Migalhas de Peso

Brasil e a sociedade invencível: Capítulo um

Como a extinção do voto de qualidade no CARF revela um despreparo social brasileiro

4/8/2020

O Brasil está aonde está muito pela impossibilidade de se aceitar a situação posta e trabalhar no panorama constituído. Jogar o jogo como lhe é posto.

A sociedade brasileira tem como característica inerente não saber perder. É assim no Legislativo, é assim no Judiciário e, claro, é assim no Executivo.

No Judiciário, um exemplo atual e clássico da sociedade invencível é a reiteração, pelo Fisco, nos superados argumentos sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins e da interposição de dezenas de milhares de recursos sobre a mesma matéria, mesmo após o Supremo Tribunal Federal ter julgado a questão por vezes, incluindo-se com repercussão geral (RE 574.706/RG).

No Legislativo, objeto do presente e coeso artigo, a evidência da sociedade invencível se dá em torno do “voto de qualidade no âmbito do CARF”.

O voto de qualidade, mecanismo então concebido para desempatar julgamentos no CARF, foi extinto recentemente através do art. 28 da lei 13.988/20, instrumento introdutor do art. 19-E na lei 10.522/021, fruto da conversão da MP 899/19 em lei.

Tratava-se o referido instrumento (voto de qualidade – voto duplo) de um quiproquó no direito brasileiro. Largamente contestado por sua evidente incompatibilidade com a Lei Maior, o mecanismo atribuía a um só conselheiro do CARF a prerrogativa de proferir dois votos sobre um mesmo julgamento (além do ordinário, o de qualidade).

Ocorre que, a nossa Lei Maior consagra a máxima do “princípio democrático norte-americano ‘um homem, um voto (one man, one vote)’2. Dessa maneira, a ideia de um mesmo julgador proferir dois votos em relação ao mesmo caso se revela discrepante aos valores da isonomia, do sufrágio universal e da democracia, razão pela qual o voto duplo no CARF violava as noções de hierarquia estrutural e axiológica do sistema3. Tanto é assim que diversas foram as decisões judiciais proferidas no sentido de anular acórdãos administrativos proferidos pelo Conselho mediante a sistemática do voto de qualidade (voto duplo), várias dessas decisões que tive a imensa honra de patrocinar os respectivos casos. Alguns paradigmáticos.

A extinção do aludido mecanismo que pretensamente legitimava um voto duplo por parte de um julgador foi introduzida no sistema positivo jurídico através do referido art. 28 da lei 13.988/20, cujo enunciado é dispor “sobre a transação nas hipóteses que especifica; e altera as leis nos 13.464, de 10 de julho de 2017, e 10.522, de 19 de julho de 2002”4.

Inconformados com a extinção do voto duplo no âmbito do CARF, auditores da Receita Federal, membros do MPF e outros iniciaram uma cruzada para revogar a norma acima, que eliminara o voto de qualidade e, indo além, propor a mudança de composição do Conselho, extinguindo a previsão de composição paritária. Ambas as proposições acima vêm como emendas parlamentares à MP 952/20, emenda 53 e emenda 545.

Os principais argumentos sustentados pela referida frente é a de que a extinção do voto de qualidade incentivaria “voto de bancada” (algo que nunca existiu na história do CARF) e uma sustentada inconstitucionalidade da norma revogadora do voto de qualidade, pois teria sido introduzida no sistema positivo mediante um jabuti legislativo.

O primeiro argumento é inconcebível e não merece protagonismo. Como esta frente sempre defendeu, os conselheiros, todos, são imparciais. Portanto, se antes não havia “voto de bancada” do Fisco, agora não se pode conceber de “voto de bancada” dos contribuintes. Sustentar o inverso é assumir a inconstitucionalidade do voto duplo no CARF.

A questão remanescente em ser ou não a norma que extinguiu o voto de qualidade um jabuti legislativo seria uma reflexão válida, caso não viesse mediante um efetivo jabuti.

Essa prática revela o despreparo do Brasil como sociedade. Como saber jogar com a perda e se preparar e prosseguir com o cenário constituído. Estamos repletos de wishful thinking e a resistência a perder nos torna invencíveis. Por mais paradoxal que seja, é com essa ciência de invencibilidade que estamos sendo paulatinamente derrotados como País, como sociedade e como democracia. É um eterno ciclo vicioso.

Conforme mencionado acima, a extinção do voto de qualidade foi introduzida no sistema mediante uma lei que “dispõe sobre a transação nas hipóteses que especifica; e altera as leis nos 13.464, de 10 de julho de 2017, e 10.522, de 19 de julho de 2002”. É através dessa proposta que o voto duplo foi extinto, conforme art. 28 da lei (13.988/20).

Inconformados, os invencíveis propõem a revogação da medida mediante emendas à MP 952/20, cujo enunciado é dispor “sobre a prorrogação do prazo para pagamento de tributos incidentes sobre a prestação de serviços de telecomunicações”. Agora, qual seria a relação entre moratória tributária ao setor de telecom e a revogação da extinção do voto de qualidade? A resposta é simples: nenhuma.

Portanto, é através de um jabuti que se propôs no Legislativo a revogação de uma norma por uns alcunhada de jabuti. Um quid pro quo por completo, digno de Brasil.

Isto é, sustenta-se que a eliminação do voto de qualidade no CARF seria um jabuti e, por isso, inválido. Como solução, propõe-se no Legislativo outro jabuti a fim de se revogar o primeiro. Algo como ‘um jabuti revogando outro’. Não há como prosperar a proposta, sendo malfadada até se aprovada.

Se passar, a discussão sobre a inconstitucionalidade do voto duplo no CARF se robustece pelos mesmos argumentos suscitados pela frente que o pretende ressuscitar; além da evidente mácula à Constituição por ser um ‘jabuti’.

Se não passar, enfim, não passou.

Portanto, as emendas 53 e 54 à MP 952/20 revelam, dentre outras, a ânsia invencível da sociedade brasileira que não se conforma. Que não joga para a frente, que não quer avançar. Retoma-se discussão superada que terá como consequência somente a insegurança jurídica e, aos adeptos à interpretação econômica do direito tributário, gasto ao erário (seja com as novas anulações de acórdãos do CARF e os rejulgamentos e infinidade de recursos, seja com a rediscussão daquilo que já havia sido resolvido).

Torço pela rejeição das aludidas Emendas...

_________

1 Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E: “Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.” Clique aqui.

2 ANDRADE, Fábio Martins de. A Polêmica em torno do voto duplo: a inconstitucionalidade do voto de qualidade nas decisões do CARF. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017. p. 201; e US Supreme Court: Coleman v. Tennessee, 97 U. S. 509 (1879). Clique aqui

3 MCNAUGHTON, Charles William. Elisão e norma antielisiva: completabilidade e sistema tributário. São Paulo: Noeses, 2014. p. 61.

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*Guilherme Elia C. Silva é especialista em direito tributário pelo IBET. Especialista em Processo Tributário: Administrativo e Judicial pela PUC/RJ. Especializado em finantial accouting, Maryland University/EUA. Advogado. Ex-patrono do contribuinte no caso paradigma perante o STF.

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