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Ex_Machina: Instinto artificial e práticas colusivas

Transplantando a premissa do filme para o Direito Concorrencial, é possível extrair valiosas reflexões acerca de mecanismos artificiais e práticas colusivas.

13/8/2020

Na aclamada película “Ex_Machina”, do diretor britânico Alex Garland, a trama se desenvolve, na imensa maioria do tempo, no bunker do personagem Nathan, bilionário da tecnologia e CEO da Blue Book, que seleciona o jovem Caleb, programador desta empresa, para testar uma inteligência artificial (IA) sofisticadíssima, chamada Ava.

Em uma adaptação do teste de Turing, o objetivo de Caleb, na unidade de pesquisa de Nathan, não é identificar se ele está ou não diante de um software dotado de IA, mas se esta é capaz de funcionar semelhante à consciência humana.

A grande questão do filme é saber se, a partir da base de dados que é ofertada à IA, é possível haver uma tomada de decisão autônoma e livre.

Transplantando a premissa do filme para o Direito Concorrencial, é possível extrair valiosas reflexões acerca de mecanismos artificiais e práticas colusivas.

Isso porque é crescente a preocupação de que o arcabouço antitruste atual possa ser insuficiente para analisar e coibir, em certos casos, a formação de cartel ou de estruturas análogas a este ilícito, mas que, ao fim e ao cabo, geram efeitos anticompetitivos similares.

Para tanto, é necessário separar as práticas concertadas em dois grupos: nos que há ou pode haver interação humana e nos que, a priori, não há. No primeiro grupo, a literatura aponta que a prática concertada com o uso de algoritmos pode se dar, basicamente, de duas formas1:

1. Messenger – o algoritmo funciona como facilitador de um cartel clássico, executando a vontade dos humanos para auxiliar na implementação e monitoramento do cartel.

2. Hub and Spoke – neste caso, utiliza-se um algoritmo comum como eixo para repassar os preços entre os concorrentes. A característica marcante do “hub and spoke” é a de não haver comunicação direta entre os agentes, mas a utilização de uma terceira parte que auxilia no conluio2. Neste caso, é o desenvolvedor do algoritmo que forneceria o terminal comum para que houvesse a troca de informações entre os agentes.

Segundo Ezrachi e Stucke, apesar das particularidades, os casos 1 e 2 podem ser identificados e punidos com base no ferramental hodierno do Direito Concorrencial.

Em relação ao ponto 1, a tecnologia serve, tão somente, como um “braço” dos membros do cartel, com a finalidade de investigar se os termos do conluio estão sendo cumpridos. Na hipótese 2, é necessário analisar o algoritmo a fim de perquirir se sua construção teve o fim de distorcer as bases do livre mercado.

Em suma, nas hipóteses do “Messenger” e “Hub and Spoke”, a tecnologia é mais um auxiliar da atividade humana, de modo que é possível comprovar o acordo ou entendimento entre indivíduos com o fim de cartelizar.

Registre-se que, no Brasil, por exemplo, o CADE nunca investigou cartéis do tipo hub and spoke que seja estruturado mediante uso de algoritmos3. Entretanto, nos EUA, a realidade é um pouco diferente.

No caso do “cartel dos pôsteres”, em 2015, David Topkins admitiu a criação de um algoritmo para fixar, aumentar ou manter o preço dos pôsteres. A partir de um software comum, ele e os demais conspiradores definiam os preços do produto que seria vendido na loja da Amazon. De acordo com a acusação, a combinação de preços gerava uma restrição desarrazoada do comércio interestadual, em violação à lei antitruste norte-americana4.

Para além dos casos descritos acima, a questão se torna mais complicada nas hipóteses que serão descritas a seguir. Isso porque, via de regra, para caracterização do cartel, é necessária a comunicação entre concorrentes, ainda que indireta5.

Segundo Ezrachi e Stucke, as hipóteses em que a comunicação pode ser mitigada, a partir da criação de software complexos e altamente sofisticados, são as seguintes6:

3. Predictable agent – cada competidor utiliza um algoritmo diferente que foi criado para reagir com alteração no preço a uma dada variação do mercado, sem que haja evidência cabal de qualquer acordo, vertical ou horizontal, para fixar preços7. Neste caso, não há acordo, mas há a intenção de manter os preços em um patamar similar.

