No início da pandemia do novo coronavírus, quando ainda não se podia prever quais as consequências sociais e econômicas das medidas de isolamento indicadas para se conter a disseminação da covid-19, pareceu bastante razoável a edição de uma lei que estabelecesse regras emergenciais e de natureza transitória, destinadas a trazer um mínimo de segurança jurídica.
Não se pode negar a importância de se perseguir a segurança jurídica especialmente em um contexto caracterizado pela insegurança material. Assim, era prudente estabelecer regras que dispusessem acerca da revisão dos contratos, da suspensão dos prazos de prescrição e decadência, da possibilidade de se realizar assembleias e reuniões virtuais, dos poderes conferidos aos síndicos, dentre as demais questões que foram inseridas no projeto de lei 1.179/20.
No entanto, a lei demorou tanto tempo para ser aprovada, e tem tantos vetos, que acabou perdendo muito da sua importância, esvaziando o seu propósito fundamental de estabilizar as relações jurídicas e os conflitos sociais, ainda que pairasse certa controvérsia em algumas das suas disposições. Reduzida a poucos artigos, terá sua vigência limitada a pouco mais de quatro meses, à exceção daquelas hipóteses em que o próprio legislador previu a possibilidade de sua manutenção em vigor, como no art. 14 da lei 14.010/20, o qual prevê expressamente que a regra nele disposta perdurará até 30 de outubro de 2020 ou enquanto perdurarem os efeitos do estado de calamidade pública decretado pelo decreto legislativo 6/20, cujo prazo de vigência é 31 de dezembro de 2020.
De toda forma, por mais que ela tenha perdido parte de sua relevância, alguns aspectos ainda merecem um estudo mais aprofundado, e um desses aspectos é justamente o que trata da prescrição e da decadência.
Em seu art. 3º, a lei 14.010/20 estabelece que os prazos prescricionais são considerados impedidos ou suspensos a partir da entrada em vigor da lei até a data de 30 de outubro de 2020. E o parágrafo segundo dispõe que essa mesma regra se aplica à decadência, seguindo a mesma orientação do art. 207 do Código Civil.
Em um primeiro momento, esse dispositivo não apresenta maior dificuldade para ser compreendido. Afinal, os prazos prescricionais e decadenciais estariam, por assim dizer, paralisados entre 12 de junho e 30 de outubro de 2020, de modo a não prosseguirem e nem iniciarem durante esse período.
Assim, se o prazo já estivesse em curso quando da entrada em vigor da lei, a contagem ficará suspensa até o dia 30 de outubro, quando, então, voltará a fluir. Uma providência muito razoável. Do mesmo modo, se ainda não tivesse se iniciado o prazo prescricional ou decadencial quando do início da vigência do RJET – como foi apelidada a nova lei -, este também só irá se iniciar em 1º de novembro de 2020. Imagine-se, por exemplo, uma lesão sofrida por um consumidor em razão do defeito de um produto adquirido durante a pandemia, o prazo decadencial para reclamar o vício só se iniciará após o término da vigência da lei 14.010/20.
Em um contexto em que várias cidades determinaram o encerramento das atividades não essenciais, em que em outras tantas se decretou o lockdown, em que os fóruns ficaram fechados, deixando inacessíveis os processos físicos, havendo certa dificuldade, e até mesmo impossibilidade, de se obter documentos e de se realizar diligências, a suspensão e o impedimento dos prazos permite que a parte não seja prejudicada no exercício de seus direitos em razão de uma possível continuidade da fluência daqueles, caso não houvesse a suspensão ou impedimento do seu curso.
Mas existe ainda outro aspecto a ser analisado: qual é o alcance da incidência dessa regra? A quais prazos ela se aplica? Em outras palavras: quais relações jurídicas serão atingidas pela suspensão e impedimento dos prazos prescricionais e decadenciais durante o dramático período da pandemia?
O art. 1º estabelece que a lei 14.010/20 traz normas transitórias de direito privado. Então, poderíamos presumir que apenas as relações de direito privado seriam destinatárias do RJET. Mas é justamente aí que começa o problema.
