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Cai a MP 927. Como ficam as relações trabalhistas em tempos de pandemia?

Os sujeitos das relações trabalhistas, incluídos aqui empregados e empregadores, se veem obrigados a lidar com mais uma singularidade oriunda da pandemia do novo coronavírus: A caducidade da MP 927 de 2020.

27/7/2020

Uma importante medida oportunizada para as empresas1, com a finalidade de promover a manutenção dos empregos durante a crise caiu por terra; sim, empregadores não podem mais contar com a aplicabilidade da medida provisória 927 de 2020. Senão, vejamos.

Apenas para exemplificar alguns dos impactos advindos do fim da validade da referida MP, com a devida vênia, evocamos o seguinte dito popular: o que não tem remédio, remediado está. Isso significa que, não existe a possibilidade de reedição da mesma norma na sessão legislativa em curso, ou seja, em 2020, não importando quão caótica ainda esteja a situação econômica do país2.

Mencionamos também o fato de que todos os dispositivos que tinham sido alterados pela MP 927 estão automaticamente restabelecidos com a sua caducidade, isso desde o último domingo, dia 19 de julho de 2020.

Ocorre que, todas as hipóteses de flexibilização para adoção e aplicação de alterações e/ou efeitos no contrato de trabalho, previstas na medida provisória 927, de 22 de março de 2020, não mais podem ser utilizadas. Nesse ponto, destacamos duas soluções amplamente acionadas pelos empregadores durante a validade da MP: o teletrabalho e o banco de horas.

Com o restabelecimento daquilo que já era previsto pela CLT, a legalidade do teletrabalho passa a depender de acordo individual. Sendo assim, o modelo de trabalho remoto somente pode ser implementado se o empregado aceitar a sua manutenção ou se houver um acordo com o sindicato; sem falar de todas as outras peculiaridades previstas pelo Capítulo II-A da CLT, que trata dessa modalidade de trabalho.

No que tange ao uso de banco de horas, do mesmo modo, volta a ser admissível apenas aquilo disposto na CLT: a sua validade depende de acordo ou convenção coletiva de trabalho, com limitação de compensação de até um ano, ou via acerto individual, com contrapartida limitada a seis meses (art. 59, § 2º, CLT).

Além destas, outras opções tiveram sua funcionalidade restabelecida, por exemplo: a comunicação das férias individuais volta a exigir o cumprimento de 30 dias de antecedência ao início de gozo da benesse; o empregador não pode mais antecipar a concessão dos feriados não religiosos; os exames médicos ocupacionais voltam a ser exigidos nos prazos ordinários; e os auditores do trabalho deixam de agir exclusivamente de maneira educativa.

Válido ressaltar que, face à novel realidade (na verdade, face ao restabelecimento da única realidade) poderá o Congresso Nacional, dentro do prazo de 60 dias, a contar de 19/7/20, editar um decreto legislativo para regulamentar as relações jurídicas constituídas durante a vigência da MP.

Sobre esse ponto, não podemos olvidar que, todas as ações efetivadas pelos empregadores, nos termos da MP e durante a sua vigência, independente da edição do decreto por parte do Congresso, reputam-se válidas, em respeito ao regramento do ato jurídico perfeito3.

Nesse mesmo sentido, temos o disposto no § 11 do art. 62 da Constituição Federal, in verbis:

§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. (Grifamos)

Ou seja, se o empregador, por exemplo, tiver concedido férias antecipadas de 30 dias a determinado colaborador no dia 17 de julho de 2020, a referida medida não caducou em 19 de julho do mesmo mês, em detrimento da perda de eficácia da MP 927.

Mas, diante da queda do referido normativo, como ficam as negociações sindicais? De fato, as tratativas precisarão acontecer de forma presencial, com a aglomeração de pessoas? Do mesmo modo, como fica a situação dos treinamentos previstos em NR's? Não existe alternativa para esses casos?

Pensamos que sim. Em situações como essa que estamos enfrentando, todas as ferramentas legalmente admissíveis para a facilitação da preservação das relações trabalhistas, e mais, para resguardo da vida e bem-estar dos trabalhadores e para a manutenção da atividade empresarial precisam ser acionadas.

Deste modo, os princípios constitucionais se mostram fundamentais para essa questão, na medida em que eles têm a função de garantir a interpretação e a integração das normas, em observância à coerência do sistema jurídico.

Nada mais adequado, então, que nos valhamos, primordialmente, dos preceitos do princípio da dignidade da pessoa humana, aliado ao princípio da razoabilidade e da livre iniciativa.

Não seria razoável que os órgãos competentes, excepcionalmente, procedessem com a flexibilização legislativa nesse momento tão delicado, que impõe à saúde pública, à vida e ao bem-estar dos cidadãos tamanho perigo de perecimento? E o que dizer das empresas nesse momento? Dificultar o manejo das relações trabalhistas e da manutenção empresarial não seria ferir o princípio da livre iniciativa, que prega o livre exercício de qualquer atividade econômica e a liberdade de contrato?

