É certo que num Estado Democrático de Direito há a necessidade de um controle da Administração Pública, incluindo as agências reguladoras. Essa afirmação é reforçada no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro pelo disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, que prescreve que “a lei não excluirá nenhuma lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário” (princípio da inafastabilidade jurisdicional), quando se está a falar do controle jurisdicional da Administração Pública.
Em razão de ser órgão do Estado vocacionado para aplicar o Direito às lides que lhes são trazidas, notadamente diante da imparcialidade, independência funcional e das garantias de que são dotados os seus membros, bem como da qualidade de imutabilidade atribuída, por lei, às suas decisões, cabe ao Poder Judiciário o controle da Administração Pública em última instância1, respeitado, evidentemente, o mérito dos atos administrativos, entendido este como o âmbito dentro do qual o administrador decide com base em critérios não positivados de oportunidade e conveniência2.
No entanto, se, no que tange ao controle jurisdicional em geral da Administração Pública já existem suficientes polêmicas, dada a permanente tensão entre as normas constitucionais que preveem, de um lado, o princípio da separação dos poderes, e de outro, um amplo acesso à jurisdição, o que traz à tona a questão dos limites do controle externo da Administração Pública pelo Poder Judiciário, no que toca ao controle jurisdicional da função regulatória do Estado, essas polêmicas ganham um certo reforço, consideradas todas as peculiaridades da função regulatória, mormente quando desempenhada por meio das agências reguladoras, autarquias sob regime jurídico especial.
No Direito brasileiro, o problema dos limites do controle jurisdicional, à partida, parece colocado de forma mais simples. De um modo geral, pode-se dizer que o Poder Judiciário, no Brasil, aprecia as questões de legalidade, mas não reexamina o mérito do ato administrativo, isto é, a sua oportunidade e conveniência, que se incluem na competência exclusiva do administrador. Este quadro, no entanto, está longe de esgotar a riqueza e complexidade da matéria.
O que se percebe é que a tarefa de delimitar critérios objetivos, puramente teóricos e apriorísticos, nos quais pudessem ser enquadrados os limites do controle judicial de atos administrativos em quaisquer situações, revela-se, hoje, infactível. Esses critérios não podem ser encontrados com segurança na delimitação de um suposto mérito do ato administrativo, que se exclua de apreciação frente à legalidade, pois a legalidade cresceu para limites antes insuspeitos e já há direito regulando de forma mais ou menos delimitada, mais ou menos clara, toda a atividade administrativa, inclusive no que respeita ao mérito dessa atividade.
O Direito não se contenta mais em delimitar formas na atuação administrativa; antes preocupa-se com sua substância, inclusive no que respeita à própria opção administrativa na maioria dos casos. Tais critérios também não podem ser encontrados na definição de campos discricionários ou vinculados. Em primeiro lugar porque a discricionariedade pura é cada vez mais rara (atribuição clara pela lei de indiferentes jurídicos que possam ser escolhidos pela Administração conforme sua conveniência e oportunidade). Em segundo lugar porque haverá zonas de atuação vinculada nas quais o exercício de um controle demasiadamente profundo será totalmente indesejado.
A legalidade, tornando-se mais ampla, passa a ser simultaneamente mais complexa e passa a apontar cada vez mais soluções que são, em princípio, justificáveis. O Judiciário continua sendo o único intérprete autêntico autorizado a decidir a solução mais justificável ou adequada ao caso concreto, mas em determinadas hipóteses poderá sentir-se incapacitado para exercer essa função, quando lhe pareça que o órgão administrativo possa ter mais legitimidade para exercê-la em uma dada situação concreta, ou mais competência, ou mais responsabilidade3.
Não há dúvida que as transformações implicadas pelo advento do Estado Social provocaram um agigantamento do papel desempenhado pelo Poder Executivo4, que não pode ser admitido em um ambiente isento de controle. A ideia de checks and balances passa a desempenhar papel central nesse ambiente, mas também demanda uma certa revisão do papel desempenhado pela atividade jurisdicional no sistema, não apenas com o alargamento da atividade cognitiva normalmente atribuída ao Judiciário, mas também com a compreensão de que essa tarefa deve ser exercida fundamentalmente à vista das características institucionais do órgão judiciário.
