Migalhas de Peso

Crescem os riscos do tráfico humano

Dia nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas – 30 de julho

29/7/2020

O artigo 14 da lei 13.344 de 2016 instituiu a data de 30 de Julho como o “Dia Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”. Trata-se de um crime que tem crescido em nosso país, mas sua investigação é difícil, uma vez que as vítimas sentem medo de denunciar seu algoz.

O tráfico de pessoas é uma forma de violação dos direitos humanos, sendo um “negócio” ilícito altamente rentável, atrás apenas das drogas e armamentos ilegais. Esse fator de risco é associado a outro: as crises econômicas, como a criada pela pandemia de covid-19.

Entre as diversas nações que dividem responsabilidade quanto ao combate ao tráfico de seres humanos, o Brasil guarda uma triste posição como país de origem e trânsito de milhares de homens, mulheres e crianças que são traficados todos os anos. Se levarmos em conta o tráfico de pessoas em âmbito nacional, verificamos ainda a existência de um “mercado” local.

Pelo Protocolo de Palermo (2003), a ONU define tráfico de pessoas como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”.

Em 2003, os dados das Nações Unidas sobre esse tipo de crime já eram assustadores, registravam 20 mil casos de pessoas vítimas de tráfico humano, número que subiu para 25 mil em 2016. Nos anos de 2018 e 2019, 184 brasileiros foram vítimas de tráfico humano.

Somente no início do século XX foram criados dispositivos legais para combate ao tráfico humano, que era definido como captura de um indivíduo para vendê-lo ou trocá-lo por bens. A Convenção de Genebra ampliou os delitos e, em 1998, o Tribunal Penal Internacional passou a incluir escravidão sexual e prostituição forçada como crimes internacionais de guerra contra humanidade.

Com a promulgação dos artigos 13 e 16 da lei 13.344/16, o Código Penal Brasileiro foi acrescido pelo artigo 149-A, que estabeleceu a tipificação do crime de tráfico de pessoas. A conduta ilícita foi definida por oito verbos, elencados no artigo. O bem jurídico tutelado passou a ser a liberdade individual e a dignidade da pessoa humana. O sujeito ativo pode ser qualquer indivíduo, bem como o passivo, não existe nenhuma condição especial, ou pre-existente ou estabelecida. Configura-se o crime pelo dolo genérico e específico.

Vejamos como ficou a redação do artigo 149-A:

Tráfico de Pessoas

Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:

I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;

IV – adoção ilegal; ou

V – exploração sexual.

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”.

Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada. Não é possível a aplicação da lei 9.099/95, uma vez que não é infração de menor potencial ofensivo, nem é caso de suspensão condicional do processo. Em regra, a competência é da Justiça Estadual e o rito é o procedimento comum ordinário. Excepcionalmente, em certos crimes, como tráfico internacional de pessoas, a competência será da Justiça Federal, conforme previsto na nossa Carta Magna.

Nas situações elencadas no § 1º do artigo 149-A do Código Penal, prevê-se aumentos de pena da ordem de um terço até a metade, se o autor for funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, se o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência, se o agente se prevalece de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função e se a vítima for retirada do território nacional, nesta situação configura tráfico internacional de pessoas ou transnacional.

A título de esclarecimento, quando o artigo fala em criança refere-se à pessoa com idade inferior a doze anos, e adolescente é a pessoa com idade entre doze e dezoito anos, conforme artigo 2º da Lei nº 8.069/90 do ECA; já pessoa idosa é aquela com idade igual ou superior a 60 anos, artigo 1º da lei 10.741/03 do Estatuto do Idoso, e a pessoa com deficiência é aquela que apresenta qualquer forma de limitação, podendo ser física ou mental.

O § 2º da lei prevê a possibilidade da diminuição de pena quando o agente é primário e não integra organização criminosa; a redução poderá ser de um a dois terços. Nesse caso, para o agente ter sua pena reduzida, deverá preencher ambas as situações.

Um dos motivos da impunidade que cerca esse tipo de crime é que poucos países coletam e disseminam os dados. São menos de 100 países, principalmente na Ásia e África, o que dificulta condenar os traficantes.  O Brasil hoje tem uma consistente Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que prevê o uso de bancos de dados existentes na luta contra o tráfico de pessoas. O que pouca gente sabe é que esse tipo de crime pode ocorrer na casa do suspeito (20,2%), na casa da vítima (5,0%) e no local de trabalho (3,0%).

Além de ações da ONU e dos países, o combate ao tráfico de pessoas vem de todos os lados e a melhor arma é a prevenção. No Brasil, tramita o projeto de lei 521/20, que aumenta a pena para tráfico de pessoas em direção ao estrangeiro. A pena atual, segundo o Código Penal, é de 4 a 8 anos de reclusão e multa. Pelo novo projeto, a pena será aumentada de um terço até a metade, no caso de o tráfico ser cometido por estrangeiro que ingresse no país, com a finalidade de praticar esse crime.

Os principais alvos desse tipo de crime continuam a ser mulheres e meninas para exploração sexual ou trabalho forçado. Nas Américas, Europa, Leste da Ásia e Pacífico a exploração sexual prevalece, sendo elas forçadas a casamentos, criminalidade, prostituição, escravidão, produção de material pornográfico e remoção de órgãos, que são traficados no mercado do crime.

Também é necessário empreender esforços para conhecer melhor o inimigo: o último levantamento mostra, baseado em casos concretos de vítimas resgatadas, que o Brasil é uma das rotas de tráfico de pessoas, quer seja para o exterior, ou utilizando nosso país como passagem para outros ou internamente.

Destacamos também a exploração interna por grupos que cooptam jovens garotos do Pará, que terminam por prostituir-se como travestis em outros Estados, como Goiás e Tocantins. Trata-se de um submundo que não pode ter a sua realidade negligenciada.

Por fim, a ONU aponta que a diminuição da pobreza reflete na queda de vítimas potenciais dos traficantes, mas referenda que o devido aparato jurídico e estrutura investigativa e coercitiva completam o tripé que pode representar a derrocada do tráfico de seres humanos.

Os conflitos armados em várias regiões o mundo, onde não há o Estado de Direito, aumentam sensivelmente o risco do tráfico humano, especialmente na África, Oriente Médio, e Sudeste Asiático, com o fim de exploração e escravidão sexual. Crianças também são usadas no combate, em conflitos armados e no tráfico de drogas. Igualmente em áreas de deslocamento de pessoas (refugiados), os riscos de tráfico humano aumentam.

Queremos finalizar este artigo afirmando que a lei que criminaliza o tráfico de pessoas chegou em boa hora, com o objetivo de proteger a dignidade do indivíduo. Vale dizer que é inaceitável, em pleno século XXI, um ser humano ainda submeter o outro a tal barbaria.

_________

*Clarice Maria de Jesus D’Urso é bacharel em Direito com especialização em Direito Penal e Processo Penal. Conciliadora na área da família pela Escola Paulista da Magistratura do Estado de São Paulo. Membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas - ABMCJ.


*Umberto Luiz Borges D’Urso é advogado Criminal, mestre em Direito Político e Econômico. Pós-graduado “Lato Sensu” em Direito Penal, em Processo Penal e em Direito. Presidente do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo por quatro gestões. Advogado do escritório D'Urso e Borges Advogados Associados.

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