Migalhas de Peso

O paraíso (da eficiência) fiscal

As lições da Estônia para a Reforma Tributária no Brasil.

17/8/2020

Apesar de a palavra “paraíso” ter origem etimológica na Pérsia, o termo em questão foi difundido pela maior parte das religiões para designar lugares idílicos e repletos de felicidade, a começar pelo “Jardim do Éden”.

Por outro lado, quando se pensa em paraíso fiscal, a primeira imagem que vem à mente é a de ilhas no Caribe, com praias paradisíacas e sistemas tributários igualmente convidativos para empresas offshore.

Definitivamente, esse não é o caso dos países membros da OCDE, que se comprometem a observar elevados padrões de transparência e conformidade fiscais.

No entanto, ter uma carga tributária em padrões “normais” não impede países de possuírem sistemas tributários mais eficientes, capazes de atrair investimentos e facilitar a realização de negócios.

Esse é o caso da Estônia, que, pelo sexto ano consecutivo, foi eleito o “melhor sistema tributário” entre os países da OCDE, pela Tax Foundation1.

Mas, nem sempre foi assim. A Estônia é uma ex-república soviética que só se tornou independente da URSS em 1991, e por anos conviveu com problemas de centralização exacerbada de poder, burocracia extrema e baixa expectativa de vida.

Em meados da década de 1990, a Estônia passou a investir de maneira profunda em inovações tecnológicas e adotou fortes políticas liberais e de responsabilidade fiscal, com cortes de gastos públicos, privatizações e desburocratização.

Isso fez com que a qualidade de vida no país tivesse um salto gigantesco. A Estônia saiu do 112º lugar do mundo no ranking do IDH, no ano de 1995, para o 30º, em 2019. Está próxima a países como Itália (29º) e França (26º) e à frente da Grécia (32º), de Portugal (40º) e do Brasil (79º).

Certamente, uma característica fundamental e que impulsionou o desenvolvimento da Estônia foi a simplicidade do seu sistema tributário.

Já é consenso que um dos principais entraves ao desenvolvimento econômico brasileiro é a extrema complexidade do nosso sistema tributário. A Estônia também sofria de males semelhantes e resolveu adotar medidas ousadas: buscou elaborar uma legislação tributária simples e eficiente visando a atrair investimentos.

A facilidade para se pagar impostos no país impressiona: a Estônia é o país da OCDE em que menos tempo é gasto para o cumprimento de obrigações tributárias: 50 horas no ano, bem menos do que países como Suécia (122 h) e Alemanha (218 h). E mais de trinta vezes menos do que no Brasil, no qual são gastas, em média, 1.501 h por ano2, o último lugar nesse ranking.

A seguir, apontaremos os cinco principais pilares do sistema de tributação da Estônia e os motivos pelos quais ele é considerado um dos mais eficientes do mundo.

Antes, porém, cabe uma observação que revela bastante sobre as facilidades do sistema estoniano: todas as informações fiscais que coletamos para este artigo estão disponíveis na internet, no site do próprio fisco estoniano. Além disso, as dúvidas que tivemos na análise da legislação foram esclarecidas pelo próprio fisco, em prazo rápido, por e-mail. A respeito do sistema em si, em primeiro lugar, com relação à tributação da renda, a Estônia possui um sistema tributário integrado entre pessoas físicas e jurídicas, que visa a evitar a dupla tributação econômica da renda.

No que tange às pessoas físicas, existe uma isenção total para aqueles que recebem até € 6.000 por ano. Para os que ganham acima de € 6.000 e até € 14.400, há uma isenção básica de € 6.000, e o imposto incidirá sobre o montante que supera o referido valor. Por sua vez, para quem aufere mais de € 14.400 e menos de € 25.200 por ano, o montante isento é calculado com base em uma fórmula prevista na legislação3. Por fim, para aqueles que recebem mais de € 25.200 por ano, não há isenção.

A Estônia adota um flat tax para fins de imposto de renda, com uma alíquota de 20%, salvo exceções pontuais. Mas, não se trata de algo semelhante ao que o Governo brasileiro tem sinalizado para o País, com uma alíquota única sem deduções. Há previsão de deduções da base de cálculo, como os valores despendidos com manutenção de filhos menores, educação, contribuições previdenciárias, entre outras, de modo a se tributar não propriamente a “receita bruta” do contribuinte, mas sua renda.4

Além disso, como as autoridades fiscais já possuem, em tese, todas as informações necessárias, a declaração do imposto de renda já vem preenchida. O contribuinte deve apenas analisar os dados lá contidos, realizar eventuais ajustes na declaração, como, por exemplo, quanto às deduções cabíveis, e concluir o processo.

Diante dessa facilidade, os estonianos se orgulham de que todo esse processo costuma levar apenas de três a cinco minutos5. Enquanto isso, aqui no Brasil, quem já preencheu uma declaração de imposto de renda sabe muito bem como funciona. A depender da quantidade de fontes de renda, pode-se levar alguns bons dias para se preencher a declaração. E, se houver algum equívoco, há previsão de multas pesadas.

