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Montaigne e o conselho de administração na sociedade limitada

Diferentemente das sociedades anônimas, a sociedade limitada é marcada por uma flexível estrutura administrativa.

28/7/2020

"As mais belas almas são aquelas que têm mais variedade e flexibilidade" lecionou Michel de Montaigne, filósofo e jurista do século XVI. Apesar de o autor francês ter dedicado a maior parte de seus estudos ao tópico da consistência do homem e suas ações, é possível enxergar certo sentido em sua fala, ainda hoje, ao pensar no manejo dos diferentes tipos societários previstos na legislação brasileira.

No Brasil, a sociedade limitada foi incorporada ao arcabouço jurídico por meio do decreto 3.708, de 10 de janeiro de 1919, com o objetivo de incentivar os pequenos e médios empreendedores que "queriam beneficiar-se, na exploração de atividade econômica, da limitação da responsabilidade típica das anônimas, mas sem atender às complexas formalidades destas, nem se sujeitar à prévia autorização governamental"1.

Nesse sentido, em função de sua estrutura organizacional mais simples, capaz de conferir uma maior flexibilidade aos seus integrantes no momento de dispor sobre os direitos e interesses relativos ao empreendimento a ser alcançado, a sociedade limitada passou a ser o tipo societário mais empregado no país. Isso se evidencia em diversos aspectos como, por exemplo, a faculdade de criar um sistema de deliberação por meio de assembleia ou simples reunião de sócios, a possibilidade de existência ou não de um Conselho Fiscal e, até mesmo, da repartição de competências administrativas entre pessoas da sociedade, tópico que será esmiuçado adiante. Cabe mencionar, também, a diferença nos custos de constituição e manutenção da sociedade limitada, quando comparados aos da sociedade anônima, tendo em vista, por exemplo, os requisitos mais rígidos e burocráticos para a constituição de uma companhia, bem como, quando aplicável, a obrigatoriedade de as companhias publicarem ordinariamente seus atos societários e demonstrações financeiras.

No entanto, apesar de ambos os tipos societários serem, em tese, marcados por estruturas diferentes e, sobretudo, estatutos jurídicos distintos, isto é, o Código Civil para a sociedade limitada, e a Lei das Sociedades por Ações ("LSA") para a sociedade anônima, destaca-se a possibilidade de aplicação supletiva da LSA às sociedades limitadas. Tal dinâmica está prevista no art. 1.053 do Código Civil Brasileiro2, determinando que, quando omisso o Código Civil, a disciplina supletiva poderá ser a da sociedade simples ou da sociedade anônima. Pela leitura da norma fica evidente que, para a aplicação supletiva da LSA, o contrato social da respectiva sociedade deverá conter cláusula expressa nesse sentido3.

Superado o acima, é importante mencionar que a incidência supletiva da LSA dependerá também da identificação da natureza contratual/dispositiva da questão objeto de discussão. Nesse sentido, entende-se, por exemplo, que, em matérias nas quais os sócios da limitada não podem tratar por manifestação de sua vontade, não poderão as disposições da LSA ser empregadas às sociedades limitadas, ainda que haja previsão da aplicação supletiva.

Para maior compreensão desse critério, Fábio Ulhoa Coelho traz o exemplo da sociedade limitada que deseja emitir debêntures para obtenção de recursos destinados ao desenvolvimento de sua atividade econômica4. Em um primeiro momento, se o único critério adotado fosse o da aplicabilidade da LSA nas hipóteses de omissão do Código Civil, desde que prevista a supletividade pelo contrato social, a sociedade limitada estaria autorizada a realizar o seu processo de autofinanciamento por meio da emissão de tais valores mobiliários. Contudo, levando em consideração que a aplicabilidade da LSA apenas poderá ocorrer nas matérias a respeito das quais podem os sócios contratar, a emissão de debêntures não seria viável. Isso se dá, pois o tópico acima está contemplado nos assuntos relativos à emissão de valores mobiliários, matéria típica da sociedade anônima e do mercado de capitais, portanto, incompatível com a sociedade limitada5. É preciso deixar claro, desse modo, que a aplicação da Lei das Sociedades por Ações é supletiva em relação ao disposto no Código Civil e não ao que consta do contrato social da sociedade.

Fixadas tais premissas, poderia a sociedade limitada prever em seu contrato social, por exemplo, a existência de um conselho de administração nos moldes do previsto na LSA e, portanto, sujeitar-se também às regras e determinações específicas da LSA aplicáveis a esse órgão deliberativo?

Diferentemente das sociedades anônimas, a sociedade limitada é marcada por uma flexível estrutura administrativa. Nesse sentido, apesar de muitas vezes ser administrada por um único órgão, conhecido como Diretoria, não há quaisquer impeditivos para previsão, no contrato social, de dois órgãos administrativos com competências distintas, facilitando a existência de um conselho de administração com competência deliberativa interna. Arnoldo Wald corrobora esse entendimento ao afirmar que o conselho de administração "(...) em nada contraria as normas societárias, apenas reforça a flexibilidade da estrutura das limitadas"6. Além disso, o Código Civil, em nenhuma ocasião, instituiu um conselho de administração obrigatório para a sociedade limitada, deixando a cargo dos sócios a decisão pela regência supletiva da LSA no que tange à matéria de administração.

Não obstante, para que se possa tratar da referida subsidiariedade da LSA nesse aspecto específico, é necessário, antes de mais nada, verificar as normas que delimitam as competências dos órgãos de administração na sociedade limitada e na sociedade anônima.

