comunidade internacional pelo Estado brasileiro em punir as referidas infrações penais.
No artigo 7º do Estatuto de Roma tem-se a previsão dos crimes contra a humanidade, que são cometidos numa situação de ataque, generalizado ou sistemático, contra população civil ou militar com a intenção de assassínio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada, bem como aprisionamento ou privação do direito de liberdade com violação às regras basilares do direito internacional; tortura, escravização sexual, rapto, esterilização forçada, prostituição forçada entre outras violências sexuais. Está também caracterizada como crime contra a humanidade a perseguição política, racial, étnica, cultural ou religiosa contra determinado grupo ou coletividade; desaparecimento forçado de pessoas; crime de segregação racial – apartheid e outros atos desumanos com caráter semelhante que importe em causar grande sofrimento além de danos corporais e mentais.
A seguir, no artigo 8º do Estatuto, tem-se a previsão relativa aos crimes de guerra, sendo o artigo mais extenso do Estatuto. A base desta tipificação está estampada na Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949, havendo distinção entre os conflitos armados com expressão nacional e internacional. São atos praticados contra pessoas e bens que estão sob a proteção da Convenção, por exemplo, tratamento desumano com experiências biológicas, destruição de bens sem justificativa em função da guerra, transferência e deportação ilegais, tomada de reféns, entre outros que venham a causar grande sofrimento e ofensas graves à integridade física ou à saúde das pessoas.
Por fim, tem-se a competência para apuração e julgamento de um novo tipo denominado crime de agressão.
Relativamente às vítimas, o Estatuto não prevê a possibilidade de acionamento da Corte de forma direta pelo ofendido, a tutela do seu interesse se dará por meio de intervenção de entes distintos da pessoa da vítima, vale dizer, por iniciativa do Estado Parte, do promotor chefe ou do Conselho de Segurança da ONU, assim o indivíduo, na posição de vítima dos crimes de competência do TPI, não é considerado sujeito de direito internacional.
Relativamente às penas, o condenado poderá sofrer a aplicação da pena de prisão por período de anos que não poderá ser superior a 30 anos, ou pena de prisão perpétua, quando justificável diante da gravidade e do elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado que a justifique.
A execução de quaisquer destas penas será cumprida num dos Estados Partes que tenham declarado interesse em aceitar os condenados, consoante artigo 103 e seguintes do Estatuto, devendo o Estado Parte indicado informar à Corte qualquer circunstância do seu direito interno que possa afetar materialmente as condições ou a duração da detenção.
Nesse enfoque a questão da submissão a um Tribunal Penal Internacional de caráter permanente se mostra necessária e ao mesmo tempo controvertida, diante do clássico conceito de soberania dos Estados. A mutação de indigitado conceito na ordem jurídica internacional reflete no direito interno, na medida em que nacionais podem ser submetidos a julgamento perante uma Corte Internacional Penal Permanente quando o direito interno dos Estados falhar.
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BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Trad. Carmem Varrialle et al. 6ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1994.
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*Caio Cesar Braga Ruotolo é advogado membro efetivo do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomercio. Pós-graduado com especialização em Direito Empresarial e em Direito Constitucional.