4. Digital eye – na última hipótese, é retirado o conceito legal de intenção. Utilizando complexas redes neurais para processar dados, o sistema artificial é criado não com o objetivo de cartelizar, mas de maximizar os lucros. Para alcançar este fim, a própria IA determina, de forma independente, os meios para aumentar a margem de lucro. O código fonte proíbe atividades ilegais, mas, dentro do rol de ações da IA, é possível haver coordenação tácita não pela ação humana, mas através do auto aprendizado da máquina.

Vê-se, portanto, que o problema não está propriamente na automação, mas na autonomia. Assim, práticas concertadas podem não ocorrer mais expressamente, mas de maneiras e modos mais sutis.

O grande problema destes acordos tácitos é a comprovação do conluio entre os concorrentes a fim de caracterizar a formação de cartel. Isso porque o mero alinhamento de preços não é suficiente para caracterizar a infração concorrencial, mas, antes, um indicativo da prática.

Assim, uma reação racional de espelhamento de preços8 pode ser uma consequência natural do processo de competição. Este fenômeno é conceituado como “paralelismo consciente”.

Desta forma, os concorrentes podem não diminuir os preços dos produtos porque sabem que isto não implicará no ganho de fatia de mercado, mas acarretará severa guerra de preços que tende a não ter vencedores. Consectário lógico, não poderão ser punidos por responder a um estímulo de mercado.

O desafio, então, segundo Ezrachi e Stucke, é verificar que a similaridade de preços não decorre de um processo natural de “price leadership”, mas de um conluio tácito visando à alteração da dinâmica do mercado. Na visão deles, não porque o conluio tácito/paralelismo consciente é legal que seus efeitos sejam desejáveis.

O que fazer, portanto, quando é possível que se atinja o mesmo efeito prático do cartel, prejudicando consumidores e demais concorrentes, sem que se tenha intenção de cometer qualquer ilícito? Ou quando algoritmos podem permitir que agentes alcancem os mesmos resultados de um cartel hardcore9 sem que haja uma colusão expressa?

Outrossim, ao se deparar com arranjos desta natureza, fabricados por softwares altamente complexos, é possível haver intervenção dos órgãos de defesa da concorrência? Se sim, em que medida e extensão?

Achar uma resposta para questionamentos tão intrigantes é difícil. Pensar no problema já é um excelente ponto de partida10.

Apenas a título de exemplo, discute-se que o fortalecimento do enforcement poderá trazer problemas, como desincentivar a inovação tecnológica, investimentos neste setor, bem como criar falsos positivos.

Por outro lado, deixar o tema em segundo plano pode, com o rápido avanço das novas tecnologias, tornar os atuais instrumentos utilizados pelas agências obsoletos. Nesta linha, a OCDE já demonstrou preocupações quanto ao fato de os algoritmos direcionarem o mercado à colusão, por torná-lo mais transparente e interativo, e por poder substituir a colusão expressa pela tácita sem que haja, necessariamente, o “plus factor”11.

A questão, decerto, é bastante desafiadora e implica a necessidade de um debate técnico, a fim de que se busquem soluções viáveis para proteger as estruturas do mercado sem que se prejudique o avanço tecnológico.

Há quem discorde. Grandes nomes do Direito Concorrencial entendem que esta discussão é acessória e não deveria trazer grandes preocupações, em uma espécie de “irrelevância fundamental”.

Thibault Schrepel, professor de Direito na Universidade de Utrecht, aponta que a falta de estudos empíricos conclusivos não deveria tornar o tema pauta do dia. Ademais, aduzindo em uma espécie de novas embalagens para antigos interesses, aponta que se a prática de cartel é operacionalizada por algoritmo ou não, a natureza da prática anticompetitiva permanece a mesma12.

Na mesma linha, Tommaso Valletti, ex-economista chefe da Comissão Europeia, disse não estar convencido quanto à possibilidade de máquinas praticarem atos concertados através de algoritmos13.

Não obstante as vozes em contrário, nos filiamos à corrente que entende a importância da temática e a necessidade de análise mais aprofundada da questão, tendo em vista a possibilidade de decisão autônoma por algoritmos complexos com capacidade de autoaprendizagem produzirem efeitos nefastos ao ambiente concorrencial.

A falta de estudos empíricos em massa não é um indicativo de que o tema não seja importante. Ademais, a colusão através de algoritmos muda a forma como o cartel é construído e operacionalizado, de forma que discutir o tema não é, ao que nos parece, mais do mesmo.

