Valdete Severo é juíza, professora e doutora em Direito. Não tolera as afrontas à Constituição, perpetradas sistematicamente em atos governamentais. E tem coragem para denunciá-las publicamente. Por isso, está sendo processada. Mas tudo o que diz a juíza Valdete Severo é verdade.
Por que, então, suas palavras provocaram reação tão abrupta e contundente, com a abertura ex officio de procedimento no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?
A resposta óbvia é a de que a juíza Valdete denunciou o genocídio. Daí advém a consideração segundo a qual a juíza não estaria autorizada a fazê-lo, pela sua vinculação a uma função jurisdicional, de estrito cumprimento da legislação e não de conteúdo político. Deveria a magistrada estar limitada ao exercício dessa relevante missão estatal, mesmo que isso possa significar a garantia de privilégios aos poderosos em detrimentos dos vulneráveis. Mas ela não pensa e não age assim. Por que?
Talvez o seu pronunciamento tenha sido inspirado por uma declaração de ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que há poucos dias afirmou o mesmo. Que havia genocídio. Além disso, o ministro estendeu a responsabilidade pelo genocídio ao Exército, em consequência da ocupação de cargos civis por oficiais da ativa, sobretudo em áreas tradicionalmente técnicas, como o Ministério da Saúde.
É bem verdade que a juíza não se conteve à mera qualificação abstrata. Ela também perscrutou as causas do genocídio, talvez por ser também professora e pesquisadora, comprometida, pois, com o método científico. E teve o cuidado de não fazê-lo em suas sentenças, mas sim numa publicação de artigo, fundamentado e redigido em termos racionais e apropriados ao debate acadêmico.
A juíza verberou contra o genocídio porque essa é a precisa designação terminológica a definir uma política de extermínio de fração expressiva de um povo. Quando um governo manipula a população e usa mecanismos de Estado para induzir as pessoas à desinformação, à insensibilidade, ao ódio e à desumanização, temos o caminho aberto para a matriz do genocídio, que se chama necropolítica. No texto escrito pela juíza Valdete, esse conceito específico é explicado a partir da lição do filósofo e historiador camaronês Joseph-Achille Mbembe.1 Esse autor concebe a necropolítica como o uso do poder para a eliminação de culturas, corpos e existências e em cuja perpetração a morte tende a ser naturalizada e até mesmo fomentada. A noção de necropolítica nos faz compreender o propósito nefasto de afirmações chocantes, ditas em relação à emergência de saúde pública em que nos encontramos, tais como as de que todos morreremos um dia e a morte é assunto exclusivo de coveiros, recentemente feitas pelo presidente Jair Bolsonaro, em mais um de seus inflamados discursos.
Impressionada com a eliminação física de dezenas de milhares de pessoas, infectadas pela novo coronavírus, sem que houvesse uma ação coordenada do governo federal para mitigar os efeitos da pandemia em nosso país, a juíza Valdete insubordina-se contra a injustificável demora na aplicação dos recursos orçamentários disponíveis para o combate da doença. Clama pelo respeito à vida das pessoas e defende o direito de todos a “continuar vivendo”.
É preciso compreender que o genocídio é uma prática invariavelmente associada ao negacionismo e à perseguição daqueles que o denunciam. Todos sabem que um dia haverá um inevitável acerto de contas e que a história será implacável com os genocidas. Mas enquanto o poder estiver em suas mãos, parece predominar um estranho delírio, no qual tudo se considera normal.
Aos juízes é dado apreciar a validade jurídica das escolhas políticas e legislativas, não há dúvida. Observar a fidelidade ao modelo de eliminação de desigualdades preconizado pela Constituição deve ser um compromisso sólido dos magistrados. Pois bem, foi justamente isso que propôs juíza Valdete em seu artigo. Com absoluta responsabilidade intelectual e ética, a magistrada contesta com veemência o implemento atual de políticas genocidas, como forma de exortar seus pares e compatriotas a resistirem a partir de suas respectivas capacidades. Seu olhar arguto não poupa as graves privações de direitos humanos em marcha no país, não apenas com a brutal negação do programa constitucional, como também mediante o esvaziamento de instituições de Estado responsáveis pela adoção de políticas públicas essenciais.
Convém identificar que nisso ela reverbera preocupações e ácidas constatações de outros pensadores do direito brasileiro, como a professora Dayse Ventura, que acaba de publicar um ensaio no qual afirma que “há indícios significativos de que as autoridades brasileiras, entre eles o próprio presidente, sejam investigadas por genocídio”.2
A responsabilidade do governo federal é agravada pela escancarada sabotagem do presidente da República às políticas de preservação da saúde no contexto da disseminação da covid-19, com o potencial de ampliar o volume de adoecimentos e mortes. Outra grave conduta do chefe do governo federal tem sido a reiterada e temerária promoção do uso profilático de um medicamento contraindicado pelas organizações médicas habilitadas, não apenas por sua ineficácia, como também por seus efeitos colaterais.
Não há como negar que, em seu artigo, Valdete Severo pontifica em prol de uma legítima interpretação jurídica, razão pela qual não comete infração funcional alguma. Seu esforço consiste em analisar fenômenos sociais e a eles agregar uma percepção técnica de conteúdo refinado, haja ou não concordância com os seus termos. Diz ela: “o que hoje chamamos de necropolítica ou de política genocida é, portanto, o aprofundamento de algo que sempre esteve presente: a dominação, opressão e exploração. Agora, porém, o exercício da dominação não tem como efeito apenas permitir que alguns vivam o luxo construído a partir da miséria de muitos. Agora, a dominação é exercida para eliminar pessoas de modo sistemático.”3
Ao dizê-lo, a magistrada tão-somente expõe a nudez de um governo infame e a perversidade de um sistema econômico que dele se aproveita e nele se refestela, de modo impudico, chulo e promíscuo, ao custo de vidas humanas e da dignidade das pessoas. Ao contrário de ter cometido infração funcional, a juíza Valdete Severo nos traz a benfazeja esperança de que, na verdade, ainda há juízes e juízas em nossa maltratada Berlim!
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1 MBEMBE, Joseph-Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
2 Clique aqui.
3 SEVERO, Valdete. Por que é possível falar em política genocida no Brasil. In: clique aqui.
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