Migalhas de Peso

O vírus da insolvência e os riscos para o futebol

Os campeonatos suspensos aprofundaram a crise financeira dos clubes de futebol em todo o globo. Alternativas para a sua reestruturação não faltam, mas estas deverão carregar uma dose extra de profissionalismo também fora de campo.

5/8/2020

A pandemia do Covid-19 evidenciou não só a fragilidade da vida, mas as finanças já combalidas de empresas do mundo todo e dos mais variados setores econômicos. Exemplos recentes como o Cirque du Soleil e a Latam Brasil não surpreendem. Em outra ponta, não menos importante, os clubes de futebol do Brasil, muitos com suas finanças enfraquecidas, também sofrem com a crise sanitária mundial, após ter campeonatos e jogos interrompidos e, por consequência, uma redução drástica na receita. Apesar das repactuações e negociações, ainda mantiveram-se com altas despesas, especialmente de pessoal. Por certo, não há precedente econômico idêntico antes visto no futebol.

Os números revelam a grandeza deste setor na economia brasileira e mundial. Em nosso país, por exemplo, o futebol gera 370 mil empregos, mas há potencial para produzir nada menos que 2 milhões de postos de trabalho entre diretos e indiretos. O Campeonato Brasileiro é avaliado em R$ 3,5 bilhões. A Premier League, da Inglaterra, por sua vez, é avaliada em R$ 33 bilhões. Logo,  não é difícil avaliar o potencial de crescimento econômico que o mercado da bola tem no Brasil.

As receitas das agremiações podem ser separadas em quatro grandes grupos: as do dia de jogo, advindas da venda de ingressos e acessórias; as dos direitos de televisão, a partir da transmissão dos jogos; as comerciais, resultado de patrocínios, vendas de camisas, direitos de imagem, royalties etc; e patrimoniais, resultado do lucro com a venda de jogadores. A pandemia, obviamente, reduziu a zero muitas delas. Sem jogos, não há dinheiro de ingressos ou alimentos; não há exposição suscetível de patrocínio; os direitos de televisão são minorados; e os patrimoniais sofrem prejuízos incalculáveis, pois jogadores sem jogar futebol são como um céu sem estrelas.

O cenário das dívidas dos clubes brasileiros contabiliza 10 bilhões de reais, dentre passivos financeiros e tributários, sendo que, dos 20 clubes da Série A, 16 deles têm dívidas que ultrapassam 100% de sua receita anual. Esses dados comprovam a necessidade de uma reorganização financeira, administrativa e jurídica para que possam não somente deixar de gerar prejuízos para a sociedade, como contribuir para o crescimento econômico.

Um exemplo de descontrole das finanças neste setor vem do gigante Corinthians. Os últimos episódios noticiados  incluem três penhoras de caixa e faturamento - apenas no último mês (casos dos volantes Richard, Marcelo Mattos e Jucilei) -, que parfazem cifras acima de  25 milhões de reais, não são novidade. Neste ano, o clube já ofereceu o terreno do Parque São Jorge a penhora, em processo movido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo;  já teve o valor de direitos de transmissão bloqueados. Vale lembrar que a Taça referente ao Campeonato Mundial já foi penhorada por duas vezes, além do triste episódio do corte do fornecimento de marmita aos seus empregados, fazendo a alegria dos torcedores rivais.

Com três folhas de salários atrasados este ano, o Corinthians já teve o fornecimento de energia elétrica cortado, o que demonstra claros sinais de ter entrado na chamada “espiral da morte”. Tamanho desespero fez reverberar, recentemente, afirmações inacreditáveis de um de seus dirigentes, ao sugerir a um torcedor - que não aderiu ao cartão de uma instituição financeira patrocinadora -, que o mesmo “não é corinthiano”, atribuindo a terceiros a culpa pela má administração do clube e pior, atacando por dentro o seu maior patrimonio: a fiel torcida.

Como o clube apresenta resultados anuais negativos, diversas penhoras acometendo  rotineiramente suas receitas e seu caixa, em uma explícita demonstração de incapacidade de pagamento de contas básicas como folha de salários, energia elétrica e refeição de seus funcionários, é necessária e urgente uma ampla reestruturação. A começar pela qualidade e quantidade de contratações, assim como a  revisão do formato jurídico das  mesmas;  adequação do passivo a uma estratégia de pagamento apropriada, como por exemplo, deixar de pagar as execuções somente após a penhora de receita ou de algo valioso para o clube em uma clara demonstração de uma administração “apaga incêndio”. Não há que se inventar a roda, mas sim retomar a regra de ouro conhecida das finanças: gastar menos que ganha.