Reforça a nossa posição a recente pesquisa que, em ambiente simulado, reproduziu, em ambiente estocástico, o modelo canônico do cartel. Para tanto, foram construídas IAs que interagiam repetidamente com movimentos simultâneos e ampla flexibilidade para fixar o preço. Os resultados apontaram que até mecanismos simples foram capazes de produzir estratégias colusivas complexas a fim de tornar o desvio (retorno ao preço competitivo) não lucrativo14.

É preciso que se compreenda que as bases do Direito Antitruste foram construídas quando computadores, algoritmos, inteligência artificial, machine e deep learning eram realidades distantes e/ou desconhecidas. Todavia, os tempos são outros: precisam ser distintas as ferramentas de análise e consequente coibição do ilícito concorrencial, sob pena de se tornarem anacrônicas.

Tal qual eternizado pela banda alemã Scorpions, há um vento de mudança15 que sopra sobre o Direito Concorrencial. Assim, não podem ser desconsideradas as novas tecnologias e alguns agentes estão sempre buscando mecanismos sofisticados para obter vantagens ilícitas, em franco prejuízo aos consumidores e aos demais players que não participam da colusão.

Em uma passagem do filme que dá nome a este texto, Nathan diz a Caleb que a “chegada de uma inteligência artificial potente é inevitável há décadas”. Assim, apesar de os ensaios práticos ainda serem incipientes, é preciso que se coloque este assunto na pauta do dia das agências antitruste, pois a variável não é “se” haverá mecanismos de colusão tal qual o digital eye, mas “quando”.

Devemos, por conseguinte, escolher se iremos acompanhar e nos adaptar a estas mudanças, ou apenas sofrer as consequências (muitas vezes deletérias) das novas tecnologias.

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1 EZRACHI, Ariel. STUCKE, Maurice E. Artificial Intelligence & Collusion: When Computers Inhibit Competition. In University of Illinois Law Review, Vol. 2017, n. 5. Disponível em: clicando aqui

2 BOLECKI, Antoni. Polish Antitrust Experience with Hub-and-Spoke Conspiracies. Yearbook for Antitrust and Regulatory Studies, Vol. 4, No. 5, 2011. Disponível em: clicando aqui

3 COELHO, Maria Camilla Arnez Ribeiro. Algoritmos, Colusão E “Novos Agentes”: Os Quatro Cenários De Stucke E Ezrachi Sob A Ótica Da Legislação Antitruste Brasileira. In: MACEDO, Agnes et al. (Org.) Mulheres no Antitruste, vol. 1. São Paulo: Editora Singular, 2018, p. 117 – 131.

4 United States of America x David Topkins. No. CR 15-00201 WHO. Disponível em clicando aqui

5 ATHAYDE, Amanda. GUIMARÃES, Marcelo. Bumblebee antitruste? A inteligência artificial e seus impactos no direito da concorrência. In: Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade (coordenação Ana Frazão e Caitlin Mulholland). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 433 - 455

6 EZRACHI, Ariel. STUCKE, Maurice E. Op. cit

7 Nesse caso, a prática anticompetitiva pode advir da interdependência entre os algoritmos sem que haja qualquer comunicação.

8 FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 363

9 Segundo entendimento do CADE, o cartel hardcore seria aquele em que a estratégia fundamental se baseia na fixação de preço/quantidade, divisão de mercado e colusão em licitações públicas. Nestes casos, o prejuízo ao mercado é presumido e não se admite excludente de ilicitude. In: SCHMIDT, Cristiane Alkmin Junqueira. Per se ou regra da razão?

10 Por exemplo, no Brasil, há um vácuo jurisprudencial e doutrinário no que tange aos mecanismos de autoaprendizagem, o que, certamente poderá trazer grandes desafios para detectar e coibir colusão via algoritmos. Cf. COELHO, Maria Camilla Arnez Ribeiro. Op cit.

11 ATHAYDE, Amanda. GUIMARÃES, Marcelo. Op cit

12 SCHREPEL, Thibault. The Fundamental Unimportance of Algorithmic Collusion for Antitrust Law. Disponível em clicando aqui

13 Disponível em clicando aqui

14 CALVANO, Emilio et al. Artificial intelligence, algorithmic pricing, and collusion. Disponível em clicando aqui

15 Aqui, faz-se uma referência à canção “Wind of Change”, que anunciava as mudanças que atravessaria a Europa com a dissolução da União Soviética e a queda do Muro de Berlim.

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*Matheus Carvalho Silva é advogado do escritório da Fonte, Advogados.

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