Migalhas de Peso

Um stare decisis? O novo rito de recebimento da denúncia pelo RISTF e sua expansão para os recursos criminais

A proposta de emenda regimental II consiste em mais um passo para o modelo do stare decisis no processo penal brasileiro.

24/7/2020

Noticiou-se no informativo do Migalhas de 2 de julho de 2020 o oferecimento do Ofício 46/20-PCO que, subscrito por elevadas autoridades do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, veiculava considerações a respeito de proposta II de alteração no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), formulada pelos ministros Dias Toffoli e Edson Fachin.1 Referida propositura de modificação regimental diz com o rito, disciplinado neste ato que tem – na prática – verdadeiro caráter normativo, concernente ao juízo de admissibilidade e recebimento de denúncia, no contexto da competência originária do Supremo Tribunal. Em uma palavra, e tal como noticiado pelo Migalhas, “A proposta inclui como atribuição do relator deliberar sobre recebimento ou rejeição de denúncia ou queixa se a decisão não depender de outras provas, com a possibilidade de apresentação de agravo regimental contra essa decisão ao colegiado competente e realização de sustentação oral”.

 O ofício encaminhado pelo Conselho Federal da OAB, de outro lado, afirma que a propositura em questão estaria em desconformidade à disciplina contida na lei 8.038/90, que consagrou as diretrizes procedimentais acerca do processamento dessas ações de competência originária do Supremo Tribunal Federal e do STJ. Observe-se o seguinte fragmento que, segundo me parece, resume e sintetiza o argumento central da comunicação enviada pelo CFOAB:

 “As atribuições do relator não podem reduzir a esfera de proteção dos jurisdicionados, de modo que qualquer mudança regimental que retire a competência dos órgãos colegiados deve ser excepcional e fundamentada em razões legítimas e necessárias, sem acarretar diminuição dos direitos e garantias das partes, sobretudo em matéria penal, como no caso em comento.”

Este inconformismo não se sustenta e, por carecer de um exame impregnado de maior abrangência do RISTF, revela posição que não mais caminha em conformidade à orientação que – até mesmo sob o ângulo do processo legislativo – tem permeado e inspirado a onda renovatória do direito processual. Apresentarei, nesta breve sede, algumas razões que, a meu juízo, parecem conferir legitimidade à proposta e, mais do que isso, põem em evidência a necessidade de atendimento a uma demanda que, consideradas suas injunções nos Tribunais do país como um todo, visa atribuir maior racionalidade ao sistema recursal penal.

Impõe-se a observação, de início, que providência análoga tem sido aplicada – sem maiores dificuldades, acentue-se – no âmbito do Supremo Tribunal e em outros Tribunais do país a propósito do exame de admissibilidade e julgamento imediato das ações de habeas corpus. Com efeito, diz o § 1º do art. 21 do RISTF que “Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou à súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil.”. Isso significa que, ao proceder ao juízo preambular de admissibilidade da impetração, no uso de suas prerrogativas de relatoria, o ministro designado poderá dela não conhecer, ou, o que é de ainda maior relevância, julgá-la imediatamente se a causa de pedir nela deduzida se mostrar em contrariedade à jurisprudência dominante ou o ato coator impugnado na ação nobre tipificar, sobre a matéria nela versada, compreensão pacificada pela Corte.2 Dentre alguns pontos positivos que este permissivo regimental introduziu no sistema, cito dois que, pela minha percepção, afiguram-se de mais acentuada expressão: a dissuasão mesma da vontade da parte de impetrar ações de habeas corpus de perfil procrastinatório e a concretização do postulado da razoável duração do processo (CF/88, art. 5º, LXXVIII, incluído pela EC 45/04). Quanto a este último, cabe a advertência de que o julgamento unipessoal imediato torna dispensado o pedido de inclusão em pauta do habeas corpus e, dada a ausência de provimento liminar em decisões de plano assim proferidas, não constitui-se óbice ao regular andamento da ação originária.

Nenhuma de tais circunstâncias, ademais, traduz transgressão ao contraditório ou – admitamos que assim se qualifique este instituto – ao princípio da colegialidade. Esta decisão não é marcada pela nota que a qualificaria por irrecorrível. Da decisão monocrática, seja ela de não conhecimento, seja de denegação da ordem, ou seja, ainda, pela sua concessão, caberá o recurso de agravo interno para o correspondente órgão fragmentário, além de também suscitar a possibilidade de afetação do seu objeto ao julgamento em Plenário, a juízo do relator, providência essa que, de resto – note-se –, também se faz provocável por petição da parte. Cumpre ter presente, em virtude disso, tais são as circunstâncias, que no feixe dos poderes inerentes à relatoria, precisamente incidentes sobre o processamento originário de ações, qualquer das decisões compreendidas no poder monocrático se revelam passíveis, por ato do relator, de afetação ao Tribunal Pleno (RISTF, arts. 6º, II, “c”, 21, I, III, XI e 22). A recente prática do Supremo Tribunal tem demonstrado a crescente utilização de tal prerrogativa, notadamente nos casos em que a decisão a ser proferida envolve a incursão, pelo Judiciário, no funcionamento institucional de outros poderes da República, no plano da independência de funções.3 Não há razão, por isso mesmo, para que essa disposição não se tenha por plenamente aplicável ao rito inicial do recebimento denúncia, considerada a modificação tal como proposta. O regime procedimental, sob esse aspecto, é essencialmente idêntico ao do processamento do habeas corpus. Haveria, portanto, com a modificação, a possibilidade de o ministro receber ou não, em juízo monocrático, a acusação, ou afetar seu julgamento ao Plenário; sendo que, adotando-se a afetação, opera-se, como se sabe, o consequente o trancamento da via do agravo interno.

