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A Constituição como ferramenta de trabalho

A proposta de o profissional do Direito dedicar-se a esse exercício intelectual contém o objetivo prático de convidá-lo a empregar o conhecimento quanto à Constituição, para encontrar a solução de casos concretos.

4/8/2020

O jovem profissional do Direito encontra-se num mundo em que há:

I Excesso de informações: a internet mostra-se como elemento transformador, porém tem efeitos negativos para quem não possui filtros de cultura;

II Decadência do ensino do Direito: consequência da pobreza das universidades públicas e do mercantilismo das faculdades privadas, sem falar da falta de vocação de professores que querem títulos e complementos nos holerites, mas não se esmeram para cativar os alunos;

III Ausência de figuras inspiradoras no ambiente jurídico: as pessoas cultivam pop stars, esportistas, youtubers, mas não admiram seus professores universitários, seus preceptores na profissão jurídica;

IV Retorno de posições ideológicas extremadas (esquerda/direita; socialismo/liberalismo; punitivistas/garantistas) que se refletem em decisões judiciais;

V Perda da importância da religião nas sociedades ocidentais e até mesmo certo preconceito de que ter religião significa ignorância. Obviamente, o Estado apresenta-se laico, mas ninguém pode negar a influência do pensamento judaico-cristão na formação do Direito: impossível não considerar a relevância do cristianismo no reconhecimento dos direitos individuais; e

VI Filosofia contemporânea com uma ideia permanente de desconstrução de conceitos: o pós-modernismo tornou-se negação às ideias iluministas - visão esta que custa caro para a sociedade atual.

Qual caminho deve seguir este jovem profissional do Direito, em particular, aquele que se encantou com o Direito e o Processo Penal?

Primeiro, ter a convicção de que o indivíduo deve perseguir valores humanos, reconhecer que há conflitos de valores e respeitar valores diferentes aos seus. Esses valores são objetivos, não infinitos e são parte da essência da humanidade. Não se pode hesitar quanto à importância dos valores para a sociedade, para seu modo pessoal de se conduzir e para que, como profissional do Direito, compreenda os fatos e os comportamentos.

Segundo, conservar a noção de que o constitucionalismo assentou princípios e valores que precisam ser utilizados para interpretar e aplicar o Direito. Quer dizer, veja a Constituição como objeto para facilitar o trabalho.

Aqui, tomo a liberdade de indicar método singelo de como aprender a usar a Lei Maior:

1. Conheça o instrumento do ofício, para utilizá-lo. Dedique tempo para ler e reler os direitos e as garantias, previstos na Constituição.

2. Pense em como compreender esses valores jurídicos: introspecte os valores individuais e reflita sobre o texto constitucional. Siga o método dos antigos juristas, use o texto e a testa.  Exemplo: O que é igualdade? O que é igualdade jurídica? O que isso importa quando estou diante de um caso de racismo? Como demonstro esse raciocínio?

3. Depois, encontre a origem e a razão para que determinado direito, ou garantia tenha sido reconhecido. Não tenha pressa: vá um a um. Leia, por exemplo, a beleza da origem do devido processo legal (due process of law) na Magna Carta (1215), obtido graças à pressão dos nobres sobre o Rei Joao sem Terra.  Embrenhe-se nas discussões da origem do habeas corpus no direito brasileiro: a importância de Rui Barbosa na compreensão do instituto, a contar da experiência dos países da common law.

4. Entenda que princípios constitucionais não se revelam iguais: uns pesam – importam mais – do que os outros;

5. Pergunte a si mesmo quais valores têm mais importância na Constituição: o profissional do Direito necessita saber, por exemplo, que a ordem dos valores no artigo 5º é relevante, muitas vezes, na interpretação jurídica.

6. Compare valores e se pergunte, diante de notícias de jornal, por exemplo, qual valor prepondera do ponto de vista jurídico – a honra ou liberdade de expressão? Por quê? Atenção: ninguém quer sua opinião (“eu acho”), você deve construir raciocínios formais, com a seriedade de quem resolve problemas matemáticos, ou lógicos. Treine isso, porque, depois de se convencer, tem de persuadir os outros – os antigos chamavam isso de retórica, técnica que não se confunde com a mera eloquência.

O resultado desse método acima proposto exibe-se muito melhor do que decorar frases feitas, memorizar expressões em língua estrangeira, declamar ementas de julgado, parafrasear autores da moda, ou repetir doutrinadores, nacionais ou estrangeiros, para embasar obviedades.

A cultura vem com o tempo e é natural ver-se influenciado por pensadores a contar da leitura de bons livros. Procure os clássicos, peça bibliografias, encontre o autor cujo texto lhe agrada. Não sucumba ao erro de achar que todo jurista estrangeiro pensa certo. Faça a crítica, porém, antes busque entender em que contexto histórico e social a obra jurídica foi elaborada. 

Em conclusão, cultive o interesse de pensar, ou mesmo repensar os valores jurídicos, de modo contemporâneo ao tempo e à sociedade. A reflexão axiológica pode ser feita, com frequência, quando se examinam situações que nos são trazidas pelo cinema, pela literatura, pela filosofia, pelo pensamento econômico, pela arte, dentre outros. Portanto, a análise de valores constitucionais, ou bens jurídicos, não se ostenta estática, ao contrário, se constitui processo dinâmico.

A proposta de o profissional do Direito dedicar-se a esse exercício intelectual contém o objetivo prático de convidá-lo a empregar o conhecimento quanto à Constituição, para encontrar a solução de casos concretos.

Veremos, de maneira pragmática, como fazê-lo nos próximos artigos.

_________

*Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo é advogado. Mestre e doutor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-doutor no Ius Gentium Conimbrigae (Universidade de Coimbra). Sócio do escritório Moraes Pitombo Advogados.

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