Voltando ao problema apresentado pelas agências reguladoras brasileiras, referido alargamento é situado como condição indispensável à delegação de poder normativo pretendida pelas normas de regência do sistema de regulação. Ao lado disso, cabe afirmar que o Poder Judiciário deveria necessariamente ser levado a decidir sobre o mérito das regulações, tomando-se a garantia do controle em sua plena extensão5.
Por outras palavras, o Judiciário passa a ser, hoje, agente formulador de políticas, tanto quanto Legislativo e o Executivo, pois essas políticas incorporaram-se ao Direito e ele, Judiciário, é, no mínimo, um dos intérpretes autorizados desse direito6. É o que se percebe, por exemplo, tomando-se a experiência prática colhida em mais de dez anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor. Com base nos standards genéricos contidos no CDC, foram proferidas decisões judiciais verdadeiramente criadoras de direito e definidoras de políticas públicas, invadindo campos tão específicos quanto (um exemplo é a determinação de reajustes tarifários em matéria de telefonia).
Tradicionalmente, sempre se buscou os limites da ação judiciária em elementos característicos à função jurisdicional, assim como se procurava encontrar os limites da atuação administrativa em características que fossem próprias a uma certa função administrativa. Todavia, se definir os limites e características dessas funções já era tarefa ingrata no passado, hoje essa tarefa é ainda mais difícil. A busca de limites, hoje, somente parece ser viável, somente parece fazer sentido, se for focada na instituição7, não mais na função.
A configuração institucional de cada um dos órgãos do Estado, incluindo-se as agências reguladoras, deve definir, em princípio, o grau de aptidão de cada um desses órgãos para a tomada, em definitivo, de certas decisões sobre determinadas matérias. Mas isso não impede, em absoluto, que essas competências se sobreponham, e relacionem-se de forma complexa.
Não há grande novidade em dizer que, em linha de princípio, as Cortes de Justiça têm uma vantagem comparativa sobre as agências de regulação para decidir qual é o sentido da lei. Mas seguramente haverá situações em que o órgão jurisdicional não se sentirá institucionalmente aparelhado a avançar em profundidade em sua atividade de revisão, especialmente no que se refere à substituição da norma administrativa por uma de sua própria lavra.
Não parece possível delimitar a priori essas situações, mas admiti-lo pode conduzir à constatação de que, mesmo frente ao Direito brasileiro, não parece tão absurda a proposta americana de deferência, ou self-restraint, do órgão jurisdicional8. De toda sorte, algumas recomendações devem ser aplicadas.
Em certas circunstâncias excepcionais, determinados juízos de legalidade estariam subtraídos ao exame completo pelo Judiciário, como a) nas decisões altamente pessoais, b) nas valorações vinculativas, c) nas decisões de caráter prognóstico e d) nas decisões de enformação9.
Nessa perspectiva, deveria ser relativizado o controle pelo Poder Judiciário, nos seguintes termos:
a. Das decisões de órgãos administrativos ligados indissoluvelmente à personalidade de quem as toma, como as apreciações pedagógico-científicas, as apreciações de servidores por seus superiores etc.;
b. Das decisões tomadas por órgãos especiais, dotados de legitimidade especial para uma determinada atividade, dada por especial representação social, sendo exemplos desse tipo de decisão aquelas tomadas por comissões que apreciam filmes ou avaliam documentos;
c. Das decisões fundadas na antecipação intelectual do futuro, ou seja, tomadas à vista da afirmação de eventos futuros, uma vez que, nesses casos, é a Administração que deve se responsabilizar pelo prognóstico e por seu eventual equívoco; e
d. Das decisões envolvidas em um todo que consubstancia uma política da administração, em que o político infiltra-se no jurídico, sem deixar limites claros onde acaba um e principia o outro.