Tenho defendido que expediente análogo deva ser adotado, não só para as ações de habeas corpus nos tribunais, mas também para o processamento de recursos criminais nos tribunais de segundo grau. Aliás, essa compreensão, atualmente, acha-se consubstanciada em proposta de enunciado de minha autoria para a I Jornada de Direito Material e Processual Penal do Conselho da Justiça Federal, que possui o seguinte teor: “Não viola o art. 59 do Código Penal, nem o princípio da individualização da pena, o acórdão ou decisão unipessoal de relator que nega provimento à apelação interposta com base no art. 593, III, ‘c’, do Código de Processo Penal, quando a motivação no exame das circunstâncias judiciais pelo juízo sentenciante, ainda que inidônea, não encerre prejuízo ou arbitrariedade ao réu, tendo-se em referência o contexto global da dosimetria”. O exato sentido desta nova política legislativa em matéria de direito processual tem, no plano da tipificação ex lege de decisões revestidas de eficácia vinculante dos demais órgãos jurisdicionais, seu fundamental pressuposto, enunciador que se faz da atribuição de maior grau de racionalidade ao sistema. Um dos temas centrais, com efeito, do debate processual penal hoje em dia é exatamente o esforço de compatibilização entre as garantias fundamentais e a eficiência na persecução – que se traduz, no plano dos recursos criminais, em medidas legislativas que busquem dissuadir a fishing expedition na via recursal.4

Deve-se assinalar a circunstância de que o permissivo regimental do RISTF – que pensamos ser de todo reproduzível nos regimentos internos dos demais tribunais, relativamente aos recursos ordinários – outorgou poderes ainda mais abrangentes ao ministro relator: ao examinar o mérito do habeas corpus – tal como o fará, embora no plano da cognição limitada, no ensejo do juízo de admissibilidade da acusação – não se acha o juiz adstrito à autoridade vinculativa ou não do pronunciamento paradigmático. Significa esse beneplácito que, para que se revista de legitimidade jurídica, basta o julgamento monocrático encontrar apoio na jurisprudência pacificada da Corte, ainda que referido entendimento não se ache albergado pelo sistema da gestão concentrada de precedentes ou da repercussão geral, limitadas que estão a controvérsias específicas que satisfaçam os indispensáveis requisitos necessários a sua instauração.

Os Tribunais regionais e locais, de outro lado, muito em virtude da própria dinâmica de seu funcionamento, ainda não potencializaram as capacidades alusivas à formação de precedentes vinculantes, no âmbito de suas jurisdições. Essa circunstância também justifica que permissivos tais como o constante do RISTF sejam reproduzidos nas demais Cortes, tanto por ocasião do exercício do juízo de admissibilidade de ações penais originárias, como ainda no exame inicial do processamento de recursos. Em suma: poderia o relator no Tribunal, satisfeitos os requisitos de admissibilidade do recurso, julgá-lo improcedente, caso a decisão nele questionada se ajustasse, com integral fidelidade, ao entendimento pacificado na Corte, sem que se tenha por prejudicado o acesso à justiça, pois esta decisão singular permanecerá, de todo modo, sujeita à interposição do agravo interno.

A previsão contida no art. 6º, da lei 8.038/90, ao consignar que, recebida resposta à acusação, “o relator pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas”, não consagra cláusula essencial ao devido processo legal. Pressupõe, antes, o recebimento da denúncia, instauradora de ação penal de foro no STF, por meio de decisão irrecorrível, predicado de ato decisório que – aqui sim – vulnera a garantia do due process. Há que se ter presente a natureza do ato judicial que depura a sumária adequação dos termos da exordial acusatória. Trata-se este ato de despacho eventualmente revestido das feições de decisão interlocutória, mas que tem na determinação da instauração da fase instrutória do processo penal condenatório – isso é inequívoco – seu principal efeito. Nem mesmo cabe lhe atribuir a função de conformar a relação jurídica processual, pois a notificação para apresentação de resposta prevista no art. 4º, da lei 8.038/90, anteriormente ao juízo de admissibilidade da acusação, possui claro efeito de ato citatório. De semelhante ato decisório, portanto, não se cuida o julgamento do mérito da causa penal com foro no Supremo, tenha ele lugar no Pleno ou nos órgãos fracionários, visto que a irrecorribilidade do julgamento de mérito é o que qualifica, de fato, a especialidade inerente ao foro privativo na Suprema Corte, o que implica a conclusão de que este juízo de delibação em torno da acusação afigura-se como ato essencialmente instrumental e de impulso.