A distinção entre direito público e direito privado, muito embora milenar, é essencialmente teórica. É muito mais ligada à forma de se conceber o direito e os seus ramos do que uma questão de dogmática jurídica. E nós sabemos: os limites entre direito público e privado são tênues.1 Eles se interpenetram, se sobrepõem, a ponto de muitos autores, hoje, rejeitarem a própria dicotomia. E mesmo aqueles autores que a consideram necessária, como Norberto Bobbio, por exemplo, reconhecem a coexistência de dois fenômenos opostos e complementares: a privatização da esfera pública e a publicização da esfera privada, com a consequente aplicação de princípios, regras e normas do direito público no direito privado e vice-versa2.
Então, como se resolve essa questão? Quais serão os prazos prescricionais e decadenciais suspensos ou impedidos em virtude da lei? Quais seriam as relações jurídicas de direito privado que sofreriam a incidência da lei?
Como se sabe, não é da tradição de nosso direito positivo classificar as relações jurídicas em relações de direito público e em relações de direito privado. Até encontramos de forma esparsa, ao longo de textos legais, a referência ao direito público. É o que se dá na Lei de Liberdade Econômica (art. 3º, inciso X) e na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (art. 26). Mas não existe, positivada, a definição legal de direito público e de direito privado. Esta fica adstrita, portanto, ao âmbito da doutrina e da construção da jurisprudência.
Assim, a utilização de tais expressões traz mais incertezas do que seria necessário, especialmente se considerarmos que o RJET veio com o objetivo de trazer segurança jurídica.
Para solucionar essa questão, podemos começar, por exemplo, pela análise da própria lei 14.010/20 e do projeto que lhe deu origem, o projeto de lei 1.179/20. Se partirmos do princípio de que as normas ali inseridas constituiriam um regime transitório de direito privado, podemos concluir, sem maior dificuldade, que tais normas integrariam o corpus do direito privado.
Assim, o direito contratual, o direito do consumidor, o direito das locações prediais urbanas, o direito agrário, o direito societário, o direito concorrencial e o direito de família e das sucessões se enquadrariam nas relações de direito privado.
Até aí não se tem maiores dificuldades; todos esses ramos tradicionalmente são incluídos no bojo das relações de direito privado, à exceção do direito concorrencial. De todo modo, se a lei 14.010/20 expressamente o inclui no regime jurídico de direito privado, não há como se negar que os prazos prescricionais e decadenciais do direito da concorrência ficarão suspensos ou impedidos até o dia 30 de outubro de 2020.
Mas e as demais relações privadas não expressamente mencionadas no RJET? O prazo também seria suspenso? Vamos pegar, por exemplo, o direito de propriedade intelectual? Tradicionalmente ele se enquadra no campo das relações privadas, mas não foi mencionado pelo RJET.
Podemos fazer a mesma indagação com relação ao direito do trabalho. Qual o locus do direito do trabalho? Seria ele um ramo do direito público ou do direito privado? Também não foi mencionado no RJET e ainda pairam dúvidas sobre sua exata topografia no universo jurídico.
E a mesma discussão surge naquelas relações em que o estado integra um dos polos obrigacionais. Quando o Estado aluga um imóvel pertencente a um particular, aquela é uma relação de direito privado? Naqueles casos em que o estado se despe de seu poder de império, as relações continuam sendo públicas ou são tratadas como relações de direito privado?
Já se verifica que o RJET não é suficiente para solucionar um problema que decorre dele mesmo: qual o âmbito de incidência de seu art. 1º?
Para se oferecer uma solução, primeiramente, devemos observar que não existe uma disciplina da prescrição própria do direito público. Não há, por exemplo, no direito tributário ou no direito administrativo, dois ramos do direito público por excelência, regulamentação da prescrição tal como se vê na Parte Geral do Código Civil.
A rigor, sempre se entendeu que a Parte Geral do Código Civil não se aplica exclusivamente às relações civis. Pelo contrário, os institutos da parte geral, como personalidade, capacidade, prescrição, ato ilícito, negócio jurídico, classificação dos bens, são comuns a todos os ramos do direito. Veja-se, exemplificativamente, o disposto no art. 110 do CTN, segundo o qual legislação tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos de direito privado. É justamente por isso que, no direito tributário e administrativo, a regulamentação da prescrição decorre das regras constantes do Código Civil, salvo naquelas hipóteses em que exista lei que disponha expressamente em sentido contrário.
