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A recusa terapêutica do paciente diagnosticado com covid-19: Há limites ao exercício de sua autonomia?

A primeira provocação que fazemos é: Por se tratar de doença infectocontagiosa, o paciente poderia ser obrigado pelo médico, serviço de saúde e/ou estado a se submeter à terapia. A segunda é: O médico poderia se valer da objeção de consciência para limitar a vontade do paciente nesta hipótese?

29/7/2020

O novo coronavírus catalisou um celeiro de controvérsias de ordens ética e jurídica nos ambientes de saúde. Claro que as dissidências sempre existiram, mas a pandemia as deixaram mais abertas ao enfrentamento crítico, o que é muito positivo. Assuntos como a autonomia médica, limites aos atendimentos por telemedicina, tomada de decisões limítrofes e o direito do paciente à recusa terapêutica são alguns exemplos de que estamos caminhando -sem tantos pudores- à ampliação do debate.

Neste ensaio, analisaremos a dimensão da autonomia do paciente com covid-19, especialmente quanto ao seu exercício para consentir ou recusar o tratamento médico proposto. E a primeira provocação que fazemos é: Por se tratar de doença infectocontagiosa, o paciente poderia ser obrigado pelo médico, serviço de saúde e/ou estado a se submeter à terapia. A segunda é: O médico poderia se valer da objeção de consciência para limitar a vontade do paciente nesta hipótese?

Antes de tudo, calha anotarmos que a autonomia é um direito de estatura constitucional, proveniente da liberdade e dignidade da pessoa humana, um dos valores fundantes do estado democrático de direito. O indivíduo livre é aquele que se autogoverna, sendo vedado ao estado ou quem quer que seja, obstar o exercício de suas escolhas políticas, religiosas, de opinião, de tomadas de decisões negociais e existenciais, a exemplo das questões afetas ao seu próprio corpo e saúde.

A sujeição ou não a um determinado tratamento (clínico ou cirúrgico) limita-se à esfera de poder do paciente ou de seu representante legal. Aliás, vale sempre invocar o passado para entendermos que os direitos fundamentais e da personalidade hoje estatuídos tiveram como importante marcador os ataques inconcebíveis às integridades corporal e psíquica das vítimas do regime Nazista, feitos no âmbito de pesquisas clínicas, a pretexto de que seria para o bem da humanidade e do progresso cientifico.

O artigo 15 do Código Civil Brasileiro, inspirado na gênese constitucional e em tratados internacionais, regulamentou a autodeterminação do paciente, especificamente quanto ao seu direito de recusa terapêutica. Prescreve a norma que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.” Outras legislações extravagantes, também tratam de forma semelhante do tema, garantindo após informação adequada, o direto do paciente em consentir ou recusar de forma livre, voluntária e esclarecida, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados.

Com a mesma vertente, o Código de Ética Médica, justamente para salvaguardar a autonomia do paciente, contém no seu bojo vários dispositivos deontológicos, no sentido de vedar ao médico à prática de ações desrespeitosas ao consentimento livre e esclarecido. O artigo 31 estabelece, em outras palavras, que o médico deve garantir ao paciente ou a seu representante legal, o direito de “decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.”

Cumpre observar que, por ser mais conformado aos princípios da carta fundante, entendemos que a melhor interpretação a ser extraída da letra do art. 31 é a de que autonomia do paciente seja respeitada mesmo em situações de iminente perigo de morte. No entanto, o profissional deve avaliar com cuidado o conteúdo e as condições da recusa de seu assistido. Apreciar, por exemplo, o tempo da subscrição do documento, o discernimento do paciente à época da manifestação, e outros pormenores que eventualmente possam deslegitimá-la. Essencial que o médico conte com o suporte do Comitê de Bioética da Instituição (caso haja) ou de uma equipe que não esteja atuando diretamente com o caso clínico em questão para evitar risco de conflito de interesse ou possível ausência de isenção. De mais a mais, atender o desejo do paciente (recusa terapêutica) não significa desampará-lo, pois serão ofertadas estratégias de cuidado, para que sua dignidade seja ao máximo preservada.

O tema da recusa terapêutica é enfrentando de forma expressa na resolução CFM 2.239. O seu artigo primeiro assinala que deve o médico acatar a recusa terapêutica do paciente, desde que informe a este os riscos e consequências previsíveis de sua decisão. O art. 2º preceitua que o direito à recusa deve obedecer aos seguintes critérios: tratamento eletivo, paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente no momento da decisão. Por sua vez, o art. 11 preconiza que “em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo de morte, o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica”, que, pela interpretação literal, não se verifica proporcionalidade do ato, o que, por si só, abre a possibilidade de adoção de tratamentos excessivos e desprovidos de adequação que podem causar maior sofrimento e deixar que o paciente experimente situação degradante. Isto é, a aludida resolução, em certos aspectos, pode ceifar o direito do paciente à sua plena autodeterminação, de modo que, conforme já defendido, o risco de morte, por si só, não pode desatender à sua decisão de recusa tomada de forma consciente, livre e esclarecida.

Já em caso de risco relevante à saúde e em se tratando de paciente menor de idade ou adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, apregoa o art. 3º da precitada resolução, que o médico não deve aceitar a recusa, ainda que o paciente esteja representado ou assistido por terceiros.