De volta à Estônia, com relação ao imposto de renda das pessoas jurídicas, a sistemática é igualmente simples. Diferentemente do que alguns têm divulgado sem maiores ressalvas, a Estônia, ao contrário do Brasil, tributa, sim, dividendos. O que a Estônia não tributa é o lucro, no nível da empresa, se ele não for distribuído.

Na distribuição de dividendos para pessoas físicas, a alíquota do imposto de renda da pessoa jurídica é de 20%, e o indivíduo não precisará pagar depois IRPF referente a esse valor, uma vez que a renda já terá sido tributada no âmbito da sociedade. Para as empresas que distribuem lucro regularmente, há também a opção de uma alíquota mais baixa, de 14%, somada a uma tributação, em regra, de 7%, a ser recolhida do destinatário do dividendo.6

Como se vê, mais importante do que a discussão sobre a tributação ou não de dividendos é a existência de regras claras e estáveis para que os contribuintes saibam com segurança quando e o quanto irão pagar. Uma das poucas regras claras e estáveis que temos no Brasil diz respeito à tributação concentrada no lucro, com isenção dos dividendos. Tornar essa tributação mais complexa não parece ser uma grande vantagem para quem busca a simplificação do sistema.

Em segundo lugar, quanto à tributação do consumo, assim como na maior parte do mundo, o imposto mais relevante é o IVA, que é cobrado no fornecimento de bens e serviços.

São apenas três as alíquotas existentes: (i) 20%, a padrão; (ii) 9%, para livros e literatura educacional, determinados medicamentos, publicações periódicas e serviços de hotelaria e (iii) 0%, na exportação de determinados produtos e serviços, bem como para alguns “serviços” de assistência médica, seguro, entre outros.

Para ser contribuinte do IVA, a empresa precisa se registrar no respectivo sistema lá existente. Todavia, a exigência desse registro e o nascimento da obrigação tributária só ocorrem, como regra geral, se a atividade tributável da sociedade exceder € 40.000 a partir do início de um ano civil7.

Há também os impostos especiais (excise taxes) sobre o consumo de produtos como álcool, tabaco e determinados combustíveis ou embalagens, todos com leis próprias e tributações bem definidas.

Como se vê, mesmo um campeão de simplicidade tributária admite um IVA com alíquotas diferenciadas. Certamente, há um acréscimo em complexidade, mas esse é o preço que se paga para se ter maior justiça fiscal e respeito à seletividade. Todavia, é possível fazer isso de forma prudente e comedida, sem que o resultado seja uma infinidade de alíquotas e regimes especiais, como temos na legislação do IPI, do PIS e da COFINS.

Em terceiro lugar, a respeito da tributação da propriedade, o imposto existente é cobrado pelas municipalidades, varia de 0,1 a 2,5% e não é predial, mas sim territorial. Junto com a Austrália e a Nova Zelândia, a Estônia é um dos únicos países membros da OCDE que não tributa aquilo que é construído sobre o terreno. Ademais, não há tributação sobre transferência de propriedade, herança ou doação.8

Em quarto lugar, com relação aos tributos previdenciários, há (i) um “imposto social” pago pelo empregador à alíquota de 33%, baseado no salário bruto do empregado (20% para financiar a previdência e 13% para financiar o sistema público de saúde); (ii) contribuições para o seguro desemprego, que devem ser pagas à alíquota de 0,8% pelos empregadores e 1,6% pelos empregados e (iii) como regra geral, 2% ao regime lá existente de pensão financiada9.

Assim, exemplificativamente, para uma pessoa física com salário de € 1.000 brutos por mês, um pouco menos do que o dobro do salário mínimo estoniano10, a empresa que a contrata deverá gastar € 1.338. Serão € 330 recolhidos pela empresa de imposto social e mais € 8 de seguro desemprego. Quanto aos € 1.000 brutos, por sua vez, deverão ser recolhidos a título de (i) pensão financiada, € 20; (ii) seguro desemprego pago pelo empregado, € 16 e (iii) imposto de renda, em razão da isenção básica, somente € 92,80, chegando-se a um total de € 871,20 líquidos.

Verifica-se, por um lado, que existe uma considerável “oneração da folha”, mas, por outro, há uma definição muito clara das finalidades dessas exações tributárias, o que está muito distante do modelo brasileiro. Aqui, tributos com finalidade originária de financiamento da seguridade social, como o PIS e a COFINS, são afetados ao orçamento fiscal, e o contribuinte fica sem saber exatamente qual o destino da sua contribuição. 

Em quinto lugar, a respeito dos demais tributos existentes, há ainda (i) determinadas tarifas alfandegárias; (ii) impostos de selos de baixo valor para algumas transações específicas; (iii) imposto sobre veículos pesados; (iv) imposto sobre jogos de azar e (v) impostos locais de municípios rurais ou prefeituras, os quais, na prática, resultam em baixos resultados fiscais, tais como impostos sobre propaganda, veículos automotores e entretenimento.11

O estudo da Tax Foundation concluiu que a Estônia possui o melhor modelo no que diz respeito à tributação das pessoas físicas e da propriedade, o segundo melhor sistema tributário corporativo e o nono melhor modelo no que concerne à tributação do consumo.