A proposta de emenda regimental II, esse o quadro, atende aos reclamos de atribuição de racionalidade ao sistema. Por não se revelar a decisão monocrática vertida nesta proposição alheia, ou mesmo insuscetível, ao controle jurisdicional, não representa ela qualquer ofensa às garantias daquele submetido à persecução penal perante o Supremo. Situação diversa, porém, é a manutenção do exercício do juízo de admissibilidade no órgão fracionário, que o faz por decisão que não desafia nem agravo interno e nem o habeas corpus – posto incabíveis para o Pleno em face de decisão de órgão fracionário (súmula 606/STF5) –, a configurar verdadeira decisão irrecorrível. Impõe-se a advertência, ademais, que a sujeição da decisão monocrática ao juízo turmário, por meio do recurso de agravo, não tipifica coincidente posição processual de fato, pois, com a interposição deste agravo, concretizada a garantia do direito à revisão, presume-se a ampliação do objeto de cognição do órgão jurisdicional, para além dos fundamentos já manifestados na resposta à acusação.

A modificação também se afigura de importante efeito indutivo, eis que, uma vez e se aprovada, deverá induzir as demais Cortes a promoverem semelhantes modificações em seus regimentos internos, de ordem a contemplar providências análogas, talvez até a propósito do que temos discutido a respeito do julgamento monocrático de recursos criminais.

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1 - A proposta modificativa possui como objeto o art. 21 do RISTF, introduzindo-se nesta norma um novo inciso XXI, que possuiria o seguinte teor: “XXI – deliberar sobre recebimento ou rejeição de denúncia ou queixa se a decisão não depender de outras provas”. A alteração, em consequência, revogaria o art. 234 do Regimento Interno que, atualmente, consagra a reserva de Plenário a deliberação em torno do juízo de admissibilidade da denúncia. A matéria deste rotativo, contendo a íntegra do documento elaborado pelo CF/OAB encontra-se disponível em: OAB oficia STF sobre alteração no rito de recebimento de denúncia acesso em 3 de julho de 2020.

2 - No plano formal, proposta de modificação regimental de tal natureza já foi encaminhada à Presidência do Supremo pelo Ministro Marco Aurélio, em Ofício no qual se fez constar a seguinte fórmula: “Ante a exceção de vir o Supremo a afastar a eficácia de ato de outro Poder, enquanto Poder, a necessidade de guardar a Lei das leis, a Constituição Federal, proponho emenda ao Regimento Interno dando ênfase à atuação colegiada, a fim de que, em jogo ato de outro Poder, formalizado no campo da essencialidade, seja o processo objetivo ou subjetivo - o primeiro já com previsão, nesse sentido, na lei 9.868/99 - examinado e decidido, ainda que de forma provisória, acauteladora, pelo Colegiado. Eis o inciso a constar do artigo 5º do Regimento Interno: "XI - apreciar pedido de tutela de urgência, quando envolvido ato do Poder Executivo ou Legislativo, praticado no campo da atuação precípua”. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/propostaRISTF.pdf.

3 - Cf., sobre o tema, o HC 143.333/PR, rel. Min. Edson Fachin, em que figurava como paciente o ex-Ministro de Estado. Observe-se o seguinte fragmento da ementa deste precedente: “3. Por força dos artigos 21, I, e 22, ambos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), compete ao Relator, de maneira discricionária, a remessa de feitos ao Tribunal Pleno para julgamento, pronunciamento que, a teor do art. 305, RISTF, afigura-se irrecorrível. Especificamente no que concerne aos habeas corpus, tal proceder também é autorizado a partir da inteligência dos artigos 6°, II, “c” e 21, XI, RISTF”.

4Significativo exemplo de tal evidência é a nova redação do art. 16 do Código Penal, conferida pela Lei n. 13.964/19, que, ao introduzir os incisos III e IV nesse dispositivo, instituiu novas hipóteses – que envolvem o tema dos recursos – impeditivas do curso do prazo prescricional. Sobre o tema, cf. LIMA, Renato Brasileiro. Pacote Anticrime – Comentários à Lei n. 13.964/19 artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 60-65.

5 - Sobre a ampla interpretação do enunciado sumular, cf. HC 137.701 AgR, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 15-12-2016, DJE 47 de 13-3-2017.

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*Tomás Pires Acioli é membro do escritório Amaral, Paes de Andrade e Figueirêdo Advogados. Graduando em Direito na Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Ex-estagiário da Procuradoria de Justiça/MPPE junto às Câmaras Criminais do TJPE. Ex- Pesquisador Bolsista do  PIBIC/FACEPE.

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