A jurisprudência do STJ, por exemplo, é pacífica ao entender que o prazo prescricional para se propor a ação de retrocessão é de 10 anos, valendo-se, para tanto, dos prazos prescricionais previstos no Código Civil. E o mesmo Tribunal igualmente se utiliza daquele prazo do Código Civil para estabelecer que já se encontra fulminada a pretensão de indenização na desapropriação indireta. E, no direito previdenciário, também se considera que a prescrição não corre contra o menor, tendo por base legal justamente o Código Civil. Vale dizer: o estatuto jurídico da prescrição está na Parte Geral do Código Civil, que será utilizado quer se trate de relação de direito público, quer se trate de relação direito privado.
A exceção virá apenas naqueles casos em que exista lei que disponha em sentido contrário. É por isso que o mesmo STJ pacificou o entendimento de que o prazo de cinco anos do decreto 20.910/32, que disciplina a prescrição nas ações envolvendo a fazenda pública, deve ser adotado quando se trata de responsabilidade extracontratual do Estado. Rejeitou-se o prazo de três anos do Código Civil com base no princípio da especialidade.
Só que o decreto 20.910/32 não exaure as hipóteses de impedimento, suspensão e interrupção do prazo prescricional e decadencial, que continuam reguladas pelo Código Civil. Então, podemos verificar que as relações de direito público têm seu prazo prescricional e decadencial disciplinadas pelo decreto 20.910/32 e pelo Código Civil.
Isso afasta a ideia de que uma norma de direito privado não pode disciplinar a prescrição das relações de direito público. E afasta a ideia exatamente porque a prescrição das relações de direito público já é parcialmente disciplinada pelo Código Civil, de modo que o Código Civil não é apenas uma lei regulatória das relações de direito privado, ao menos no que toca aos institutos de sua Parte Geral, a qual se deduz ser, portanto, uma parte geral de todo o Direito.
Assim, podemos dizer que, à semelhança do que ocorre com o Código Civil no que diz respeito às suas disposições gerais, as normas trazidas pelo RJET aplicam-se não apenas às relações de direito privado, mas a toda e qualquer relação, independentemente de sua natureza, na medida em que visa estabelecer regras para a estabilização e segurança das relações jurídicas.
Quer se trate de uma relação privada já mencionada expressamente no RJET, quer se trate de uma relação privada não mencionada no RJET, quer se trate de uma relação cuja natureza seja controvertida, quer se trate de uma relação em que o Estado se põe no mesmo patamar que o particular, quer se trate de uma relação tipicamente considerada como de direito público; em todos esses casos, a solução será a mesma: os prazos prescricionais e decadenciais estão suspensos e impedidos de transcorrer até 30 de outubro de 2020.
Aplicamos aqui duas regras antigas: Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito) e Ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir).
A pandemia – e as dificuldades dela decorrentes – justificam a suspensão e o impedimento do transcurso dos prazos decadenciais e prescricionais em todas as relações jurídicas, sejam elas públicas ou privadas, a menos que se acredite que as dificuldades impostas aos particulares não alcançam o Poder Público, o que, à toda evidência, seria uma crença tão infantil quanto à da fada do dente. Não há espaço para elucubrações lúdicas nesta seara.
Conclui-se, assim, que a dificuldade para exercer direitos, até mesmo os mais básicos, assim como para o exercício de pretensões, são mais do que suficientes para que se entenda que o art. 1º da lei 14.010/20 instituiu uma regra geral, aplicável a todas as relações jurídicas, estabelecendo um período no qual haverá a suspensão e o impedimento dos prazos prescricionais e decadenciais para o exercício de direitos e pretensões.
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1 Sobre o tema ver, dentre outros, BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 8. ed. São Paulo: 2019, p. 72.
2 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: Para uma teoria geral da política. 14. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 13-32.
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