Bem, sejamos razoáveis. Situações extremas exigem soluções extremas. A flexibilização para a realização das reuniões com sindicatos e para a efetivação dos treinamentos previstos em NR's4 não seria uma medida absurda e impalpável; se assim o fosse, não teria sido admitida durante a vigência da MP 927.

O que queremos dizer é que, em momentos como esse, o diálogo, a transigência e o bom senso devem prevalecer. Não seria ilícito, portanto, que sindicatos, empregados, empregadores e órgãos trabalhistas competentes, de comum acordo, mantivessem a admissibilidade da realização de determinadas atividades/obrigações por meio telepresencial5, enquanto durarem os efeitos da pandemia ou, pelo menos, durante o estado de calamidade, com longevidade prevista para 31 de dezembro de 20206.

Nesse diapasão, acionamos outro princípio constitucional: o da legalidade. De acordo com o art. 5º, inciso II da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Grifamos). Desse modo, se não há lei que proíba a realização das referidas reuniões e dos citados treinamentos na modalidade telepresencial, durante estado reconhecido de calamidade, não vislumbramos empecilho para a adoção de tal alternativa.

Em consonância com o acima disposto, precisamos ressaltar um fenômeno não tão novo, mas agora muito em voga, devido à realidade imposta pela crise pandêmica: a constitucionalização do direito brasileiro; o neoconstitucionalismo está para o direito, assim como o direito constitucional está para o direito do trabalho. É preciso nos atentarmos para essa realidade.

Tal necessidade transcende a premência de nos adequarmos à nova vivência sócio jurídica que a pandemia, ocasionada pela covid-19, impôs a todos, especialmente aos operadores do direito do trabalho. Esse dever surgiu muito antes, a partir do movimento alhures citado, o neoconstitucionalismo, que estabelece que, como centro do ordenamento jurídico, a Constituição Federal permeia e orienta todas as situações/demandas tratadas/abarcadas pelos diplomas legais infraconstitucionais, dentre eles, a Consolidação das Leis do Trabalho.

Em que pese a condescendência permitida pela possibilidade de redução proporcional da jornada de trabalho e de salário e pela suspensão temporária do contrato de trabalho, decorrentes da lei 14.020 cumulada com o decreto 10.422, é fundamental que as empresas possam lançar mão de outras ferramentas para a manutenção não só das atividades empresariais, mas também para a conservação dos empregos.

A caducidade da MP 927 trouxe ainda mais dificuldades para um cenário que já não se mostrava nada favorável. As opções disponibilizadas para os empregadores sustentarem os seus negócios se tornaram demasiadamente escassas, bem como a manutenção do emprego de milhões de trabalhadores se mostra cada vez mais ameaçada.

Então, o que fazer para frear ou, pelo menos, amenizar os impactos econômicos dessa crise? Bem, como dissemos, é preciso que sejamos racionais e razoáveis nesse momento; flexibilizar é melhor que remediar.

_________

1 Ao contrário do que ocorreu com a Medida Provisória 927, excepcionou-se desta regra a MP 936, de 1º de abril de 2020, haja vista que foi convertida na Lei nº 14.020 e regulamentada pelo Decreto nº 10.422.

2 Isso sem falarmos, obviamente, da crise enfrentada pela saúde pública. Segundo o diretor de emergências sanitárias da OMS, em vários países, inclusive no Brasil, o vírus é quem controla, que dá as cartas; há uma necessidade urgente de recuperação do controle da situação. Ademais, o Brasil registra atualmente um acréscimo diário de mais de 40 mil casos e cerca de mil mortes, bem como já atingiu a triste marca de 2 milhões de infectados, o que o coloca como o segundo país do mundo mais atingido pelo novo coronavírus. (Fonte: Correio Braziliense)

3 Ato jurídico perfeito é aquele já realizado, perfeitamente sacramentado segundo a lei vigente ao tempo em que ele aconteceu, tendo em vista a satisfação de todos os requisitos formais para gerar a plenitude da medida, tornando-se, portanto, completo e perfeito.

4 Ressaltada aqui a previsão contida na NR-01, anterior à MP 927, que estabelece “Disposições Gerais e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais”. Esta norma, cuja nova redação é datada de 09 de março de 2020, prevê a possibilidade de ensino a distância e semipresencial. Acesso em 22/07/2020, endereço eletrônico: Clique aqui

5 Citamos aqui a previsão contida na Nota Técnica Conjunta nº 06/2020 - PGT/CONALIS, in verbis: “VIII. POSSIBILITAR A FLEXIBILIZAÇÃO DOS REQUISITOS FORMAIS PARA NEGOCIAÇÃO COLETIVA, como obrigatoriedade de assembleia presencial [...] podendo-se adorar meios telemáticos, céleres e eficazes para consulta aos trabalhadores e interessados; ”.

6 Decreto Legislativo nº 06, de 2020.

_________

*Anna Cláudia Pereira Queiroz é advogada Trabalhista do escritório MoselloLima Advocacia. Especialista em Direito Público e Privado. Mestra em Linguística, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário.

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