Nessas hipóteses, o Judiciário deveria simplesmente apurar se o ato se acomoda ao sistema normativo, se o discurso que o justifica é processado de maneira racional. Bem assim, em muitas situações, o Poder Judiciário deveria, ao defrontar-se com a interpretação de conceitos jurídicos abertos já interpretados pela Administração, limitar-se a verificar se essa interpretação é correta, não podendo a ela sobrepor outra que entenda mais correta.
Não é difícil perceber que muitos dos atos que participam das agências reguladoras brasileiras poderiam ser identificados, com maior ou menor grau, com as situações acima indicadas, especialmente com a ideia de valoração vinculativa e com a noção de decisão com caráter prognóstico. Contudo, esse critério não pode ser levado à categoria de lei absoluta, sob pena de se subtrair, em diversas oportunidades, controle sobre tais decisões.
Além disso, é verdade que o grau de ativismo ou self-restraint do órgão jurisdicional estará ligado sempre a uma série de outros fatores, alguns até mesmo extrajurídicos, como a) o grau de seriedade, imparcialidade e comprometimento da agência reguladora10, b) sua abertura democrática, c) a legalidade e a transparência de seus procedimentos, d) o histórico de sua atuação, e) a coerência da norma administrativa em apreço com a ação pretérita do órgão etc.
Estará ligado, sobretudo, a um teste que promova a comparação de qualificação institucional do órgão judiciário e do órgão administrativo para a apreciação, em caráter definitivo, de cada matéria, incluindo temas como o da capacitação técnica (para casos em que a definição da melhor técnica seja tênue) e outros assemelhados11.
Além desses elementos de índole mais substancial, a análise do processo administrativo utilizado na produção da norma pode revelar-se extremamente útil para a avaliação do grau de deferência que poderá merecer uma dada regra regulatória12.
A subtração de mecanismos de legitimação como consultas e audiências públicas ao processo de produção de uma dada norma regulatória compromete muito da deferência de que ela, de outro modo, poderia desfrutar13.
O mesmo se pode dizer quanto ao comportamento do órgão de regulação no curso dessas audiências e consultas, ou seja, quanto ao grau de atenção que é dado, pelo órgão, a cada comentário e sugestão específica. Vale lembrar que as respostas dadas pelo órgão administrativo a tais sugestões ficam incorporadas, no processo normativo, como razões determinantes da regra baixada, possibilitando, assim, novas frentes de controle.
O exercício de controle amplo sobre a ação regulatória traz, evidentemente, um grande risco consigo: o chamado risco de politização da decisão judiciária. É claro que as decisões judiciais proferidas nessas matérias são, em largo sentido, políticas, pois lidam com regras jurídicas que definem a alocação de bens e interesses coletivos. Interpretar princípios legais genéricos, especialmente nessas matérias, será sempre uma atividade fortemente marcada por elementos políticos. Além do mais, como anotou Klaus Stern, “a própria outorga ao Judiciário do poder de declarar a inconstitucionalidade das leis já o incluiu, irreversivelmente, no processo político”14.
Ademais, impõe afirmar a necessidade de que, na área concernente ao direito regulatório, a decisão judicial, necessariamente, precisa explicitar as razões sociais, econômicas e políticas que a fundamentam.
Cuidando-se de decisões que possuem muitas vezes conteúdo econômico marcante, é importante que a decisão considere, sempre e de forma declarada, a medida em que uma determinada distribuição de custos e benefícios é, por ela, empreendida entre a sociedade, determinados grupos de interesse e determinados agentes em especial, para fins de controle.
Em resumo, admitir que ao órgão judiciário é dado um acentuado poder de controle sobre a atividade normativa dos órgãos de regulação significa admitir, indiretamente, que ao fim e ao cabo lhe pode competir escolher, entre várias soluções teoricamente viáveis, uma que lhe pareça mais adequada, considerados determinados valores que devam prevalecer segundo sua visão.