No mundo da bola, muitas agremiações já faliram ou pediram socorro judicial a exemplo do  Nápoli (Italia), Fiorentina (Itália), Racing (Argentina), Glasgow Rangers (Escócia), Parma (Itália), La Coruna (Espanha), Borussia Dortmund (Alemanha), Yokohama Flugels (Japão), AEK Athenas (Grécia), Metalist (Ucrânia), Modena (Itália), Torino (Itália), dentre outros.

Um dado curioso entre os casos é o clube Borussia Dortmund da Alemanha, país onde as regras de insolvência são muito rígidas que,  entre 2002 e 2005, ficou praticamente sem qualquer dinheiro em caixa e só não faliu porque fez uma "promoção" dos seus principais jogadores. Reduziu o salário dos atletas que permaneceram e, por mais incrível que pareça, recebeu empréstimos de um de seus maiores rivais, o Bayern de Munique. Talvez  motivado pelo necessário antagonismo da vida, assim como um herói só existe se tiver um vilão a sua altura, um clube de futebol só é grande, se o seu rival assim o for.

Tarde demais para uma reestruturação, a maioria dos clubes tiveram que renascer. Seus espólios comprados por entusiastas, mudaram de nome, começaram da base mais baixa da pirâmide das divisões de seus países ou regiões a fim de retornarem a elite. Vale ressaltar que os clubes podem ter falido, perdido seus bens, obrigados a recomeçar de baixo, mas não perderam o seu maior patrimônio, este, impenhorável e inalienável, qual seja, a sua torcida.

O exemplo dos clubes estrangeiros, infelizmente, poderá ser seguido pelos clubes brasileiros, caso  não se reestruturem. Estudo realizado elaborado por consultores da Câmara dos Deputados, Adriano do Nobrega Filho e Antonio Marcos da Silva Santos, os clubes de futebol têm em média 50% de sua receita comprometida com salários. Ora, se mais da metade dos clubes da série A do campeonato brasileiro estão com resultado negativo no período e despesas financeiras decorrentes de empréstimos bancários elevadíssimas, em cálculo simples, nos dá a certeza de que já entraram ou estão à beira do “espiral da morte” e não terão como suportar o pagamento do mais essencial das suas despesas: o salário dos seus funcionários.

Importante dizer que o processo legislativo que está ocorrendo no Brasil, especialmente, o que tramita sob  o nome de “Projeto Clube Empresa” poderá atrair investimentos para os clubes que terão aperfeiçoadas suas práticas de governança, prevendo ainda a possibilidade de requerer recuperação judicial com regras especiais, podendo alongar e pagar seu passivo em consonância com sua geração de caixa, sem prejudicar seu bom funcionamento e pagamento das despesas correntes. Também a adesão ao regime tributário “SIMPLES FUT”, o que facilitaria e simplificaria o pagamento dos tributos; bem como, alterações pontuais  na Lei Pelé, dentre elas, a hipersuficiência dos atletas, o que apmpliaria a liberdade de contratar para aqueles que  tem salário acima do dobro do limite máximo do teto de contribuição da Previdência Social que é de R$ 12.200,00, dando liberdade contratual, com validade e eficácia plena ao contrato de trabalho com o clube e o aumento do “mecanismo de solidariedade” de 5% para 10% pela transferência nacional dos atletas, valorizando a formação destes.

Ainda tramita o Projeto de Lei 1.397 de 2020, de autoria do Deputado Hugo Leal, que ao criar um regime transitório de insolvência, em virtude da pandemia do Covid-19, que visa prevenir a crise econômico-financeira de agentes econômicos,  possibilitaria aos clubes de futebol a utilização de um mecanismo novo, denominado negociação preventiva. Possibilitaria suspender de imediato as ações, execuções e penhoras. Ou seja, ao cessar o ataque ao caixa dos clubes de futebol e estando eles em pé de igualdade com os credores para uma negociação justa e equilibrada. Contudo, enquanto tais projetos não se tornam Lei aplicável, é necessário que os clubes organizem suas finanças com os meios jurídicos existentes.

Ora, se nunca houve espaço para o amadorismo no futebol, neste insólito momento de paralisação que este novo vírus impôs, é hora de repensar a estrutura dos clubes. É o momento de aproveitar a parada forçada causada pela pandemia e “resetar”, dar um novo começo. É necessário e urgente alterar as regras deste jogo e profissionalizar, garantir um planejamento estratégico, reestruturar o calendário, promover estudos de impacto econômico, de governança. Os clubes devem aproveitar este hiato e reorganizar o futebol como um todo.

Inegável que alternativas para a reestruturação existem, modelos de gestão e de sucesso são vários mundo afora. É hora de esquecer que o futebol é “menos importante”, aliás, é hora de ressignificar a célebre frase de Nelson Rodrigues, “o pior cego é aquele que só vê a bola”.

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*Otto Gübel é advogado especializado em insolvência e recuperação judicial.

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