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Decisão judicial e leitos de UTI

Como é sabido pelos noticiários, há filas de espera aguardando tais vagas. Os hospitais, nos moldes de uma escolha salomônica, desenvolveram protocolos com base em critérios técnicos dos pacientes, observando rigorosamente as regras de igualdade.

2/8/2020

Com o aumento cada vez mais significativo de pessoas contaminadas pelo coronavírus em diversas regiões do país, as instituições de saúde recebem e alojam pacientes que ocupam a quase totalidade das vagas, senão a totalidade, tanto as reservadas para internações como as de Unidades de Terapia Intensiva. Tamanha é a pressão que os médicos responsáveis, muitas vezes trabalhando além do esforço físico rotineiro, terão que escolher qual o paciente, dentre aqueles que se encontram em estado grave, será o escolhido para atendimento na UTI, que oferece apoio com suporte em respiradores mecânicos e outros recursos apropriados.

Como é sabido pelos noticiários, há filas de espera aguardando tais vagas. Os hospitais, nos moldes de uma escolha salomônica, desenvolveram protocolos com base em critérios técnicos dos pacientes, observando rigorosamente as regras de igualdade. Nesta conceituação não se deve apontar o desigual, que pode acarretar grandes problemas sociais negativos, mas sim, dentre os iguais, o que atende mais de perto o critério da continuidade da vida, sem diferença social, econômica ou de faixa etária.

Mas é de se atentar que, em alguns casos, o representante legal do paciente que se encontra internado aguardando vaga em UTI aciona o órgão jurisdicional pleiteando tutela provisória de emergência em caráter antecipatório para que seja feita a transferência do paciente para o leito pretendido. Se a justiça acatar o pleito e deferir a tutela, o paciente, que juntamente com vários outros aguardava sua vez para ser promovido à UTI, com toda certeza está sendo beneficiado em detrimento dos demais concorrentes.

A decisão judicial é dotada de força cogente e seu descumprimento acarreta consequências administrativas, cíveis e até criminais. Não se discute, cumpre-se, como diz o adágio popular. E a justiça, quando analisou o pedido, agiu acobertada por documentos médicos que davam conta da precariedade da saúde do paciente, exigindo, de imediato, sua transferência para o leito de UTI. Juridicamente, portanto, correta a decisão. O Judiciário, em razão do princípio da inafastabilidade da apreciação judicial previsto no artigo 5º, XXXV, da Lei Maior, passa a ser o catalisador das pretensões relacionadas com o direito à saúde dos cidadãos e o responsável para dirimir os conflitos existentes entre eles e os representantes públicos das três esferas.

Ocorre que, por outra banda, referida decisão, confrontada com a realidade e rotina hospitalar, traz evidente quebra dos princípios da isonomia e da equidade. Isto porque os pacientes que aguardam vaga na UTI encontram-se pareados por um igualitarismo cego e o critério diferenciador entre eles deve ser apontado pela equipe médica, conhecedora que é da comorbidade e vulnerabilidade de cada um, em favor daquele que, no momento da abertura da vaga, necessitava de cuidados mais intensivos.

A decisão judicial, embora construída com base em suporte probatório robusto, esbarra na angustiante realidade hospitalar e, prevalecendo, estará promovendo o privilégio a uma pessoa em detrimento das demais portadoras de idêntico grau de risco. O direito à saúde é igualitário para a formação do bem-estar social e cabe ao Estado, de forma obrigatória na sua função de provedor, aparelhar as condições materiais para que a pessoa possa receber o atendimento a que faz jus. Se uma delas, na mesma relação linear de igualdade, se antecipa e consegue sua pretensão em avançar para o leito de UTI, fica evidenciado o individualismo, em razão da própria omissão estatal.

Nesta linha de pensamento, interessante decisão foi proferida pelo Juiz Federal substituto, da Seção Judiciária do Pará, Henrique Dantas da Cruz, que negou pedido de transferência de paciente com sintomas graves de covid-19 para leito de UTI. Assim concluiu o magistrado: "Deixo claro que não se está relativizando a gravidade da situação, nem menosprezando a dor de quem quer que seja. A decisão é, em suma, no sentido de que, conforme a situação fática do caso concreto, a parte autora não tem direito individual de retirar um pedaço do orçamento da saúde para si".1

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, membro da Rede Bioética Brasil, advogado.

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