Consequentemente, significa dizer que uma especial atenção deverá ser dada não apenas ao modo pelo qual essa escolha é efetivada, mas também aos critérios materiais que efetivamente a presidem.
Os valores escolhidos pela decisão judicial devem ficar claros. Para que o controle judicial da ação normativa do Estado seja, efetivamente, democrático, as decisões respectivas devem ser fruto de uma apreciação ampla e completa de todas as variáveis técnicas e fáticas envolvidas em cada caso, bem como de todas as teses jurídicas e, finalmente, da exposição verdadeira das razões (inclusive políticas e sociais) envolvidas na decisão.
É preciso que o processo judicial abra espaço também para os vários inputs que podem ser dados pelos inúmeros possíveis de interessados na decisão judicial, o que não é tarefa fácil, uma vez que ele foi concebido basicamente para solucionar conflitos bipolares, instaurados entre indivíduos e tendo por mote problemas de justiça comutativa, num modelo de direito bastante próximo àquele do Estado Liberal. Os conflitos aqui tratados são, no entanto, substancialmente policêntricos e desafiam a capacidade do aparelho judiciário para solucioná-los.
Infelizmente abordar esses temas já seria objeto de um outro e específico estudo e perpassaria sobremaneira a temática aqui proposta.
1 Nesse sentido, cfr. Jessé Torres Pereira Júnior, Controle Judicial da Administração Pública: Da Legalidade Estrita à Lógica do Razoável. 2ª ed., Belo Horizonte, 2006, p. 29; Miguel Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 7ª ed., Rio de Janeiro, 2006, p. 42.
2 Cfr. Germana de Oliveira Moraes, Controle jurisdicional da administração pública, 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2004, p. 42.
3 Cfr. Antonio Carlos de Araújo Cintra, Motivo e motivação do ato administrativo, São Paulo, 1979, pp. 69/62
4 Cfr. Mauro Cappelletti, Juízes Legisladores?, trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 39.
5 Nesse sentido, cfr. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Agências Reguladoras: Legalidade e Constitucionalidade, in Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 35, ano 8, nov./dez., 2000, p. 157.
6 Cfr. Fábio Konder Comparato, Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade das políticas públicas, RT 737, pp. 11/22.
7 Nesse sentido, cfr. doutrina norte-americana em Douglas North, Institutions, institutional change and economic performance, Cambridge, Cambridge University, 1990, p. 3.
8 Segundo a doutrina chancelada pela Suprema Corte americana, a análise da actividade normativa proferida pelos órgãos administrativos, quando vinculada por parâmetros legais genéricos, comportaria um duplo teste: primeiro, implicaria verificar se o texto legal é, realmente, vago; depois, em caso positivo, implicaria verificar se a interpretação do texto legal, consagrada na ação administrativa, é razoável. Se o texto for vago e a sua aplicação for razoável na norma administrativa, ela não pode ser substituída por outra tida pela corte como mais consentânea ao espírito da lei, justificando-se, assim, a deferência à conclusão administrativa (vide caso “Chevron, Inc. v. National Resources Defense Council” – 467 U.S. 837 (1984).
9 Para maiores desenvolvimentos, cfr. Eros Roberto Grau, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, Ed. Malheiros, 2ª ed., 1998, pp. 162/163.
10 Para análise desse critério, cfr. Elizabeth Garret, Legislating Chevron, pp. 2.650 e ss.
11 Cfr. Neil Komesar, Imperfect alternatives: choosing institutions in law, economics and public policy, Chicago, University of Chicado Press, 1994.
12 Cumpre, neste ponto, uma reenálise acerca do princípio democrático, cfr. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, 1999, pp. 282/283.
13 Cfr. Fábio Nusdeo, Fundamentos para uma codificação de Direito Econômico, São Paulo, 1995, p.152.
14 In O Juiz e a Aplicação do Direito, capítulo em Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides (org. Eros Roberto Grau), São Paulo, 2001, p. 512.
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*Lucas Asfor Rocha Lima é advogado doutorando em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa (FDUL).