Como em todo serviço público em que há um monopólio natural, onde os custos fixos são altíssimos e os custos marginais próximos a zero, a promoção da concorrência no mercado de transporte de gás natural se apresenta como um intrigante desafio às agências reguladoras, responsáveis por minimizar as falhas de mercado e à Secretaria Especial de Produtividade e Advocacia da Concorrência – SEAE que tem como uma das suas principais funções a proteção e a promoção da defesa da concorrência.
Do ponto de vista concorrencial, a facilitação de acesso de terceiros aos gasodutos de transporte e o aumento do número de cessões de capacidade produzem um novo paradigma na cadeia produtiva do gás natural, na medida em que, hodiernamente, a produção, importação e a comercialização são alavancadas basicamente pela Petrobrás, notadamente, quando se trata das cadeias de oferta do gás natural, escoamento e processamento, bem como nos terminais de regaseificação.
No que concerne ao transporte e a armazenagem, também há dificuldades de acesso à capacidade ociosa, ausência de clareza na metodologia de formação de tarifas, inacessibilidade dos dutos existentes, falta de planejamento e investimentos na malha de transporte, dentre outros.
Na sequência de votações importantíssimas a fim de melhorar a qualidade de serviços essenciais, o Poder Legislativo tem dado um baile. Concomitantemente à discussão da implementação de melhorias no saneamento básico, o Congresso Nacional agora também aprimora as discussões no mercado de gás natural trazendo no PL 6.407/13 importantes melhorias à lei 11.909/09.
Nesse contexto, é inegável a fundamental importância dos órgãos de Estado, sobretudo, na busca de diminuição das falhas de mercado em setores marcados pela essencial facility, como é o caso do transporte do gás.
Muitos são os pontos que chamam à atenção nesse PL, mas nenhum é mais importante de ser analisado que a criação do Operador do Sistema Nacional de Transporte de Gás Natural (ONGÁS), que a exemplo do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), será constituído como uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, mediante autorização.
De acordo com o PL, as funções precípuas do ONGÁS serão: promover o uso eficiente das instalações; estabelecer procedimentos operacionais para a correta e eficiente operação do Sistema de Transporte e Estocagem de Gás Natural e planejar, de acordo com a política energética nacional, o uso do Sistema de Transporte e Estocagem de Gás Natural, adequando-o às previsões setoriais de demanda.
Também irá propor critérios e regras ao Poder Executivo para o atendimento a` demanda de gás natural; supervisionar e coordenar as operações de movimentação de gás natural realizadas no Sistema de Transporte e Estocagem de Gás Natural; coordenar e adequar os planos de manutenção dos gasodutos de produção, de transporte, de transferência e unidades de estocagem de gás natural; propor e adotar as ações necessárias para restaurar a movimentação de gás natural em caso de falhas no seu suprimento. Não é só.
Também irá interagir com o Poder Executivo na formulação de planos de expansão do sistema; elaborar e divulgar indicadores de desempenho do sistema de transporte e estocagem de gás natural; interagir com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e monitorar a disponibilidade de gás natural, de forma a viabilizar o atendimento do despacho das instalações de geração termelétrica para o atendimento energético e consolidar e disponibilizar aos agentes as informações relevantes à movimentação de gás natural através Sistema de Transporte e Estocagem de Gás Natural.
O ONGÁS possui uma estrutura muito semelhante àquela observada na ONS, mas o mercado de gás é radicalmente diferente do mercado de energia elétrica, sendo a principal delas o fato de que o gás pode ser armazenado, ao passo que a geração de energia elétrica não pode. Precisa ser consumida.
Dadas as características distintas dos mercados, o encaixe de organização privada com poderes para consolidar e disponibilizar aos agentes as informações relevantes à movimentação de gás natural através Sistema de Transporte e Estocagem de Gás Natural é um equívoco do ponto de vista concorrencial.
O equívoco concorrencial do marco regulatório do gás não está na criação da ONGÁS em si, mas sim no desenho institucional em que ela está sendo inserida. Três aspectos, quando inseridos conjuntamente no referido PL, justificam essa preocupação: (I) não há regulação de preços no mercado; (II) o meio de acesso ao gasoduto é por autorização e não por licitação; e (III) as cessões de direitos não preveem qualquer controle concorrencial.
A não regulação de preços do gás é uma decisão muito acertada do PL, uma vez que o acesso das empresas aos gasodutos da Petrobras (essential facilities) elimina a natureza de monopólio natural dos gasodutos conforme legislação vigente.
O acesso aos gasodutos por meio de autorização também é uma decisão em linha com o ambiente concorrencial, pois não há uma rigidez locacional para um determinado acesso e nem impedimento que existam múltiplos acessos ao longo dos gasodutos, o que torna o processo licitatório clássico extremamente custoso e sem benefício concorrencial aparente.
Da mesma forma, a cessão de direitos de exploração é um mecanismo que acelera a liquidez e negociação por novos transportadores, o que faz com que esse mecanismo também esteja em linha com os ditames concorrencias. A única ressalva que se faz nesse item é o de que deve haver um convênio entre ANP e CADE no sentido de haver um controle mínimo das empresas que adquirem as cessões, sob pena de haver uma alta concentração no mercado de transporte de gás, com efeitos contrários ao que deseja o PL.
Portanto, cuidando-se das cessões de direitos conforme mencionado, não há qualquer necessidade de criação de uma organização nos moldes do ONGÁS, pois, do contrário, o que se está a fazer é elevar os incentivos para colusão entre as empresas que atuam nos mercados de transporte e carregamento de gás.
A existência de uma organização privada sem que haja um controle dos preços praticados pela ANP, o acesso realizado mediante autorização e as cessões de direitos, que são atos de concentração nos termos da lei 12.529/11, serem desprovidas de qualquer controle, aumentam as chances de prática de cartel, pois: (I) o gás é um produto homogêneo, (II) a demanda pelo bem é estável e será controlada pelo ONGÁS; e (III) a estrutura de custos das empresas é muito semelhante.
Portanto, a existência do ONGÁS exige, necessariamente, regulação de preços por parte da ANP, processo licitatório para a obtenção dos acessos, assim como convênio entre ANP e CADE para tratar das cessões de direitos. Na ausência desses elementos, a boa prática concorrencial recomenda que não haja qualquer organização privada para fazer a gestão do mercado de gás, sob pena do PL mudar o monopólio da Petrobras para um monopólio privado.
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