Migalhas de Peso

A pandemia e a necessária reforma tributária ampla e efetiva

A reforma tributária que se avizinha pode ser mais abrangente do que se imagina, atacando não só os tributos sobre o consumo, mas também os que incidem sobre a renda e o patrimônio.

24/7/2020

A covid-19 trouxe uma crise de dimensões gigantescas em todos os setores da economia. No âmbito tributário, essa crise trouxe consigo a oportunidade para uma reforma ampla e efetiva, que ataque todos os tipos de tributos e ocasione um maior equilíbrio/distribuição de renda.

No aspecto temporal, essas medidas precisam ser rapidamente propostas para que, tudo dando certo, tenham eficácia a partir de 2021.

Panorama tributário brasileiro

O Brasil tem um dos sistemas tributários mais complexos do mundo, com mais de 60 tributos, e uma burocracia que chega a consumir bilhões por ano das empresas.

A carga tributária, próxima de 35% do PIB, se mantém em linha com a média dos países da OCDE.

Em termos de arrecadação1, quase 45% vem de tributos sobre o consumo de bens e serviços, como o ICMS e o IPI, e apenas um pouco mais de 20% de tributos sobre a renda/lucro, como o IRPF /IRPJ e a CSLL.

Em comparação com a média dos países da OCDE, esses percentuais apresentam uma visível distorção (em percentuais do PIB de cada localidade, sendo o Reino Unido e Estados Unidos trazidos à parte para fins de comparação):

Verifica-se, pois, a discrepância do Brasil nas modalidades “tributos sobre o consumo” e “sobre o lucro/renda”; Também em relação aos dois últimos países, o Brasil apresenta excessiva tributação sobre a folha de pagamentos e campo para evolução nos tributos sobre a propriedade.

Tributação sobre o consumo

As PECs 45 e 110, em trâmite no Congresso Nacional, aparentemente não ocasionam aumento de carga tributária e são benéficas na medida em que preveem a unificação do ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins no imposto federal sobre bens e serviços (IBS), eliminando ineficiências como a enxurrada de benefícios fiscais estaduais.

Entretanto, numa reforma mais ampla, essas alterações na tributação sobre o consumo poderão vir acompanhadas de outros aspectos, dos quais destacamos:

a)  Uma sugestão: de forma condicionada à geração/manutenção de empregos, os Estados poderiam permitir às empresas a tomada do integral do crédito de ICMS (sem o parcelamento em 48 meses), nas aquisições de ativo fixo; e

b)  Uma constatação: um imposto sobre transações digitais tende a ser criado, como forma de desonerar a tributação sobre folha de salários e, assim, fomentar empregos.

Tributação sobre o lucro/renda

A tabela progressiva do imposto de renda das pessoas físicas continua estática desde 2015, com alíquota máxima de 27,5% para todos os contribuintes com rendimentos superiores a R$4,66mil.

Uma reforma tributária pode incrementar o caráter progressivo do imposto, diminuindo a carga para a massa de brasileiros com menores rendimentos e aumentando-a para os mais abastados, seguindo os patamares dos países da OCDE.

Em relação às pessoas jurídicas, a tributação dos lucros e dividendos pode ser implementada. O ideal seria que ela viesse acompanhada de uma redução/equilíbrio nas alíquotas do IRPJ e CSLL, que varia conforme a espécie de atividade (indústria, comércio, serviços) e o regime de tributação (SIMPLES Nacional, lucro presumido, lucro real), mas pode chegar a 34% do lucro.

Ou, alternativamente, poderia ser reduzida a tributação do IRPJ/CSLL e, aí sim, tributada a distribuição de dividendos até atingir o patamar total de 34%. Isso estimularia a manutenção de recursos nas empresas e, consequentemente, suas atividades, empregos, etc.

Outros aspectos da tributação sobre a renda podem ser objeto de atenção e reequilíbrio numa reforma tributária.

Por exemplo, um ajuste na carga tributária das rendas/receitas de aluguéis, que varia da isenção, em determinados Fundo de Investimento Imobiliário (FII), até 27,5% no carnê-leão, passando pelos aproximadamente 14% do lucro presumido.

Outro ponto de atenção é a “pejotização” de pessoas físicas, prática largamente adotada com a (muitas vezes única) finalidade de mitigação de carga tributária, já que a tributação pode atingir 14% de tributos federais, ao invés dos 27,5% da tabela progressiva aplicada na contratação via Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

Por fim, a compensação de prejuízos fiscais de períodos anteriores sem a limitação de 30% do lucro real poderia ser benéfica na retomada pós crise, desde que a empresa garantisse a geração/manutenção de empregos.

Tributação sobre a propriedade

O patrimônio já sofre a incidência de diversos tributos.

O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) é irrelevante em termos de arrecadação, em que pese o agronegócio ser relevante em nosso país há décadas.

Já o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal de 1988, na prática é difícil de ser implementado com sucesso, dado não existir um movimento internacional coordenado de troca de informações entre países, que permita o acesso aos recursos mantidos no exterior.

O Imposto sobre Doação e Herança (ITCMD) atualmente incide a uma alíquota única de 4% no Estado de São Paulo, havendo um limite de 8% imposto pelo Senado Federal, patamar ainda baixo se comparado a países desenvolvidos.

O projeto de lei 250/20 pretende impor incidências progressivas até o referido limite, para heranças ou doações superiores a R$ 2,4 milhões.

Numa reforma tributária ampla, é de se imaginar que a tributação venha a romper esse tipo de limite (em linha com diversos países que tributam a doação e herança à alíquotas muito maiores que 8%), bem como tornar mais efetivas e equilibrada a incidência desses tributos.

A última crítica relativa aos tributos sobre a propriedade vai para o IPVA, já que ele não incide sobre iates, helicópteros, jatinhos e afins. O tema foi discutido em 2007 pelo STF[2], e a decisão foi de que o referido imposto sucedeu a antiga Taxa Rodoviária Única (TRU), que historicamente exclui embarcações e aeronaves.

Novamente, é possível imaginarmos que a ampla reforma constitucional tributária venha a atacar essa espécie de distorção.

Conclusão

A covid-19 trouxe uma profunda crise em diversos setores da economia, mas, ao mesmo tempo, a oportunidade de alterações na legislação tributária que ataquem todas as espécies de tributos, promovendo uma modernização e equiparação da legislação tributária brasileira à dos países desenvolvidos.

Uma vez que o Governo aproveite essa oportunidade, as alterações na legislação tributária tendem a afetar a todos os contribuintes, principalmente aqueles com maior capacidade contributiva.

Nesse cenário, o planejamento tributário, nos termos e limites da lei, se tornará uma prática cada vez mais necessária.

_________

1 Conforme o estudo “Global Revenue Statistics Database”. Clique aqui

2 Recurso Extraordinário (RE) 379.572/RJ - RIO DE JANEIRO, com relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

_________

*Marcos Botter é advogado do escritório Vezzi, Lapolla e Mesquita Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com mais de 20 anos de atuação na área tributária.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024