Contudo, mais uma vez, o CFM desconsiderou a possibilidade da manifestação prévia do paciente contra a intervenção, quando tinha condições de se expressar autonomamente. Por isso, em caso de omissão, a nossa inteligência é de que a redação seja interpretada no melhor interesse do paciente, aqui representado pelo acolhimento de sua vontade de não passar pela intervenção, em se considerando as ponderações circunscritas de cada caso concreto, e um diálogo prévio sustentado em escuta ativa ao paciente.

Prosseguindo, a resolução referida, em seu artigo 5º, § 1º, prescreve que o médico não deve aceitar a recusa terapêutica quando a mesma colocar em risco a saúde de terceiros (inciso I) ou em caso de recusa de tratamento de doença transmissível ou de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação (inciso II). A Resolução em tela entende que tais condições caracterizam abuso de direito.

Feitos esses recortes normativos - necessários para que façamos às subsunções pertinentes ao tema proposto - voltemos às indagações iniciais. O paciente lúcido, com resultado positivo para Sars-Cov-2, poderia incorrer em abuso de direito ao se negar a passar pelo tratamento, considerando se tratar de doença apta a contaminar terceiros? O Estado poderia obrigar o paciente a se submeter ao tratamento ainda sem evidência científica comprovada pelo atual estado da ciência? E o médico, poderia se valer da objeção de consciência para impor ao paciente determinado tratamento sem amplas informações e alinhamento com a melhor evidência científica e eficácia?

O paciente com doença infectocontagiosa que se recusa a tratamento considerado eficaz cientificamente, em tese, estaria agindo ilicitamente, de acordo com a previsão do Art. 268, do Código Penal, em virtude do extrapolamento do seu direito à liberdade (abuso de direito) por colocar em ameaça bens jurídicos de terceiros e da coletividade, como a vida e a saúde, o que também se alinha com a conjugação dos incisos I e II, § 1º , do artigo 5º, da resolução 2.239 do CFM.

Desta feita, pessoas com determinadas patologias contagiosas, em uma primeira análise, e de acordo com o entendimento de alguns julgados, devem ser submetidas ao tratamento, para proteção das pessoas de seu convívio e de um conjunto de indivíduos Assim, a autonomia do paciente poderia ser mitigada em nome do interesse coletivo, notadamente porque existem terapias específicas. Daí, pela construção normativa e jurisprudencial, a depender da casuística, poder-se-á admitir o tratamento compulsório, o que não significa dizer que o médico e/ou o Estado conduzirá coercitivamente o paciente. Em casos assim, é de bom alvitre, antes de tudo, a busca pelo diálogo, deixando em último (e extremo caso) a tutela do Poder Judiciário, para evitar a configuração de danosas repercussões futuras.

Então, embora seja possível o tratamento compulsório em alguns concretos, temos que em pacientes com covid-19, essa possibilidade, por enquanto, não tem supedâneo jurídico, haja vista não existir terapia eficaz para a cura desta enfermidade. A propósito, o parágrafo primeiro do art. 3º da lei 13.979/20 (que dispõe sobre as medidas para enfrentamento do novo Coronavírus), estabelece que medidas coercitivas, como o tratamento compulsório, apenas poderão ser adotadas “com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.”.

Em palavras outras, é crível que o paciente com o novo coronavírus recuse tratamentos sem evidência cientifica e ainda considerados experimentais, sobretudo quando as drogas a serem ministradas apresentem potencial risco de graves eventos adversos. Por isso, prevalece a autonomia decisória do paciente, que é uma das maiores expressões da liberdade humana, e pelo médico a aplicação do princípio hipocrático primum non nocere.

Registre-se, ainda, que esse direito à recusa aos tratamentos da covid-19 deve ser estendido ao paciente inconsciente (que assim se manifestou quando tinha discernimento). Dessarte, havendo recusa expressa, e cumpridos os seus aspectos formais e materiais de validade, deve o médico acatá-la.

Por esse motivo, também fica o médico limitado de invocar a sua autonomia técnica ou mesmo a objeção de consciência relacionada à recusa da terapia proposta, ou mesmo adoção de um protocolo que desconsidere o caso concreto e a individualidade do paciente e vontade deste, devendo ser propiciada a manutenção da assistência com algum suporte clínico de alívio, a depender da condição clínica que se encontre.

Isso porque, o paciente deve ser o centro do cuidado e jamais pode a possibilidade da adoção da objeção de consciência ser permissivo para que o médico dite as próprias convicções ideológicas e, com base nisso, imponha as suas decisões. O ideal, portanto, é que, diante da recusa, busquem-se alternativas às estratégias terapêuticas, como medida de não confrontar ou desrespeitar as convicções e valores do paciente, a fim de que haja o equilíbrio esperado na relação e que, ao final, as decisões sejam verdadeiramente compartilhadas.

Por último, e sem a pretensão de esgotarmos o tema, é importante frisar que a liberdade de recusa a tratamentos médicos não consolidados pela ciência, para critério de saúde pública, não confere ao paciente diagnosticado com covid-19 o direito de infringir medidas não farmacológicas, como as regras de isolamento domiciliar, bem como outras normas de condutas sanitárias impostas, ainda que estas mitiguem a sua liberdade de locomoção. Neste cenário, prevalece o dever de cumpri-las, por se fazer imperiosa a necessidade de contenção de disseminação do vírus e o risco de contaminação a terceiros, que resultará, em amplo espectro, na proteção da saúde da coletividade.

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*Giovanna Trad é advogada especialista em Direito Médico e da Saúde. Presidente da Comissão de Biodireito da OAB/MS - Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Mato Grosso do Sul. Sócia fundadora do escritório Trad & Cavalcanti Advogados.



*Lívia Callegari é advogada especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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