Omnia munda mundis*
Sergio Bermudes**
Lamenta-se que o acusador estivesse deslembrado, ou do que seja tráfico de influência, ou do princípio elementar de que não se dá à lei impositiva de sanção, muito menos à norma penal, interpretação abrangente de situações exorbitantes dos limites dela. O art. 332 do Código Penal define o tráfico de influência: "solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função". Depois de prescrever "pena de reclusão de <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="2 a">2 a 5 anos" para esse crime, o artigo acrescenta, no seu parágrafo único, que "a pena é aumentada de metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário". Dispensou-se o ministro de explicar aos seus colegas, à assistência e aos telespectadores, de que modo um telefonema, no qual um advogado pede a um juiz preferência para certo julgamento possa constituir a solicitação, exigência, cobrança ou obtenção de vantagem com a justificativa de influir em ato praticado por funcionário público, apontado também como beneficiário da dádiva. Num momento de deslembranças, não se recordou o ministro de que o art. 138 do Código Penal considera crime caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime.
No Brasil, não constitui, absolutamente, nenhum deslize solicitar-se a um juiz, não importa a sua hierarquia, preferência para o julgamento de um caso. Aliás, os regimentos dos tribunais admitem pedidos de preferência, antes das sessões, aí de casos prontos para julgamento. Avassaladora a quantidade de processos dependentes do exame de um juiz (juízes são todos os integrantes da magistratura, inclusive os do STF, que recebem o tratamento de ministro), não se proíbe a solicitação de preferência, que também pode ser feita informalmente, mediante qualquer correspondência, num encontro casual com o magistrado, ou até num telefonema. A maioria dos juízes brasileiros não se mostra avessa a telefonemas de advogados pedindo julgamento preferencial por motivos diversos, como viagem, intervenção cirúrgica, necessidade do cliente, demora do caso. Os juízes, conforme os seus critérios, atendem ou não aos pedidos, sem se considerarem ofendidos pela formulação deles e sem os identificarem como atitude delituosa, ou reprovável. O telefonema para a residência de um magistrado justifica-se pelo costume já assentado, decorrente, dentre outros motivos, do fato de que muitos juízes dos tribunais onde não há sessões todos os dias, como é o caso do Supremo, não vão aos seus gabinetes. Ao levarem memoriais (sínteses dos casos e dos argumentos apresentados no processo) às residências deles, como da preferência de muitos, os advogados quase sempre encontram acolhida gentil. Ainda que se considerasse inadequado um telefonema à residência de um juiz, nunca se poderia vê-lo como um crime; e crime gravíssimo, tal o delito de tráfico de influência, que a lei pune com pena de reclusão.
Parece que o desavisado agressor do advogado Maurício Corrêa não compreende o exercício da advocacia, declarada função indispensável à administração da justiça, no art. 133 da Constituição Federal. Recusa-se a receber advogados no seu gabinete, agindo contra norma expressa da Lei Federal 8.906, de 4.7.94 (Estatuto da Advocacia) que, no inciso VIII, dá aos advogados o direito de "dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada". O ministro Joaquim Barbosa vê nos advogados um bando de abusados. No seu gabinete, o advogado é tratado por funcionários que, contrariamente aos do STF, sempre gentis, se mostram descorteses e empafiosos. Como nunca aconteceu na Corte, recusam-se a receber memoriais dos advogados. Consta que, se se pede preferência para um processo, ele é passado para o último lugar da fila.
Não faz muito, circulou, na comunidade jurídica de São Paulo, algo restritamente, uma carta, que se diz escrita pelo sr. Joaquim Barbosa a um jornalista. Bom seria que não fosse do ministro e que ele negasse a autoria dessa carta, inclusive socorrendo-se de uma análise estilística. O autor da carta deixa evidente a sua indisposição com os advogados. Critica as interferências deles na nomeação de ministros do STF e de outros tribunais. Esquece-se de que, numa democracia, têm os advogados, como têm os cidadãos, o direito de empenhar-se na nomeação de juízes, destacando as suas qualidades para o cargo, a sua cultura, o seu perfil moral, o compromisso com a administração da justiça, o apego ao trabalho, a devoção à causa da humanidade. Muitos advogados orgulham-se de haver influído na escolha de magistrados notáveis. Alguns lamentam não haver tentado impedir a escolha de magistrados deploráveis.