Segundo o referido estudo, o “ponto fraco” do sistema diz respeito à observância das regras internacionais de tributação, tendo ficado em 11º lugar dentre os 36 então analisados. Isso notadamente porque a Estônia possui tratados fiscais com apenas 58 países, enquanto a média da OCDE é de 77, o que dificulta a aplicação de métodos para evitar a dupla tributação da renda.

De toda forma, mesmo não sendo uma referência em matéria de tributação internacional, a Estônia foi a pioneira mundial no programa de “e-Residency”, permitindo que qualquer pessoa do globo se torne um residente digital, com um número de cadastro que permite abrir uma empresa e operá-la remotamente sem nunca ter ingressado naquele país.

Todavia, um e-residente é um não residente, de acordo com a legislação fiscal estoniana. Isso significa que se não houver rendimentos decorrentes de atividades na Estônia, não haverá tributação naquele país.

O programa de “e-Residency” tem atraído empreendedores de startups de muitos lugares do mundo para a Estônia. Desde que o programa se iniciou, existem mais de 66 mil e-residentes e mais de 10 mil empresas abertas por pessoas de 160 países diferentes.12

O que se nota é que a Estônia tem um sistema tributário simples, com poucos tributos e regras gerais claras e transparentes, o que facilita a compreensão e a segurança jurídica, servindo de estímulo ao empreendedorismo.

Não se trata propriamente de um sistema de baixa tributação, mas, pelo contrário, de um sistema que possui uma carga tributária, em termos percentuais do PIB, até ligeiramente mais elevada que a do Brasil13.

Todavia, em vez de uma tributação elevada sobre a renda e o consumo, como acontece no Brasil, com uma série de benefícios fiscais e desonerações pontuais, a Estônia oferece alíquotas e bases tributárias em patamares razoáveis, em um sistema em que todos contribuem, sem que haja uma profusão de exceções que agregam enorme complexidade ao sistema.

O foco não está necessariamente na quantidade de carga tributária, mas sim na qualidade da forma como se arrecada, sobretudo na simplicidade, evitando-se o desperdício de recursos com conformidade fiscal.

O intuito deste artigo não é sugerir a adoção do modelo tributário estoniano no Brasil, nem buscar uma comparação muito precisa com o nosso sistema tributário, uma vez que a população da Estônia – cerca de 1,3 milhão de pessoas – corresponde aproximadamente à população somada do Centro e da Zona Sul do Rio de Janeiro14.

Contudo, embora haja muitas diferenças relevantes, é preciso olhar para as semelhanças. A Estônia, assim como o Brasil, já foi um país sufocado por um Estado pesado, ineficiente e burocrático, com um sistema tributário à sua imagem e semelhança. Hoje, essa é mais uma das diferenças entre os dois países. Enquanto a Estônia é campeã em eficiência fiscal, o Brasil talvez seja um modelo de piores práticas fiscais do mundo.  

Sem dúvida alguma, a mentalidade estoniana de simplificação do sistema tributário e de redução de complexidades desnecessárias pode fazer muito bem ao Brasil.

O sistema tributário da Estônia pode não ser um “paraíso” como aquele local idealizado pelas religiões, em que só há virtude e felicidade. Mas, no mundo terreno no qual vivemos, em que só há certeza sobre a morte e os impostos, é bom saber que há salvação, em especial para aqueles que se julgam condenados eternamente ao inferno fiscal.

___________

1 A Tax Foundation é uma organização não governamental americana, independente, que há mais de 80 anos dedica-se a analisar a política fiscal nos EUA e no Mundo.

3 6000 – 6000 / 10.800 × (montante do rendimento – 14.400)

6 https://taxsummaries.pwc.com/estonia/corporate/taxes-on-corporate-income.

7 https://www.riigiteataja.ee/en/eli/ee/Riigikogu/act/527042020008/consolide.

8 Vide estudo acima da Tax Foundation.

9 https://www.emta.ee/eng/private-client/declaration-income/tax-rates.

12 https://revistapegn.globo.com/Startups/noticia/2020/07/empreender-na-estonia-veja-como-criar-empresa-remota-e-receber-visto-de-nomade-digital.html.

13 A carga tributária do Brasil correspondia a 32,3% do PIB em 2016, enquanto a da Estônia era de 34,7% (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/551026/RAF23_DEZ2018_TopicoEspecial_CargaTributaria.pdf)

14 https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/RJ/Anexos/Sebrae_INFREG_2014_CapitalRJ.pdf

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*João Rafael L. Gândara de Carvalho é associado sênior de Pinheiro Neto Advogados.





*Patrick Rajala é associado de Pinheiro Neto Advogados.








*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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