Ao observar o art. 139 da LSA7, bem como o art. 1.018 do Código Civil8, nota-se que os dispositivos legais vedam apenas a delegação de funções da administração para órgãos ou pessoas distintos. Nesse sentido, entende-se que os dispositivos em questão não ensejam dúvidas no que se refere, por exemplo, à possibilidade ou não de delegação das competências relacionadas à nomeação e destituição de administradores. Isso ocorre, pois, considerando que o próprio art. 1.071 do Código Civil9 confere aos sócios da limitada a competência para designar e destituir os administradores de sua empresa, há de se presumir, naturalmente, que estes teriam a faculdade de definir de que forma se daria esse processo, podendo, entre outras alternativas, criar um conselho de administração com poderes para, dentre outros, eleger e destituir diretores.  

A recente instrução normativa 81, de 10 de junho de 2020 do Departamento de Registro Empresarial e Integração ("DREI"), no próprio Manual de Registro de Sociedade Limitada do DREI reforça e valida a presunção acima, ao determinar, em seu item 5.3 que:

"(...) Para fins de registro na Junta Comercial, a regência supletiva:
II – presumir-se-á pela adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas, desde que compatível com a natureza da sociedade limitada, tais como:
(...)
c) Conselho de Administração"

Na mesma esteira, tanto a doutrina, mencionada anteriormente, quanto os órgãos reguladores vêm aceitando essa dinâmica. Deve-se citar, por exemplo, o entendimento das Juntas Comerciais que, apesar de formularem eventuais exigências com relação à documentação dos membros eleitos para o conselho de administração, acabam por acolher o órgão colegiado na sociedade limitada.

Nesse sentido, a Junta Comercial do Estado de Minas Gerais estabelece, em seus Entendimentos em matéria de Registro Mercantil, Direito Empresarial e Registrário, número de ordem E026, o seguinte:

"A sociedade limitada poderá ser administrada por uma diretoria e/ou Conselho de Administração, desde que previsto no contrato social a aplicação supletiva da Lei 6.404/76. As regras de funcionamento, competência e composição destes órgãos se regerão pela citada lei"10.

Além disso, o já mencionado Manual de Registro da Sociedade Limitada do DREI, em seu item 1.2.13.5, dispõe que: 

"Conselho de Administração

Fica facultada a criação de Conselho de Administração na Sociedade Empresária Limitada, aplicando-se, por analogia, as regras previstas na lei 6.404/76, de 15 de dezembro de 1976.

Quando adotado o conselho de administração, o administrador poderá ser estrangeiro ou residente no exterior, devendo, contudo, apresentar procuração outorgando poderes específicos a residente no Brasil para receber citação judicial em seu nome (art. 146, § 2º, da lei 6.404/76, de 15 de dezembro de 1976)"11.

Se do ponto de vista estritamente legal e formal ainda há espaço para incertezas, no campo prático nota-se a existência de uma maior receptividade por parte dos órgãos responsáveis pela regulação do registro empresarial não somente como à possibilidade de implementação do conselho de administração nas sociedades limitadas, como também de suas competências próprias — tal como estabelecidas na LSA — guardadas as devidas restrições.

A flexibilidade das regras aplicáveis à sociedade limitada deve ser vista com bons olhos, uma vez que permite a capacidade de adequação de muitas empresas às suas necessidades práticas. O conselho de administração nas sociedades limitadas mais sofisticadas, por exemplo, se utilizado responsavelmente, pode representar um avanço significativo no quesito da governança corporativa, introduzindo, nesse tipo societário, uma "feição de profissionalismo da administração social"12.

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1 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Direito de Empresa. Ed. 18. São Paulo: Saraiva, 2014. Vol. 2, p. 396.

2 "Art. 1053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples. Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima."

3 Como se verá adiante, a instrução normativa 81, de 10 de junho de 2020 do Departamento de Registro Empresarial e Integração, determina que a aplicação supletiva da LSA poderá incidir nos casos em que se verifique a presença de institutos próprios da sociedade anônima. Assim sendo, conclui-se que, em tese, a presença de cláusula expressa prevendo a regência supletiva da LSA não seria imprescindível nos casos em que outros institutos típicos da sociedade anônima fossem previstos no contrato social. De todo modo, entendemos que, por uma questão de segurança jurídica, é importante a previsão de cláusula expressa nesse sentido para evitar quaisquer dúvidas ou questionamentos posteriores.

4 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Direito de Empresa. Ed. 18. São Paulo: Saraiva, 2014. Vol. 2, p. 398.

5 É preciso ressaltar que, especificamente em relação à emissão de debêntures por sociedades limitadas, um PL foi apresentado, em junho de 2020, ao Congresso Nacional, com o objetivo de ampliar os instrumentos de captação desse tipo societário, segundo a redação do projeto: "ainda mais em tempos de pandemia". Importante lembrar que o referido assunto chegou a ser contemplado pela MP 881/2019 (MP da Liberdade Econômica), mas não foi incluído no seu texto final, em 2019.

6 WALD, Arnoldo. Comentários ao Novo Código Civil – Livro II – vol. XIV: Do Direito da Empresa. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 404.

7 "Art. 139. As atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto."

8 "Art. 1.018. Ao administrador é vedado fazer-se substituir no exercício de suas funções, sendo-lhe facultado, nos limites de seus poderes, constituir mandatários da sociedade, especificados no instrumento os atos e operações que poderão praticar."

9 "Art. 1.071. Dependem da deliberação dos sócios, além de outras matérias indicadas na lei ou no contrato: III - a destituição dos administradores."

12 WALD, Arnoldo. Comentários ao Novo Código Civil – Livro II – vol. XIV: Do Direito da Empresa. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 404.

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*Fábio A. Figueira é sócio de Veirano Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ). 

*Daniel Rivera é advogado em Veirano Advogados. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Cursando atualmente o LL.M em Direito: Negócios na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RIO).

*Felipe Grillo é colaborador em Veirano Advogados. Cursando atualmente o bacharelado em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).

 

 
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