Ao contrário do ministro Joaquim Barbosa, a ordem jurídica não vê razões para suspeitas, nem mesmo na amizade íntima entre advogado e juiz. Tanto o Código de Processo Civil, no inciso I do art. 134, quanto o Código de Processo Penal, no art. 254, I, encontram motivo de suspeição na amizade íntima ou inimizade capital do juiz com as partes; não com os advogados. Presume-se que, pela idoneidade moral exigida para o exercício do cargo, o juiz não deixará que os seus sentimentos, favoráveis ou desfavoráveis, pela pessoa dos advogados interfiram no seu dever de julgar com imparcialidade. Integrantes da mesma comunidade, é natural que juízes e advogados se aproximem. Dario de Almeida Magalhães contava que o seu pai, Raphael, desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, conversava, todas as tardes, com o advogado Jair Lins, no muro divisório das suas residências, em Belo Horizonte. Freqüentemente, iam juntos ao cinema. Jamais falavam de processos entregues ao patrocínio de um e ao julgamento do outro.
Há países, como os Estados Unidos, em que os juízes e advogados vivem em completo afastamento, sem se relacionarem uns com os outros. Advogado e político famoso de Washington, Arthur Goldberg foi nomeado por Kennedy para a Suprema Corte, em 1962. Três anos depois, ele deixou o tribunal, ao que se disse, queixando-se de que o telefone de um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos não toca nunca. Espanta os advogados norte-americanos que um advogado brasileiro possa comparecer sozinho diante de um juiz, para tratar de um caso, sem a presença, adrede combinada, do advogado da parte contrária. Nos Estados Unidos, não se pode, absolutamente, fazer isso. Mas lá eles também não dançam samba, não comem arroz com feijão, não comem carne moída com aipim. Nem farofa, que, para muitos deles, sabe a pó de serra. É tudo uma questão de culturas.
No Brasil, admitem-se e desenvolvem-se relações entre juízes e advogados. Nada obsta ao telefonema de um ao outro, inclusive para pedir preferência no julgamento de um processo. O que não se pode é descobrir intenções subalternas no ato de um advogado que pede ao juiz o julgamento prioritário de um recurso. No capítulo I de um livro admirável, traduzido em português com o título "Eles os juízes, vistos por nós, os advogados", o autor, Piero Calamandrei, dos maiores advogados da Itália, no seu tempo, e um dos maiores processualistas de todos os tempos, escreve com lucidez e autoridade: "aquele que entra num tribunal trazendo na sua pasta - em vez de boas e honradas razões - manigâncias secretas, solicitações ocultas, suspeitas sobre a corruptibilidade dos juízes e esperanças na sua parcialidade, não se admire, ao aperceber-se de que em vez do templo severo da Justiça, se acha numa alucinante barraca de feira. Em todas as paredes, um espelho devolver-lhe-á, multiplicadas e deformadas, as suas intrigas. Para achar a pureza do Tribunal, é preciso que lá se entre com a alma pura".
Pela imputação vexatória, o sr. Joaquim Barbosa humilhou, publicamente, o advogado Maurício Corrêa (com quem nunca tive qualquer associação profissional; hoje, aliás, meu adversário em causa gravíssima). A invectiva decorreu da interpretação injustificável, dada a um inocente telefonema no qual apenas se pedia preferência para um julgamento. Num tempo de deslembranças, o ministro também se esqueceu da sentença de São Paulo, título do artigo de hoje. No versículo 15 do capítulo I da sua Epístola a Tito, o Apóstolo ensina a verdade de que 'para os puros todas as coisas são puras'.
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* Publicação original no site no mínimo
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** Advogado do Escritório de Advocacia Sergio Bermudes
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A cena
Aguarde alguns instantes até abrir um quadro negro, e depois passe o mouse sobre ele para assistir à matéria do Jornal Nacional, da Rede Globo, sobre o acontecimento no Supremo.
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