O tema da alienação de ativos em processos de recuperação judicial sempre se destaca em momentos de crise e de busca de liquidez, como ocorre atualmente, em razão da crise global causada pelo covid-19. Afinal, a venda de ativos no Brasil é um dos meios de recuperação mais utilizados em recuperações judiciais, em especial diante da dificuldades relacionadas à obtenção de novos financiamentos (por exemplo, a ausência de efetiva prioridade no pagamento, a necessidade de prévia aprovação do juízo da recuperação para oneração de bens do ativo permanente do devedor, etc.).
Coincidência ou não, duas decisões recentes a respeito da venda de unidades produtivas isoladas em recuperações judiciais chamaram a atenção dos advogados que atuam com o direito falimentar.
Por ocasião do julgamento do REsp 1.689.187/RJ, em maio deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consignou que, como regra, a venda de uma UPI – Unidade Produtiva Isolada (UPI)1 deve se dar na forma do artigo 142 da lei 11.101/05 (LFR), exatamente como prevê o art. 60 da LFR. Ou seja, por meio de (a) leilão, por lances orais; (b) propostas fechadas; ou (c) pregão.
O precedente merece destaque, porém, por expressamente admitir a possibilidade de, excepcionalmente, serem adotadas outras modalidades de alienação para a venda de UPIs, na forma do art. 145 da LFR2, desde que haja: (a) previsão expressa no plano de recuperação; (b) aprovação por 2/3 dos créditos presentes na assembleia (art. 46 da LFR3) e (c) homologação judicial. Como bem indicado na decisão, por estar o art. 145 inserido no capítulo da LRF que trata exclusivamente de falência, não há unanimidade na doutrina quanto à possibilidade de adoção de modalidades extraordinárias de venda em recuperações judiciais. Daí, portanto, a relevância do posicionamento do STJ sobre o assunto.
No precedente em exame, o STJ concluiu - em razão das peculiaridades do caso e visando a maximizar a efetividade do processo de venda - pela legalidade da venda direta de UPI a ser criada mediante a segregação e transferência a sociedades de propósito específico (SPEs) de bens, direitos e obrigações de várias empresas em recuperação judicial. Em resumo, o STJ ratificou os fundamentos da decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) acerca da complexidade da transação envolvendo "I) aportes milionários; (II) com alto grau de complexidade, III) sujeito a diversas concepções e reestruturações societárias prévias; IV) num ramo especializado que, na atual conjuntura político-econômica, se mostra desaquecido e até vulnerável".
A decisão trata diretamente da relativização da utilização das modalidades ordinárias de alienação previstas no art. 142 da LRF na hipótese analisada, mas não indica expressamente a existência ou não de sucessão do adquirente nas obrigações das empresas em recuperação judicial (quando adotada modalidade extraordinária de venda).
Contudo, o acórdão sugere – e corretamente, a nosso ver, para que se atinja o objetivo maior de otimização do processo de alienação - ser a inexistência de sucessão a conclusão mais adequada, também quando a venda ocorre de forma direta:
“Ainda é possível mencionar uma terceira posição, mas que de fato é inoperante na prática: possibilitar a alienação por meio diverso da hasta pública mas, nesses casos, sem os benefícios previstos no parágrafo único do artigo 60 da LRF, quais sejam, estar o objeto livre de ônus e sem sucessão dos adquirentes”
Dois meses após o julgamento do REsp 1.689.187/RJ, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), em recurso interposto contra decisão proferida na recuperação judicial da Livraria Cultura, decidiu de forma oposta, vindo a consignar que a venda de UPI somente pode ser feita por modalidades ordinárias de alienação previstas no art. 142 da LFR4. A decisão fundamenta-se também na doutrina de Fábio Ulhoa Coelho e Manuel Justino Bezerra Filho, que entendem que credores e devedores não podem, no plano de recuperação, prever a venda de UPI por modalidade alternativa, nos termos do art. 145 da LFR.
Em sendo a alienação de UPI um dos grandes meios de recuperação judicial, é importante que a jurisprudência acerca do tema se consolide, a fim de se promover um ambiente de negócios mais previsível e sólido a todos os envolvidos em transações realizadas no âmbito de recuperações judiciais.
As decisões comentadas neste artigo e outros pontos controvertidos acerca da venda de ativos de empresas em recuperação serão abordados no webinar que realizaremos no MgLive no dia 19/8 às 17h. Inscreva-se clicando aqui
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1 Sobre o conceito de UPI, o STJ faz referência ao Projeto de alteração da LFR que prevê a inclusão do art. 60-A com a seguinte redação: "A unidade produtiva isolada de que trata o artigo 60 poderá abranger bens, direitos ou ativos de qualquer natureza, tangíveis ou intangíveis, isolados ou em conjunto, incluídas as participações dos sócios."
2 "Art. 145. O juiz homologará qualquer outra modalidade de realização do ativo, desde que aprovada pela assembleia-geral de credores, inclusive com a constituição de sociedade de credores ou dos empregados do próprio devedor, com a participação, se necessária, dos atuais sócios ou de terceiros.
§ 1º Aplica-se à sociedade mencionada neste artigo o disposto no art. 141 desta Lei.
§ 2º No caso de constituição de sociedade formada por empregados do próprio devedor, estes poderão utilizar créditos derivados da legislação do trabalho para a aquisição ou arrendamento da empresa.
§ 3º Não sendo aprovada pela assembleia-geral a proposta alternativa para a realização do ativo, caberá ao juiz decidir a forma que será adotada, levando em conta a manifestação do administrador judicial e do Comitê."
3 "Art. 46. A aprovação de forma alternativa de realização do ativo na falência, prevista no art. 145 desta Lei, dependerá do voto favorável de credores que representem 2/3 (dois terços) dos créditos presentes à assembleia."
4 Agravo de instrumento nº 2237160-80.2019.8.26.0000, rel. Des. Gilson Delgado Miranda, j. 01.07.2020.
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